julho 20, 2012

"Os ratos de Hitler", por Mário Bentes

PICICA: "Desde o começo, no início dos anos 70, quando a história passou a ser lançada em séries de jornal e na revista Raw, editada pelo próprio Art Spiegelman, outro elemento chamou atenção, além dos relatos. Art optou por retratar diferentes nacionalidades como animais e, desde então, vem sendo questionado – e criticado – sobre isso. Os judeus são ratos (‘maus’, em alemão), enquanto os alemães são gatos; os poloneses são porcos, os franceses são sapos, os estadunidenses cachorros, os suíços renas e os britânicos peixes. “Nunca quis resumir o livro a uma mensagem. Não queria convencer ninguém de coisa alguma”. A citação é do próprio Spiegelman, em um capíulo especial produzido em fevereiro de 1987 e inserido na obra original no início dos anos 90, quando Maus ganhou a versão completa com todas as partes reunidas."

Os ratos de Hitler

Publicado por Mário Bentes em 18 de julho de 2012 em QUADRINHOS ·
Mickey Mouse é o ideal mais lamentável de que se tem notícia (…) As emoções sadias mostram a todo rapaz independente, todo jovem honrado, que um ser imundo e pestilento, o maior portador de bactérias do reino animal, não pode ser o tipo ideal de animal (…) Abaixo a brutalização do povo propagada pelos judeus! Abaixo Mickey Mouse! Usem a suástica!” – artigo de jornal, Pomerânia, Alemanha, meados da década de 1930.
 

A ideia de Maus, história em quadrinhos de Art Spiegelman, era ir além do horror do holocausto judeu, das câmaras de gás e dos fornos. O objetivo do autor, quando fez uma série de entrevistas com seu pai, Vladek Spiegelman, sobrevivente de Auschwitz, era compreender os acontecimentos e seus bastidores a partir do relato de um sobrevivente.

Desde o início, Art buscou ser sincero em seu relato, mostrando, ao longo da história, não apenas a reconstituição dos fatos contados por seu pai, mas incluindo os momentos em que se encontravam para as entrevistas. Há de tudo: do histórico desentendimento entre os dois, as manias do pai em não desperdiçar um grão de comida sequer até o racismo adquirido por Vladek contra negros, após a guerra.

O maior trunfo de Maus está justamente nisso: na falta de glamourização na figura do sobrevivente. Ele não é tratado como um herói, como um super-humano; mas justamente pelos destaques pessoais que o tornam simplesmente humano: os defeitos, as idiossincrasias, na avareza. Na fraqueza do corpo, na saudade da esposa Anja que se suicidou, sem maiores explicações, após a guerra.

‘Meu pai sangra História’

 

Desde o começo, no início dos anos 70, quando a história passou a ser lançada em séries de jornal e na revista Raw, editada pelo próprio Art Spiegelman, outro elemento chamou atenção, além dos relatos. Art optou por retratar diferentes nacionalidades como animais e, desde então, vem sendo questionado – e criticado – sobre isso.

Os judeus são ratos (‘maus’, em alemão), enquanto os alemães são gatos; os poloneses são porcos, os franceses são sapos, os estadunidenses cachorros, os suíços renas e os britânicos peixes.
“Nunca quis resumir o livro a uma mensagem. Não queria convencer ninguém de coisa alguma”. A citação é do próprio Spiegelman, em um capíulo especial produzido em fevereiro de 1987 e inserido na obra original no início dos anos 90, quando Maus ganhou a versão completa com todas as partes reunidas.

A culpa

É nessa parte que Art mostra que, além do sucesso de crítica, vendas e das premiações – Maus ganhou, em 1992, um especial do Prêmio Pulitzer –, também veio uma certa dose de culpa. Prestes a ser pai, ele se consultava regularmente com um psicólogo (Pavel, outro judeu sobrevivente), onde falava sobre os problemas e sobre o fardo de Maus. Ele chega a retratar a si mesmo caminhando entre pilhas de ratos humanóides mortos.

A sinceridade na obra também está nisso: Art não foi sincero apenas ao falar sobre o pai, mas sobre si mesmo. Ele conta, por exemplo, qual foi a reação do pai ao ver uma história em quadrinhos de Art publicada em uma revista underground em que conta os bastidores do suicídio da mãe, e a culpa que sentia por isso.

 

Em um capítulo especial adicionado na versão completa de “Maus”, Art Spiegelman mostrou a culpa que carregava pela obra.

Mais culpa

Retratando a si mesmo como criança nessa parte, Art mostra como se sentia diminuído em relação ao próprio pai, por não ser um sobrevivente como ele e como este fato era justamente a razão dos desentendimentos entre ambos. Art achava que o pai sempre queria ter razão, que sempre poderia sobreviver… “culpa por ter sobrevivido”.

Spiegelman não deixa de retratar também a frieza da mídia, com perguntas ofensivas e, de certo modo, motivadas por questões pessoais, como um repórter alemão (ele usava uma máscara de gato no capítulo especial) que perguntava se os alemães de hoje, que nasceram após a Segunda Guerra Mundial, deveriam se sentir culpados pelo nazismo. Ou do repórter judeu de Israel (com máscara de rato), que perguntou que animais representariam os judeus israelitas.

Horror

Maus também não deixa de mostrar o que a História sempre soube, após a guerra, mas o faz sempre com o elevado tom visceral da sinceridade dos relatos do pai de Art, Vladek. Como os judeus que colaboravam com os alemães, por dinheiro. Como a ‘causa’ nazista ganhou corações e mentes na Polônia a tal ponto dos judeus serem considerados ‘não-humanos’ também pelos poloneses. Como os judeus poloneses sobreviventes eram mortos ao tentar reaver os bens saqueados na Polônia.



Claustrofóbico em alguns momentos, Maus releva a agonia de Vladek e Anja Spiegelman sendo, aos poucos, desintegrados de sua grande família. Como cada um, indo de um lado a outro, tentando simplesmente sobreviver, e não raramente desaparecendo. Vladek conta como conseguiu sair de um gueto, junto com sua mulher, Anja, após subornar guardas alemães.

Conta como viu, no dia seguinte, o desespero do sogro, o Sr. Zylberberg, diante da janela, que arrancava os próprios cabelos por saber (ainda que tarde demais) que, por ser velho, não seria alvo de negociação com os guardas alemães mesmo sendo milionário. Por saber que a morte aguardava um homem impotente diante disso.

Uma tragédia que, ‘democrática’, que não deixou ninguém de fora, nem as crianças – como o pequeno Richieu, primeiro filho de Vladek e Anja. O menino foi morto junto com os primos pela própria tia, Tosha, que preferiu dar veneno a eles e a si mesma a ver de perto as câmaras de gás.
Mas, apesar de tudo e por ser “a história de um sobrevivente”, Maus conta o seu final feliz: o reencontro de Vladek e Anja, separados quando foram capturados e levados para Auschwitz.
Uma sequência simples, contada em apenas dois quadrinhos, em uma página, que se conclui no ‘presente’, enquanto Vladek contava a história para Art e quando o sobrevivente comete o tocante ato falho de falar o nome do filho morto na guerra, e não do segundo, que conta sua história.



“Estou cansado de falar, Richieu. Chega de histórias por hoje…”

Vladek, o sobrevivente de Maus, finalmente morreu. No dia 18 de agosto de 1982, de ataque cardíaco. Foi supultado ao lado de Anja, que se suicidou em 21 de maio de 1968. 

Fonte: Revista Babel

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