PICICA: "Nietzsche nos dá um conselho: “torna-te
quem tu és”. Mas o que isso quer dizer? É preciso, antes de mais nada
fugir de todas as interpretações negativistas, derrotistas, niilistas
e mecanicistas. Não estamos na frente do oráculo de Delfos lendo:
“conhece a ti mesmo”. O tornar-se quem se é passa diretamente por uma
análise das forças que constituem o homem e estas forças estão para além
de qualquer identidade. Aquele que segue por esta via deve desistir,
porque deixa de tentar se superar e faz o contrário do que Nietzsche
escreve, caindo invariavelmente no niilismo negativo ou reativo.
Tornar-se quem é significa afirmar as
forças que o constituem, que querem dominar, crescer. Trata-se, em
Nietzsche, sempre de uma afirmação mais forte que a negação. A
felicidade da existência só pode estar em ela ser o que é! O que é a
existência? Ora, Vontade de Potência, nada além disso, não poderia ser outra coisa, e nós mesmos somos esta Vontade de Potência."
Nietzsche – “Torna-te quem tu és”
“Cumpramos o que somos, nada mais nos é dado” – Ricardo Reis, Odes
Nietzsche nos dá um conselho: “torna-te
quem tu és”. Mas o que isso quer dizer? É preciso, antes de mais nada
fugir de todas as interpretações negativistas, derrotistas, niilistas
e mecanicistas. Não estamos na frente do oráculo de Delfos lendo:
“conhece a ti mesmo”. O tornar-se quem se é passa diretamente por uma
análise das forças que constituem o homem e estas forças estão para além
de qualquer identidade. Aquele que segue por esta via deve desistir,
porque deixa de tentar se superar e faz o contrário do que Nietzsche
escreve, caindo invariavelmente no niilismo negativo ou reativo.
Tornar-se quem é significa afirmar as
forças que o constituem, que querem dominar, crescer. Trata-se, em
Nietzsche, sempre de uma afirmação mais forte que a negação. A
felicidade da existência só pode estar em ela ser o que é! O que é a
existência? Ora, Vontade de Potência, nada além disso, não poderia ser outra coisa, e nós mesmos somos esta Vontade de Potência.
“Torna-te quem tu és”, ou seja,
aproprie-se das forças que o constituem, tome parte no movimento de
auto-superação em curso constantemente dentro de si. O homem é um ponto
do universo onde uma enorme quantidade de forças se concentram e se
atravessam e por fim transbordam, uma roda que fira por si mesmo. Por
isso é preciso afirmar-se de tal modo que se possa ir sempre no limite
de si, expandindo-se.
As condições estão dadas, é preciso
apenas jogar o jogo, ou talvez jogar-se. Escolher os remédios certos,
estar sempre atento para seus próprio estados. Ser o senhor de sua saúde
e, talvez mais importante, de sua doença. Para Nietzsche, conhecer a si
próprio é cuidar de si próprio, exercitar-se nesta arte. Observar seus
sintomas de decadência e elaborar um diagnóstico preciso e prescrever os
remédios no hora certa.
Ao homem não resta nada mais para desejar
além daquilo que se foi, daquilo que se é e viver de tal forma que o
retorno de tudo seja uma bênção. Ser aquele que diz Sim! Que dá, que
afirmar a si mesmo e ao mundo. Não esconder-se na sobra de Deus, do
Estado, dos pais. Quem sou eu? Ora, e impossível responder porque o
tempo todo e preciso tornar-se quem se é! Quem ou o que somos?
Impossível!
Quanta verdade suporta um espírito? Pois
bem, não somos nada! Somos este caos que se perde nas bordas de si
mesmo, um animal na jaula, somos as ondas que batem contra o rochedo,
somos o deserto que se esparrama pelo mapa, por onde os ventos cruzam e
as dunas se movem. O homem deve aumentar o número de horizontes,
conjugar a verdade sempre no plural, criar e povoar desertos. Ele mesmo
deve ser o porta-voz da multiplicidade. Porque, afinal, é disto que ele é
feito!
Um homem que vingou faz bem a nossos sentidos; ele é talhado em madeira dura, delicada e cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor no que lhe é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece” – Nietzsche, Ecce Homo, Por que sou tão sábio?, §2
Deixar de negar-se, deixar de iludir a si
mesmo, deixar de se repartir e se esconder. “Sou fraco, sou um pecador,
sou um fracassado, não posso fazer nada”, em que mundo essa afirmação
poderia ser nietzschiana? Não! É necessário lutar contra a gravidade,
deslizar, dar fluência. O eu é uma ilusão criada pela precária
hierarquia interna do corpo. Mas estas forças que nos constituem estão
constantemente pressionando, arrastando, empurrando o homem de um lado
para o outro. Quem crê no sujeito são os fracos. Tornar-se quem se é
significa transvalorar os valores, escolher outros, novos, brilhantes.
Encontrar um modo de vida propício ao aumento de suas próprias forças
vitais. Quebrar a corrente de escravo, nem mestre nem Deus, não ter mais
nenhum senhor além de si mesmo.
Nietzsche ensina, com o Eterno Retorno, e consequentemente o Amor-fati, o duplo sim.
O asno em Zaratustra só sabe abaixar a cabeça, os barulhos que ele faz
lembra um “sim” animalesco. Ora, mas o camelo pede para carregá-lo de
muitos pesos e nem por isso é afirmador. Afirmar é afirmar duplamente, o
que foi e as forças de transformação, o que é e também as forças de
criação, é aqui que Nietzsche se afasta das doutrinas fatalistas e
passivas.
Afirmar a si mesmo é também afirmar as
condições do universo que tornaram as forças ativas possíveis. Neste
sentido, arrepender-se é errar duas vezes. É preciso, antes de mais
nada, dizer sim até para o que deu errado. Cada negação é uma semente
para o ressentimento. Digerir o tempo, aprender a necessidade do que
foi. Um sim sempre se multiplica na cadeia de eventos que o
possibilitou, “olhei para trás, olhei para frente, jamais vi tantas e tão boas coisas de uma só vez” (Nietzsche, Ecce homo).
Vencer o ressentimento, deixar de apontar
o dedo na cara dos outros procurando culpados. Deixar de apontar o dedo
para si mesmo, buscando ferir-se e limpar-se dos pecados. Não, é
preciso criar novos valores para tornar-se o que é. É preciso estar
sempre alerta, em estado de guerra, tornar-se guerreiro e preparar-se
para a batalha constante. O conhecimento de si não pode acontecer sem um
cuidado de si, que permite um crescimento contínuo, um vir a ser
infinito. Fazer de inimigos aliados, aprender a navegar nas tormentas.
“Primeiro princípio: temos de precisar ser fortes: senão nunca nos tornamos fortes” (Nietzsche, Ecce Homo). A grande saúde
passa por tornar-se o que é. Esta é a maior afirmação possível, é a
redenção da realidade, a possibilidade de transvaloração de todos os
valores, é o grande e esperado Sim que a vida aguarda e recebe
exultante.
“Sim, bem sei donde provenho:
Insatisfeito, como chama em seco lenho
Vou ardente e me consumo.
Tudo o que toco faz-se luz e fumo,
Fica em carvão o que foi minha presa:
Sou chama com certeza”
Insatisfeito, como chama em seco lenho
Vou ardente e me consumo.
Tudo o que toco faz-se luz e fumo,
Fica em carvão o que foi minha presa:
Sou chama com certeza”
– Nietzsche, Gaia Ciência, Rima Alemãs, §62
Fonte: Razão Inadequada
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