PICICA: "(...) Bowie dá uma ótima explicação sobre
porque escolheu o rock como forma de se apresentar ao mundo. E, creio,
define exemplarmente o que é aquilo que chamamos de rock hoje. “Eu amava
arte, amava o teatro e todas as formas pelas quais nos expressamos
culturalmente. Aí, concluí que o rock era uma ótima maneira de não ter
que abrir mão de minhas expectativas em relação a todas estas coisas.
Com o rock, eu poderia enfiar peças quadradas em buracos redondos. Era
só espedaçá-las até que coubessem. Foi mais ou menos o que tentei fazer:
um pouco de ficção científica e de teatro kabuki aqui, um pouco de
expressionismo alemão ali... Era como seu eu mantivesse todos os meus
amigos por perto”.
Foi colocando peças quadradas em buracos redondos que David Bowie
construiu sua persona mitológica. Fez isto até seus últimos dias. Blackstar é a última prova."
A derrota da timidez
POR Fábio Rodrigues Música | 11.01.2016
David Bowie morreu! A notícia chegou via telefone, com ponto de exclamação e tudo, juntamente com uma intimação: “Queríamos que você escrevesse sobre ele.” Foram duas bordoadas repentinas na já não tão jovem manhã de segunda-feira. O que eu poderia escrever sobre Bowie que já não tivesse sido escrito com mais profundidade e conhecimento?
A primeira coisa que me veio à cabeça foi a imagem do cantor mostrando o dedo (o popular “fuck off”) para um paparazzo que o flagrou andando pelas ruas de Nova York pouco tempo antes de Bowie lançar o disco The Next Day. Para quem não lembra, The Next Day foi o disco lançado em março de 2013, uma surpresa para fãs, jornalistas, curiosos etc., já que Bowie vivia um retiramento límbico desde 2004, quando um problema cardíaco o fez sumir dos olhos do público.
Pois é, David Bowie, o camaleão do rock, o homem que se reinventava a cada estação, que era capaz de sinalizar para onde o vento do show business soprava desde o início dos anos 1970 estava cansado. Retirou-se para uma vida discreta até onde é possível ter uma vida discreta neste mundo de celebridades instantâneas, ou quase. Reapareceu em 2013. E novamente agora, aos 69 anos. Pena que, desta vez, para apresentar seu testamento em forma de disco, Blackstar, lançado apenas três dias antes de sua morte ser anunciada.
Juntar Bowie e discrição em uma mesma frase pode parecer para muita gente uma contradição em termos. Afinal, Bowie reinventou a androginia no rock, expôs-se tanto no grand monde nova-iorquino quanto no underground berlinense, teve sua sexualidade discutida em prosa e verso, lançou mais de trinta discos, participou de duas dezenas de filmes, com destaque para Furyo, em Nome da Honra e O Homem que Caiu na Terra, viveu o papel principal de O Homem Elefante no teatro e, como já se disse, cansou de se reinventar e sinalizar novos caminhos para a pop music. Bowie durante muito tempo pareceu muito mais um sinônimo para excesso.
Na verdade, isso importa pouco. O homem que tomou o planeta na pele de Ziggy Stardust explicava a origem de suas mutações e máscaras como uma forma de vencer sua timidez. Esta seria a razão para que precisasse se reinventar tanto publicamente. De outro lado, tal e qual James Brown (e a rima não foi intencional) se considerava um workaholic, um trabalhador esforçado que perseguia objetivos.
Nascido em Brixton, bairro londrino, em janeiro de 1946, David Jones já carregava oito anos de fiascos musicais quando músicas como "Starman", "Rock’n’Roll Suicide", "Sufragette City" e "Ziggy Stardust", todas elas do disco The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, o transformaram em um astro. O nome fora trocado – e há uma certa ironia nisto – para evitar comparações com outro David Jones, este o cantor dos Monkees. E, como Bowie explicou em uma entrevista para a revista inglesa Mojo, de julho de 2002, nada caiu do céu.
“A verdade é que levou muito tempo para eu conseguir fazer as coisas direito. Não sabia como escrever uma canção, não era particularmente bom nisto, não tinha o chamado talento natural. Me forcei a ser um bom compositor, e me tornei um. Trabalhei muito para chegar lá. E o único modo pelo qual eu poderia aprender era vendo como os outros faziam”.
Jones/Bowie indubitavelmente aprendeu. E, ao longo da vida, viu seu nome associado a personagens como Marc Bolan, John Lennon, Brian Eno, Iggy Pop, Lou Reed, Carlos Alomar, Mick Jagger, Tony Visconti, Mick Ronson e tantos mais. Não mais como um aprendiz, mas como um igual, num troca-troca que o transformou em ícone de uma era. Outra imagem que me vem à cabeça é a de Rita Lee em sua fase com o grupo Tutti Frutti, um clone, espetacular, é verdade, mas um clone de Bowie.
Na mesma entrevista à Mojo, Bowie dá uma ótima explicação sobre porque escolheu o rock como forma de se apresentar ao mundo. E, creio, define exemplarmente o que é aquilo que chamamos de rock hoje. “Eu amava arte, amava o teatro e todas as formas pelas quais nos expressamos culturalmente. Aí, concluí que o rock era uma ótima maneira de não ter que abrir mão de minhas expectativas em relação a todas estas coisas. Com o rock, eu poderia enfiar peças quadradas em buracos redondos. Era só espedaçá-las até que coubessem. Foi mais ou menos o que tentei fazer: um pouco de ficção científica e de teatro kabuki aqui, um pouco de expressionismo alemão ali... Era como seu eu mantivesse todos os meus amigos por perto”.
Foi colocando peças quadradas em buracos redondos que David Bowie construiu sua persona mitológica. Fez isto até seus últimos dias. Blackstar é a última prova.
Fábio Rodrigues
Fábio Rodrigues é jornalista.
Fonte: Blog do IMS
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