julho 17, 2012

"Vidas que precisam ser curadas", por Fabiano Camilo (Amálgama)


PICICA: Na audiência pública na Câmara, o deputado João Campos aduziu a seguinte alegação para justificar o PDC n. 234/11: “Um dos princípios básicos da ética médica é a autonomia do paciente. É como se o Conselho Federal de Psicologia considerasse o homossexual um ser menor, incapaz de autodeterminação”. Nessa fala, entrecruzam-se os três principais argumentos falaciosos do cristianismo fundamentalista: a sobredeterminação do individual sobre o social, a vontade soberana do indivíduo e os direitos absolutos. O indivíduo não tem um passado, o imaginário não o constitui como um sujeito (possível), ao circunscrevê-lo em posições de um estrutura de relações sociais e de poder interdependentes, temporalmente construída e, portanto, contingente. O indivíduo existe externamente a todo o social. O sofrimento que experimenta não tem de nenhum modo ligação com a sociedade onde vive. É exclusivamente parte de sua constituição. Não é um sofrimento tornado factível culturalmente. A vontade desse indivíduo associal sem passado deve sempre prevalecer. Seu direito absoluto se impõe sobre todo dever de responsabilidade médica e psicológica, mesmo se o sofrimento que possa estar experimentando estiver prejudicando sua cognição e sua volição. A relação entre o médico ou o psicólogo e o paciente degenera-se em uma relação contratual pecuniária, onde o paciente tem o direito de tudo exigir do profissional de saúde, que não sofre nenhuma restrição ética no exercício de sua atividade.


Vidas que precisam ser curadas

Ao sobrepor o "conhecimento científico" ao dogma, as religiões terminam por atestar o próprio fracasso.

por Fabiano Camilo (16/07/2012)
em Brasil, Sociedade



Há cerca de dez anos, durante uma festa de Ano Novo, dois amigos e eu nos envolvemos, não me recordo como, em uma tensa conversa sobre homossexualidade, com o na época namorado da anfitriã. Maneira melhor de nós três nos divertirmos aquela noite não havia, claro. A certa altura, a paciência dos meus amigos se esgotou e eles se retiraram. Eu, idiota teimoso, me mantive firme. Em determinado momento, o diálogo se converteu em um monólogo em que as frases invariavelmente começavam com o sintagma: “[Vocês] os gays”, “[Vocês] os gays”, “[Vocês] os gays”. Meu ânimo para contestar se extinguira, porque conversávamos havia bastante tempo e porque eu percebera que não tinha meios para rebater as afirmações do meu interlocutor. Não se baseavam nem na experiência nem no conhecimento, eram uma crença baseada em um imaginário heteronormativo e homofóbico. Ele acreditava que os homossexuais masculinos eram exatamente como ele os representava. Eram, por exemplo, pessoas mais cruéis do que as pessoas heterossexuais – mais cruéis do que as mulheres heterossexuais, inclusive. No seu imaginário, não existia os homens homossexuais, mas o homossexual masculino, que pode ser definido como um personagem fictício, constituído de uma essência que se mantém estável do nascimento à morte e que se expressa no conjunto das suas emoções, dos seus pensamentos, das suas expectativas e das suas ações. Todos os homens gays são compostos por essa essência, nenhum deles é um indivíduo, com uma trajetória de vida e características particulares, cada um deles é um o homossexual.


Ele não era religioso, o ex-namorado da minha amiga. Relato a história porque, formalmente, a crença dele é idêntica à crença dos cristãos fundamentalistas que apregoam que a homo e a bissexualidades, o travestismo e a transexualidade são doenças que devem ser curadas. Todos os gays, todas as lésbicas, todos os homens bissexuais, todas as mulheres bissexuais, todas as travestis, todos os homens transexuais e todas as mulheres transexuais estão doentes. A diferença é que, na perspectiva religiosa fundamentalista, a doença é uma falsa essência, uma essência que se justapõe à verdadeira, tornando-a enferma e controlando-a, passando, assim, a constituir uma segunda essência, que faz gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais serem como são e agir como agem – mas uma essência doentia que pode ser tratada.


Há duas contradições na crença cristã contemporânea de que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade são doenças.


(1) Não há, na Bíblia, nenhum versículo que proclame ou, ao menos, sugira que são doenças. Trata-se de uma crença que não possui fundamento no livro sagrado do cristianismo. Quem o diz não sou eu, mas o renomado e insuspeito filósofo Olavo de Carvalho. As próprias identidades homo e bissexual, que não existiam na sociedade hebraica antiga, não configuram pecados. O que as leis transmitidas por Deus a Moisés condenam são práticas: “Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação” (Bíblia, A. T. Levítico, 18:22). Caso permaneça vigente a interdição às terapias de reversão de sexualidades patológicas, exarada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), na Resolução n. 1/99, os cristãos fundamentalistas inconformados poderiam, como último recurso, tentar restaurar, com base nos direitos constitucionais à liberdade de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos (Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 5º, VI), a arcaica penalidade divina prescrita aos praticantes de atos homoeróticos: “O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação; deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles” (Bíblia, A. T. Levítico, 20:13).


(2) Uma doença não pode ser, concomitantemente, um pecado. Todo pecado, mesmo se na forma de um pensamento ou de uma omissão, é uma ação. O homem é pecador: ele peca, ele comete pecados, mas ele não sofre pecados, sofre (de arrependimento ou dos castigos infligidos por Deus) pelos pecados cometidos. Para pecar, o homem precisa agir. A doença, contrariamente, não é uma ação. O homem adoece, ou seja, torna-se doente: ele está doente, ele tem uma doença, ele sofre uma doença ou de doença. A doença é uma condição do corpo, um estado que pode ser transitório ou contínuo. O homem pode persistir na prática de um ato pecaminoso, mas ele não tem um pecado, ele comete reiteradamente um pecado. Uma doença pode ser uma punição divina por um pecado – como pode decorrer também de uma maldição ou de uma possessão demoníaca –, uma consequência de um ato pecaminoso, mas uma doença (condição, estado), supondo-se que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade sejam patologias, conforme prega o cristianismo fundamentalista e a psicologia cristã, não pode ser, simultaneamente, um pecado. Em consonância com o texto bíblico, a doutrina católica não concebe a homo e a bissexualidades (condições, estados) como pecados, o pecado é o ato homoerótico, prática sexual contra natura.[*] Se não pode uma doença ser um pecado, tampouco pode ser a causa de um pecado. Uma doença não conduz a uma ação, apenas uma decisão pode conduzir a uma ação. Se pecar é agir, para pecar o homem precisa decidir, consciente ou inconscientemente, agir. A causa de um pecado é sempre uma decisão. A tentação incita o homem a pecar, mas não o obriga a pecar. Uma doença, mantendo-se a suposição de que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade sejam patologias, pode tentar o homem, tornando-o doente de desejo, porém ele deve resistir à tentação. Se peca, é porque, não conseguindo resistir, decidiu pecar.

A via proposta pela autodenominada psicologia cristã ao paciente é um subterfúgio. Ao sobrepor o “conhecimento científico” ao dogma, as religiões terminam por atestar o próprio fracasso. A fé, por si, não opera o milagre da retificação do desejo, não é suficiente para garantir que o cristão consiga se conservar obediente às leis divinas. Assim, a ciência psicológica cristã, que prova que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade são doenças, vem em amparo às religiões, para confirmar a verdade da crença. Ao invés de o cristão confrontar somente com a força da fé o terrível desejo que atormenta sua alma, um caminho complementar e menos difícil de ser percorrido lhe é ofertado, o tratamento para a doença da qual padece e que é responsável por ele pecar. O desejo pecaminoso é o sintoma. As possíveis incompatibilidades entre o conhecimento científico e o dogma religioso são facilmente superadas porque não há, com efeito, nenhuma incompatibilidade. O conhecimento produzido pela psicologia cristã não passa de um pseudoconhecimento, um empreendimento que sempre confirma a crença, independentemente dos fatos empíricos.


Na audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, no Dia Internacional do Orgulho LGBT, 28 de junho, para discutir o Projeto de Decreto Legislativo n. 234/11, que susta a aplicação de dois dispositivos da Resolução n. 1/99 do CFP, a psicóloga cristã Marisa Lobo declarou: “A ciência ainda não tem entendimento do que é a homossexualidade. Não tem pesquisa que se comprove que a homossexualidade é genética”. Julgo que não devemos nos preocupar em demonstrar que a ciência logrou produzir um entendimento do que seja a homossexualidade. Essa empresa apenas nos mantém aprisionados no círculo dos pressupostos equivocados que informam a psicologia cristã. Os desejos homo e bieróticos não precisam ser entendidos, tampouco o travestismo e a transexualidade. A convicção de que essas subjetivações e experiências demandam uma explicação (científica) pressupõe, fatalmente, que a heterossexualidade e a cisgeneridade corporifiquem subjetivações e experiências naturais, normais, que carecem de ser explicadas, em relação às quais todas as demais, conquanto possam não ser classificadas como doenças, transtornos, distúrbios ou perversões, consistem em afastamentos, desvios, excecionalidades. Se é necessário compreender a homo e a bissexualidades, o travestismo e a transexualidade, então é forçoso compreender também a heterossexualidade e a cisgeneridade.


Nas palavras de Marisa Lobo, interessa apreender, antes de tudo, o significado do não enunciado, que desautoriza sua própria enunciação: “A ciência ainda não tem entendimento do que é a homossexualidade”. Poderíamos nos limitar a observar, ironicamente, que a ciência não tem entendimento, mas a célebre psicóloga cristã e seus pares não têm nenhuma dúvida. Podemos avançar, porém. Embora a psicologia cristã não seja reconhecida por nenhuma vertente da psicologia, tampouco por outras áreas das humanidades ou pela medicina, seus adeptos afirmam com veemência que aquilo que fazem é ciência.[**] Por conseguinte, para Marisa Lobo, seu pensar e seu fazer são científicos, estão de fato e de direito no campo da ciência. Se a ciência não tem entendimento do que seja a homossexualidade, então a tese da psicóloga cristã, que se pretende científica, também não pode ser considerada um entendimento, não sendo mais verossímil e confiável do que as demais existentes – as quais, contudo, em conjunto ofereceriam, ao menos, a segurança de entendimento conferida pela superioridade numérica, a segurança de um consenso mínimo. Imaginemos uma situação onde nenhuma vertente de uma ciência produz um entendimento acerca de uma questão, o que equivale à própria área não produzir um entendimento. Se uma das vertentes atesta que um fenômeno é uma doença, enquanto as outras nove sustentam o contrário, é dispensável possuir conhecimento científico especializado, somente bom senso, para decidir qual, dentre as dez, provavelmente é a menos verossímil e confiável. Inconscientemente, ao tentar conferir à sua tese legitimidade – tratava-se não de uma discussão científica, mas de uma discussão exclusivamente política – e potencial de convencimento, a psicóloga a refutou, nos seus próprios termos.



A psicologia cristã e os congressistas cristãos fundamentalistas contestam a autoridade institucional do CFP, condenando o arbítrio e o autoritarismo da Resolução n. 1/99, que exorbitou do poder regulamentar da entidade administrativa (Lei n. 5.766/71, Art. 1º, Art. 6º, b, c, d, e). Consequentemente, surge para o Congresso Nacional o encargo de sustar os dispositivos inconstitucionais (Art. 3º-4º) do ato normativo, em obediência à Constituição Federal (CF, Art. 49, V). Na justificativa do PDC n. 234/11, o deputado federal João Campos (PSDB-GO) argumenta que o CFP extrapolou seu poder regulamentar, estabelecendo obrigações e restringido direitos – o direito do psicólogo de trabalhar e o direito de todo indivíduo de receber orientação profissional –, mediante um ato administrativo. A autarquia usurpou portanto a competência do Poder Legislativo, “com graves implicações no plano jurídico-constitucional”, ao ilegitimamente inovar a ordem jurídica, em desrespeito ao princípio que consigna que apenas a lei formal pode criar direitos e impor obrigações, positivas ou negativas (CF, Art. 5º, II).


Seria certamente muito proveitosos os resultados de uma pesquisa que se dispusesse a inventariar quantos projetos de decreto legislativo foram apresentados, desde a promulgação da Constituição de 1988, com o objetivo de sustar resoluções que teriam restringido “o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional”, expedidas por conselhos federais fiscalizadores de profissões regulamentadas. A iniciativa toda assume a forma de um simulacro de defesa de uma ordem jurídica gravemente ameaçada. Similarmente, contra o Projeto de Lei da Câmara n. 122/06, que criminaliza o preconceito e a discriminação de gênero e de orientação sexual, a forma assumida é a da defesa dos direitos à livre manifestação do pensamento (CF, Art. 5º, IV), à liberdade de atividade intelectual e de comunicação (CF, Art. 5º, IX) e à inviolabilidade da liberdade de crença (CF, Art. 5º, VI), implicitamente elevados ao status de direitos absolutos, em detrimento da hermenêutica constitucional.


A dificuldade enfrentada ao se tentar refutar uma crença é o fato de que tende a permanecer irrefutável, aos olhos de quem crê. Uma eventualidade, uma exceção, um argumento ad hoc sempre podem ser alegados para que se prove que a crença se conserva verdadeira. Em 1974, a Associação Americana de Psicologia (APA) retirou o homossexualismo da lista de doenças mentais do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, reclassificando-o como distúrbio de orientação sexual. Em 1980, o homossexualismo foi retirado em definitivo da obra.[***] No Brasil, em 1985, em plena epidemia de AIDS e catorze anos antes do CFP, o Conselho Federal de Medicina (CFM) concluiu que o homossexualismo não é um desvio sexual. Em 1993, o homossexualismo foi excluído da relação de transtornos mentais e de comportamento da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial da Saúde (OMS). A Carta sobre os Direitos em Matéria de Sexualidade e de Reprodução, da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF), publicada em 1995 e adotada em versão reduzida pelo Ministério da Saúde, propõe que sejam reconhecidos como direitos sexuais e reprodutivos:


– Toda a pessoa é livre de poder desfrutar e de controlar a sua vida sexual e reprodutiva, no direito pelo respeito dos outros.


– Toda a pessoa tem direito de não estar sujeita ao assédio sexual, ao medo, vergonha, culpa ou outros factores psicológicos que prejudiquem o seu relacionamento sexual ou resposta sexual.
– Ninguém deve ser discriminado em relação à sua vida sexual e reprodutiva e no acesso aos cuidados de saúde.


– Nenhuma pessoa deve ser discriminada, ou vítima de violência, nomeadamente no quadro da vida sexual e reprodutiva.


– Toda as pessoas têm o direito de exprimir a sua orientação sexual, sempre respeitando o bem estar e o direito dos outros.


– Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão relativa à sua vida sexual e reprodutiva.


Em 2009, um relatório da APA, redigido por uma comissão especial, que revisou a literatura acadêmica acerca do tema disponível nos arquivos da entidade, concluiu que inexistem evidências de que a orientação sexual possa ser alterada por terapia.


Proposições como estas, não importando a competência e a reputação dos órgãos que as emitam, não são refutadas por meio de argumentação e demonstração científicas, muito embora a psicologia cristã reitere obstinadamente ser uma ciência, mas rechaçadas com a acusação de que são decisões políticas, anticientíficas portanto. Previamente a todo empenho para provar sua verossimilhança e confiabilidade, talvez pudéssemos reformular nossos pressupostos, asseverando que são, sim, discursos políticos – discurso políticos que auferem sua legitimidade e potencial de convencimento do conhecimento científico, competindo a quem os contesta refutar as teses em que se embasam. Possuem dois objetivos tais proposições. (1) Certificar que, durante muito tempo, prevaleceram teses falaciosas sobre sexualidade e gênero, as quais informaram as clínicas médica e psicológica, bem como políticas públicas, promovendo, direta ou indiretamente, discriminações, segregações, opressões e violências (físicas e psíquicas). Funcionam, pois, como (precárias) reparações simbólicas. (2) Estimular ações concretas que contribuam para a consecução de mudanças no mundo social, visando à erradicação ou, no mínimo, à profunda diminuição da homofobia, da transfobia e do sexismo. Essa dimensão política perpassa também todos os estudos que, tanto no campo das humanidades como no das exatas, se esforçam, em alguma medida, para contribuir para a despatologização da homo e da bissexualidades e da transgeneridade. Evidenciá-la e assumi-la possibilita denunciar mais eficazmente a crença religiosa e os interesses políticos espúrios que se dissimulam como conhecimento científico. Enquanto o CFP estabelece normas de atuação profissional, as religiões cristãs fundamentalistas e a psicologia cristã se dedicam à preservação e à instituição de normas que regulem os valores, os desejos, os afetos e os relacionamentos, ou seja, ao extermínio das alteridades e ao controle das formas de vida. Se meu discurso está situado em uma posição onde é atravessado por relações de poder, não sendo neutro, imparcial e desinteressado, o discurso do meu adversário político também está. Ao invés de mimetizarmos a tática dos nossos opositores – meu discurso é científico, seu discurso é político –, em um debate acusatório em que argumento e contra-argumento são idênticos, a assunção da dimensão política permite que a um discurso religioso que simula ser ciência contraponhamos um discurso político baseado no conhecimento científico.


A contestação recorrente à tese pseudocientífica de que a homo e a bissexualidades e a transgeneridade são doenças consiste em argumentar, com vitimismo, que ninguém opta por sua orientação sexual e que ninguém escolhe ter uma subjetividade em desacordo com o sexo biológico. Destarte, não seria possível alterar aquilo que é uma determinação natural, pressupõe-se. Entretanto, Marisa Lobo não está errada quando afirma que não está cientificamente comprovado que a homossexualidade seja determinada pela herança genética. A sexualidade e o gênero de um indivíduo não são meras determinações de informações contidas nos genes, pelo simples motivo de que um indivíduo não é um código genético. As relações dos genes com a sexualidade e o gênero, quaisquer que sejam, não são o único fator relacional em atuação. O ser humano se torna um indivíduo em um processo de socialização em que adquire cultura. No longo passado da humanidade, a sexualidade e a generidade foram experiências culturalmente diversificadas, como o são também no presente. Experiências diversificadas tanto interculturalmente, como também intraculturalmente. O determinismo biológico permanece sem conseguir propor uma explicação satisfatória, capaz de conciliar a orientação sexual e o gênero determinados geneticamente com o fato da variedade de significações culturais existentes, no passado e no presente, para as práticas sexuais e as identidades de gênero.


Uma interpretação da sexualidade e da generidade humanas como fenômenos instáveis, fluidos, moventes não significa validar a tese da psicologia cristã, pelo contrário. A psicologia cristã não defende e jamais defendeu que seja possível mudar a orientação sexual e o gênero. Toda declaração sustentando que seja é falsa. Não ocorre efetivamente uma mudança – porque existe apenas uma orientação sexual –, mas tão-somente a cura de uma doença, a passagem de um estado mórbido para um estado saudável. Se a psicologia cristã acreditasse que é possível mudar tanto a sexualidade, de homo ou biorientada para heteorientada, como o gênero, de transgênero para cisgênero, seria obrigada a admitir que o reverso também é possível. Todavia, esta hipótese não é admissível, porque desmente a crença que fundamenta a prática pseudoterapêutica.


O abandono da ideia da sexualidade e do gênero como fenômenos estáveis e fixos, como determinações que condicionam o indivíduo do nascimento à morte, é um desdobramento da passagem de uma ideia de “liberdade como liberdade de ser o que se é” para uma ideia de “liberdade como liberdade de ser o que se quiser ser”. “A liberdade de ser o que se é” é a liberdade de ser aquilo que se determinou que se deve ser.


Não seria legítima a vontade de um indivíduo de modificar sua orientação sexual ou a vontade de um indivíduo de que sua subjetividade esteja em acordo com seu sexo biológico? Sim, indubitavelmente. Contudo, é necessário perguntar: por que alguém iria querer mudar sua orientação sexual ou iria querer que sua subjetividade estivesse em conformidade com seu sexo biológico? No Ocidente, todos os indivíduos somos submetidos a um processo de socialização que tem por finalidade transformar os corpos em homens heterossexuais e mulheres heterossexuais, processo que, no senso comum, é concebido como o conjunto das ações que constituem o aprendizado imprescindível das emoções, das representações, dos valores, dos interesses e das práticas consubstancialmente específicos de cada um dos dois gêneros, incluído o aprendizado fundamental, o da forma de manifestação natural do desejo, a orientação para o gênero oposto. Há um evidente paradoxo. Se o heteroerotismo é a disposição natural do desejo, não deveria ser indispensável que todo indivíduo fosse submetido, desde o nascimento, a um totalizante, rígido e, por vezes, violento processo de subjetivação desejante, pois o desejo pelo gênero oposto afloraria naturalmente, de uma maneira ou de outra, em determinado momento. Se todo indivíduo tem um sexo natural, ninguém deveria ser submetido, desde o nascimento, a um totalizante, rígido e, por vezes, violento processo de aprendizado da masculinidade ou da feminilidade, para que sua subjetividade esteja de acordo com o sexo que lhe foi destinado ao nascer, seu sexo biológico. Ninguém sofre porque seu desejo é homo ou bierótico, mas porque vive em uma sociedade heteronormativa e homofóbica. Ninguém sofre porque é travesti ou transexual, mas porque sua subjetividade está em desacordo com o sexo que a sociedade lhe determina compulsoriamente como sendo sua natureza biológica.


Na audiência pública na Câmara, o deputado João Campos aduziu a seguinte alegação para justificar o PDC n. 234/11: “Um dos princípios básicos da ética médica é a autonomia do paciente. É como se o Conselho Federal de Psicologia considerasse o homossexual um ser menor, incapaz de autodeterminação”. Nessa fala, entrecruzam-se os três principais argumentos falaciosos do cristianismo fundamentalista: a sobredeterminação do individual sobre o social, a vontade soberana do indivíduo e os direitos absolutos. O indivíduo não tem um passado, o imaginário não o constitui como um sujeito (possível), ao circunscrevê-lo em posições de um estrutura de relações sociais e de poder interdependentes, temporalmente construída e, portanto, contingente. O indivíduo existe externamente a todo o social. O sofrimento que experimenta não tem de nenhum modo ligação com a sociedade onde vive. É exclusivamente parte de sua constituição. Não é um sofrimento tornado factível culturalmente. A vontade desse indivíduo associal sem passado deve sempre prevalecer. Seu direito absoluto se impõe sobre todo dever de responsabilidade médica e psicológica, mesmo se o sofrimento que possa estar experimentando estiver prejudicando sua cognição e sua volição. A relação entre o médico ou o psicólogo e o paciente degenera-se em uma relação contratual pecuniária, onde o paciente tem o direito de tudo exigir do profissional de saúde, que não sofre nenhuma restrição ética no exercício de sua atividade.


O PDC n. 234/11 é somente um de uma série de projetos legislativos apresentados nos últimos anos que possuem em comum a característica de afrontar o princípio constitucional da laicidade do Estado e os direitos individuais. É um indício o fato de que tenha sido proposto doze anos após a edição da Resolução n. 1/99 do CFP, por um deputado membro da bancada evangélica. Em novembro de 2011, o Ministério Público Federal (MPF), pela Procuradoria da República do Rio de Janeiro, impetrou uma ação civil pública requerendo à Justiça Federal que declare a inconstitucionalidade dos artigos 3º e 4º da Resolução n. 1/99. Sabe-se que um dos procuradores que assinaram a ação é evangélico. Entre outras proposições legislativas que atentam contra a laicidade estatal e os direitos individuais, pode-se citar: PL n. 478/07, PDC n. 52/2011, PDC n. 224/2011, PDC n. 312/2011, PDC n. 325/2011, PL n. 377/2011, PL n. 1190/2011, PEC n. 164/2012, PDC n. 566/2012. Todas integram o processo de recrudescimento do conservadorismo religioso na sociedade brasileira, que ultrapassa as fronteiras dos templos religiosos e dos lares católicos e evangélicos, ramificando-se pelas instituições estatais, de onde seus agentes travam uma guerra espiritual para assegurar a imposição dos seus valores a toda a população.


——


PS: A ineficácia das terapias de reversão da sexualidade e do gênero, constatada, por exemplo, pela APA, não refutaria a ideia da sexualidade e da generidade humanas como fenômenos instáveis, fluidos, moventes? Não. Impor a alguém uma orientação sexual e um gênero, como se faz em nossa sociedade, com ou sem terapia, é muito diferente de se garantir ao indivíduo a liberdade de explorar sua orientação sexual e os gêneros, se quiser, quando quiser e sempre que quiser.


——


[*] Em rigor, a sodomia não é um ato sexual envolvendo dois ou mais homens. A sodomia é o sexo anal, classificado como prática contra natura, porque não reprodutiva. Portanto, a sodomia é um pecado se praticado tanto em um intercurso sexual homoerótico, como em um intercurso sexual heteroerótico.


[**] Nada existe de análogo à absurda psicologia cristã no âmbito das outras áreas das humanidades que também se interessam pelos temas gênero e sexualidade. Inexiste uma sociologia cristã (do gênero e da sexualidade), uma antropologia cristã (do gênero e da sexualidade), uma história cristã (do gênero e da sexualidade).


[***] A transgeneridade, definida como transtorno de identidade de gênero, continuou sendo classificada como patologia pelo Manual da APA

Fabiano Camilo

 
Bacharel em história, historiador interrompido, estudante.

Fonte: Amálgama

Nenhum comentário: