janeiro 22, 2016

O desafio do comum vem dos Andes. Por Alejandra Santillana Ortiz (UNINÔMADE)

PICICA: "Resenha de Plurinacionalidad y Vivir Bien/Buen Vivir. Dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador, de Salvador Schavelzon. Quito: Abya Yala-CLACSO, 2015. 286 pags." 

O desafio do comum vem dos Andes

Por Alejandra Santillana Ortiz, em Corpus – archivos virtuales de la alteridad americana (dez. 2015) | Trad. UniNômade



PVBBV



Resenha de Plurinacionalidad y Vivir Bien/Buen Vivir. Dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador, de Salvador Schavelzon. Quito: Abya Yala-CLACSO, 2015. 286 pags.

Ao longo das últimas décadas, dois movimentos indígenas andinos, o equatoriano e o boliviano, colocaram a necessidade de transformar o estado, denunciando o seu caráter uninacional, colonial e oligárquico (Ospina, 2000). Os povos e nacionalidades indígenas mostraram o caráter de estados regidos por um pacto colonial que, ao longo de todo o período republicano, montaram um complexo sistema de dominação e exploração. O estado colonial foi a forma assumida pelo capitalismo periférico e dependente nas sociedades andinas, enquanto ordem e fato fundante. A configuração das organizações indígenas (sindicatos, organizações campesinas, confederações e federações) se alimentou de reivindicações por reconhecimento, justiça, terra e território (Santillana e Herrera, 2009). Nos anos 80 e 90, com a instauração do pacote de programas de ajuste estrutural e a vontade das elites nacionais articuladas com o capital global em configurar uma ordem que maximize os seus ganhos, os movimentos indígenas de Equador e Bolívia levantaram a bandeira da plurinacionalidade.
Este projeto político, articulado com reivindicações territoriais, populares e produtivas, demonstrou a grande capacidade das organizações indígenas em combinar exigências ante o estado uninacional e apresentar uma alternativa para as sociedades andinas. A partir desse momento, como parte da dinâmica das mobilizações e levantes, a proposta do estado plurinacional se tornou central no projeto programático do campo popular e de esquerda. Durante as décadas de mobilização, os movimentos indígenas desenvolveram a capacidade de representar e integrar as lutas democráticas, sociais e populares.

A concretude e a riqueza dos processos constituintes permitiram a aprovação do caráter plurinacional dos estados equatoriano e boliviano que, somado à definição do Buen vivir e Vivir bien, respectivamente, iluminavam um novo momento pós-neoliberal e, aparentemente, de descolonização, liderado pelos governos progressistas de Rafael Correa e Evo Morales. Com o passar dos anos, esses governos se alienaram dos postulados democráticos e de transformação profunda e realizaram projetos de modernização capitalista e continuidade dos padrões de acumulação extrativista, rentista e dependente, se sustentando com dinâmicas autoritárias e de deslegitimação do protesto social, ainda que este tenha um amplo respaldo popular (Equador) e organizativo (Bolívia).

Plurinacionalidad y Vivir Bien/Buen Vivir. Dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador foi publicado em 2015, um ano crucial para o futuro dos governos progressistas na região. O grau crescente de conflito devido à aplicação dos projetos políticos rentistas, extrativistas e capitalistas, e a queda dos preços das matérias primas, se veem somados à ação de organizações indígenas, populares e sociais que questionam o caráter de “transformação” dos processos. Essas mudanças na época foram expressadas pela literatura crítica, que propôs duas alternativas: uma crise da hegemonia progressista (Modonessi, 2015) ou um fim de ciclo do populismo progressista (Svampa, 2015).

A pesquisa realizada por Salvador Schavelzon chega precisamente numa etapa onde a caracterização dos processos progressistas precisa vir acompanhada do resgate de conceitos, que revelam mundos e interpretações da totalidade situada e que constituem eixos para os projetos políticos de movimentos indígenas em ambos os países. Apesar das importantes mobilizações contra os governos progressistas, as organizações indígenas, populares e sociais não conseguiram construir uma dinâmica sustentada e uma alternativa política que superasse o progressismo como projeto nacional. A pergunta sobre o tipo de nucleação que permitiria uma articulação mais estável entre os vários sujeitos capazes de sustentá-la, segue mantendo-se como princípio de unidade mais além do progressismo.

Se o progressismo configurou uma opção pós-neoliberal e se firmou enquanto projeto hegemônico, em alguns casos, como no Equador, enquanto disputa interburguesa, de representação interclassista e de modernização capitalista (Unda, 2013; Saltos, 2015) e noutros, enquanto expressão de capitais emergentes e velhos setores do capitalismo rentista (Webber, 2015), sob um projeto mestiço com representação indigenista; o processo de desgaste e a sua resposta autoritária, o retorno a saídas que não mudam o padrão de acumulação interno e a sistemática deslegitimação, judicialização e criminalização do protesto, tudo isso coloca novamente a pergunta sobre a hegemonia.

Se bem o estado adquira uma centralidade e se legitime como única nucleação possível, permanece ainda latente se os novos projetos progressistas conseguem representar o conjunto da sociedade na promessa da nação, tanto em sua dimensão política, quanto em suas dimensões cultural, territorial e econômica. Este livro contribui para mostrar de maneira sistemática e profunda, que a proposta construída pelos movimentos indígenas contempla a interpelação da representação do comum que não é mais a pretensão homogeneizadora do estado-nação moderno, mas tampouco é a diferença pós-moderna surgida no seio do neoliberalismo. É o desafio do comum no contexto da heterogeneidade; a superação da colonialidade, sexualização e racialização da relação entre sujeitos e mundos, através da construção de um sistema político capaz de articular modos distintos de organização do mundo para além da colonialidade capitalista patriarcal. A plurinacionalidade e o Vivir BienBuen Vivir permite o entendimento da natureza enquanto sujeito, e não como exterioridade e objeto de exploração e dominação; mas ao mesmo tempo é a configuração política dos sujeitos equiparados com a natureza: povos indígenas e também as mulheres.

A análise que o livro realiza com categorias como autonomia (princípio central) permite descentrar o estado como única formação histórica e mostrar a potencialidade de povos e nacionalidades na configuração de outras comunidades políticas. A plurinacionalidade se constitui numa crítica à nação como única comunidade política, e permite, a seu passo, articular a plurinacionalidade como projeto político com outras formas de organização, outras experiências de relacionamento não ancoradas na nação, outras comunidades políticas e de produção/reprodução.

Finalmente, a genealogia da plurinacionalidade e de outros horizontes societais (Vivir bien e Buen vivir) em contextos pós-neoliberais e de narrativa progressista, devolvem ao debate teórico e político a pergunta sobre o problema do nacional e da nação, articulando uma crítica à modernidade capitalista. Este livro é, sem dúvida, um acerto, porque outorga vigência e pertinência a distintos modos de vida (mundos) em contextos de transformação e mudanças de época. Constitui uma análise fundamental para a memória em médio e longo prazo, de alternativas surgidas nos contextos andinos, e constitui também ferramenta para fortalecer projetos políticos que superem a narrativa progressista em contextos de crise e desgaste.


Referências

Modonessi, M. (2015). Fin de la hegemonía progresista y giro regresivo en América Latina. Una contribución gramsciana al debate sobre el fin de ciclo”. Viento Sur núm. 142, Madrid, octubre de 2015.

Ospina, P. (2000). Reflexiones sobre el transformismo: movilización indígena y régimen político en el Ecuador (1990-1998). En J. Massal, y M. Bonilla (Eds.) Los movimientos sociales en las democracias andinas (pp. 125-146). Quito: FLACSO – IFEA.

Saltos, N. (2015). Momento estratégico. Línea de Fuego http://lalineadefuego.info/2015/10/13/momento-estrategico-por-napoleon-saltos-galarza/

Santillana, A. y Herrera, S.(2009). Génesis, experiencia, transformación y crisis del movimiento indígena ecuatoriano. En América Latina desde abajo. Experiencias de luchas cotidianas. Quito: Abya-Yala.

Svampa M.,(2015). América Latina: de nuevas izquierdas a populismos de alta intensidad. Memoria núm. 256, México, noviembre de 2015.

Unda, M. (2013). Modernización del capitalismo y reforma del Estado. En Varios Autores. Correismo al desnudo. Quito: Montecristi Vive.

Webber, J.(2015). Teatro político en Bolivia. Revista Herramienta Nº 56, Otoño de 2015 – Año XVIII.

Fonte: UniNômade

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