PICICA: "A grande imprensa não só exerce a desinformação como também a utiliza
como um código, uma gramática normativa dessa prestidigitação diária. Os
nossos bravos “cães de guarda” sabem que devem se ater a esse conjunto
de normas que sofre permanentes reajustes e atualizações. Disso depende o
prestígio no campo jornalístico e a própria manutenção do emprego.
Sabem que o verdadeiro diploma que o patronato quer é um atestado diário
de fidelidade à ideologia das corporações."
Gilson Caroni Filho – STF: imprensa prepara espetáculo da carta jogada
Por Gilson Caroni Filho(*)
O presidente
nacional do PSDB, Sérgio Guerra, e o jornalista Merval Pereira tocam
instrumentos diferentes, mas nada impede que atuem na mesma fanfarra
quando o assunto é a proximidade do julgamento do chamado “mensalão”.
Anos a fio, cada qual no seu campo específico, foram companheiros da
banda de música do consórcio demotucano. Não surpreende, assim, a total
semelhança entre o artigo do colunista, publicado no jornal O Globo, em
12 de junho, e a declaração de Guerra sobre uma suposta ofensiva do PT e
do ex-presidente Lula contra o Supremo Tribunal Federal (STF), que
representaria uma ameaça ao regime democrático.
“Vivemos um momento grave. Uma crise
institucional. A democracia no Brasil está ameaçada. O Lula e o PT
ameaçam o STF e o Procurador-Geral da República. Isso nunca aconteceu na
história do país” (Sérgio Guerra, no encontro de pré-candidatos da
legenda).
“Alegando que o “monopólio da mídia”
quer condená-lo a qualquer custo, Dirceu exige um “julgamento técnico”,
mas, no discurso, diz que “este julgamento é uma batalha política” que
“deve ser travada nas ruas também”, marcando não apenas a contradição
entre suas palavras e atos, mas, sobretudo, uma ameaça de pressão
ilegítima de forças do aparelho partidário sobre o Supremo Tribunal
Federal nunca vista antes”(Merval Pereira, em sua coluna de 12/06, no
diário da família Marinho).
O jornalista, um imortal sob encomenda,
toca violino e o deputado arrisca no bumbo. O jornalista tenta lidar com
o vernáculo simulando fluência e elegância, esgrimindo sua cantilena
com graciosa malignidade. Já o estilo do deputado está mais para
manifesto udenista às vésperas de golpe. Mas o colunista e o parlamentar
estacionam na mesma calçada da crítica veemente aos que insistem em
denunciar o enredo midiático do “escândalo” e seus melancólicos
intérpretes.
Fica a impressão de que ambos se apressam a dizer o que os outros querem ouvir com sofreguidão de primeiro da classe na hora da prova da chamada oral. Mas esta lição aprende-se depressa, como veremos abaixo. O jornalismo, como já definiu Bernardo Kucinski (2000:173)*, “é intervenção, é conhecimento em ação: implica escolhas, opções, direções a seguir, com diferentes consequências”* E bem conhecemos as escolhas da nossa imprensa partidarizada e seus métodos.
Bem mais que os 300 volumes da Ação Penal 470, estão novamente em questão a imprensa e seu poder de agenda. As regras do xadrez determinam que o rei não pode ficar em xeque e, para escapar à ameaça do mate, a mídia corporativa terá de se movimentar com intensidade no tabuleiro político.
Voltam à ribalta os arrazoados de seus Torquemadas, repletos de incongruências, adjetivações fáceis e contorcionismos de estilo. Ressurge uma sucessão de relatos que nunca comportaram o princípio do contraditório. Em suma, o que os ministros da mais alta Corte do país têm que superar é, acima de tudo, produto de um jornalismo de ilações e invenções, obra de manipulação contextual e de acusação sem apuração.
Uma farsa que, como já tive oportunidade de escrever aqui mesmo, espera averbação judicial que legitime sua narrativa. Ou melhor, uma força que pretende legislar, submetendo o Judiciário aos mesmos constrangimentos impostos ao Executivo e ao Legislativo.
Querer não é necessariamente poder. E é justamente na distância entre esses dois verbos que repousam, agora, as preocupações do baronato midiático. Dela darão conta, além de Merval Pereira e outros articulistas, cientistas políticos e juristas de viés ideológico conhecido. O que teremos em telas e páginas? A intensificação de processos conhecidos. Métodos de desinformação que decorrem de uma escolha ético-política.
Teremos a multiplicação dos títulos inexatos ou tendenciosos para uma notícia fielmente escrita; uso tendencioso de aspas e adjetivos; editorialização do noticiário; distorção de fatos, mantendo uma parte da verdade, de modo que a inexatidão proposta pelo resto da notícia pareça verossímil; simulação de objetividade e desequilíbrio de informações.
A grande imprensa não só exerce a desinformação como também a utiliza como um código, uma gramática normativa dessa prestidigitação diária. Os nossos bravos “cães de guarda” sabem que devem se ater a esse conjunto de normas que sofre permanentes reajustes e atualizações. Disso depende o prestígio no campo jornalístico e a própria manutenção do emprego. Sabem que o verdadeiro diploma que o patronato quer é um atestado diário de fidelidade à ideologia das corporações.
Merval Pereira, o nosso “imortal” de coletânea, teria, como seus pares, condições para ser cidadão da modernidade. No entanto, como fiéis súditos de Macunaíma preferem alimentar o discurso primitivo de um Sérgio Guerra qualquer. No fundo, todos se merecem. Conluiados no propósito de desestabilizar o governo, nos próximos dias estarão empenhados em sair do ridículo e reinventar a roda. Um exercício inútil.
* Kucinski, Bernardo. Jornalismo Econômico.São Paulo, Edusp, 2000.
*Gilson Caroni Filho é professor de sociologia e colabora com o “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Traço de Mestre“.
Fonte: Quem tem medo da democracia?
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