julho 14, 2012

"Uma testemunha", por Alberto Azcárate (sobre Claudio Ulpiano)

PICICA: "Claudio não era um crítico, não se interessava pela polêmica, era um construtor minimalista que na criação de seu pensamento nômade precisou derrubar os mundos da superstição e da tolice que nos habitam. Suas aulas foram uma caixa de Pandora e trouxeram imensas alegrias; ele foi capaz de povoá-las de sensações imperecíveis, “fazendo de nosso encontro algo gentil e inesquecível”. Não poucas vezes, acabaram como seu sepultamento: com um aplauso comovido daqueles que, como nós, tivemos o privilégio de assistir a esse Houdini do pensamento, que sempre soube que “ensinar é fazer uma viagem”." 

Uma testemunha

Prato feito para o Claudio Ulpiano. Cheguei a sua aula num dia de inverno de 1985. A minha bagagem: argentino, quarenta anos, estudos de música no conservatório dos doze aos dezessete, e de filosofia na Universidade de Buenos Aires; curso interrompido para exercitar a práxis marxista, tendo militado desde 1968 até 1978. Cinco psicanálises nas costas, a primeira, de cunho existencialista, e de aí em diante desfilaram a ortodoxia freudiana e a gestaltista, até aterrissar no lacanismo.


Vivi os anos da repressão militar na minha terra e, logo depois, percorri outro caminho, intenso: em 1980 parti para o México e me entreguei de corpo e alma à música durante alguns anos. Um dia cheguei ao Rio de Janeiro, e parecia improvável que, nesta urbe preguiçosa e desleixada, viesse a encontrar algo que novamente ameaçasse a minha vida, a partir de iniciativas próprias. Depois de ter passado por aquilo tudo e das longas horas de divã, sempre correndo atrás de alguma identidade perdida, ou nunca descoberta, o que poderia me ameaçar?


Ele ministrava suas aulas no Colégio Rio de Janeiro, numa obscura sala do segundo andar. Os anos de universidade me fizeram hábil em, a partir de terminologias e atitudes, decifrar a procedência de quem estava perguntando; assim não demorei em detectar a presença de músicos, psicanalistas, pedagogos, escritores, filósofos, economistas, cineastas e alguns ‘doidões’. Não entendi o porquê daquele séquito tão heterogêneo, onde parecia que nada colava com nada; aquela fauna me hostilizava com sua mistura esquizofrênica.

Desde o início, suas colocações escandalizaram-me. Imediatamente fiquei desconfiado de me encontrar ante um dos execrados irracionalistas (nunca tinha conhecido um de perto). Assim, uma a uma, suas aulas foram me trazendo um misto de irritação e desconforto, porém também de interesse e deslumbramento. Logo descobri que aquela figura tinha recursos para tudo; com ‘passes’ misteriosos conseguia juntar Buñuel a Empédocles, os pré-socráticos à física contemporânea, falar de pintura para ouvir, do tato do olhar e de algum inexprimível ‘passado que nunca foi vivido’(!)


Eu, um homem convicto de que havia que procurar a verdade e agir em conseqüência, muito cedo tive de me acostumar a suportar afirmações do tipo: “não estou aqui para resolver problemas, essa não é a minha função, porque não há nada que resolver, minha tarefa é só pensá-los”, atitude que tantas vezes eu questionara nos intelectuais da década de sessenta, acusando-os de viver na ‘torre de marfim’.

Sempre quis acreditar que a justiça e o ‘bem comum’ eram bens supremos, porém, tive que padecer: “não existe o bem e o mal. Só é bom aquilo que eu desejo e mau aquilo que me enfraquece” e, “quanto mais justo é um homem, também mais culpado é”.


Com o rosto ainda sombreado pela última poeira do muro de Berlim, escutei: “vivemos num mundo ‘pós-renascentista’. Esclareceu: no mundo renascentista tudo estava claro, era evidente aos olhos, o fundo e a figura jamais se confundiam nem se misturavam; o universo renascentista era claro e transparente. O mundo barroco, não. O artista barroco soube desde sempre que a verdade estava nas trevas e não no céu, tinha que procurá-la no fundo obscuro povoado pela misturas de cores, com predominância dos amarelos e dos vermelhos. Para trazer a figura ao primeiro plano, o artista barroco teve que fazê-lo arrancando-a das trevas. No momento atual estamos ante um paradoxo similar: recém saídos da ilusão humanista, onde acreditamos que a verdade viria à tona com as utopias que provêm dos séculos XVIII e XIX, nos deparamos com as trevas novamente e é delas que deveremos extrair as nossas verdades”.


Outro estrago fez quando, a partir da filosofia, pulverizou o conceito de ‘identidade’ na lógica e, de quebra, o de ‘identificação’ na psicologia e escolheu trabalhar com o de ‘agenciamento’; mais um, quando ministrou as ‘quatro teses sobre a psicanálise de Deleuze-Guattari’ e caracterizou o complexo de Édipo como uma estrutura de poder. Não ficou por aí, em outra aula acrescentou: “a escatologia cristã e os horrores judaicos tornam a vida inacessível, se não houver um deus. A tentativa da filosofia é mostrar que essas prisões são estruturas de poder que geram as forças da transcendência, e estas são as que produzem a insuportabilidade da vida”.


Sempre fui apaixonado pela música clássica e pelo jazz, e boa parte da minha ligação com este país devo à harmonia bossanovista e suas precedências pixingueanas entre outras; também aí, senti que esse mundo maravilhoso já não bastava. Alguém falou em música e ele disse: “o século XX rompe com todos os modelos consagrados. Nesse domínio, é bom lembrarmos do Cage, do Schoenberg, do Schaeffer. John Cage, por exemplo, utiliza o silêncio, mas não como a música sempre o concebeu, a serviço da melodia, como uma pausa à espera do próximo desenho melódico. Ele o trabalha em si mesmo, como entidade ontológica. Trata-se de um silêncio para ser ouvido, com todos os seus sons associados, e não para aguardar que passe. Gera em nós um incômodo, porque instaura uma série que é divergente, e não convergente, como está acostumado a ouvir (e viver) o mundo ocidental. Por ser mais fácil, vou tentar explicar essa questão a partir da própria vida: segundo Leibniz, a vida se constitui em séries, todas ordinárias, nenhuma extraordinária, para citar algumas: a do amor, a dos filhos, a da doença, a da morte. Todas, e cada uma, são para serem vividas em si mesmas. É o homem ocidental quem complica a vida, porque mistura as séries e dá relevância a umas sobre as outras, daí a sua vida se torna insuportável; o budista lida muito melhor com isto”. Na hora me lembrei de J. L. Borges falando magnificamente sobre a sua cegueira (Sete noites) e entendi tudo.


Claudio não era um crítico, não se interessava pela polêmica, era um construtor minimalista que na criação de seu pensamento nômade precisou derrubar os mundos da superstição e da tolice que nos habitam. Suas aulas foram uma caixa de Pandora e trouxeram imensas alegrias; ele foi capaz de povoá-las de sensações imperecíveis, “fazendo de nosso encontro algo gentil e inesquecível”. Não poucas vezes, acabaram como seu sepultamento: com um aplauso comovido daqueles que, como nós, tivemos o privilégio de assistir a esse Houdini do pensamento, que sempre soube que “ensinar é fazer uma viagem”.


Alberto Azcárate
atualmente radicado em Madrid, é músico e escritor.

Fonte: Centro de Estudos Claudio Ulpiano

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