PICICA: "Resenha de Plurinacionalidad y Vivir Bien/Buen Vivir. Dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador, de Salvador Schavelzon. Quito: Abya Yala-CLACSO, 2015. 286 pags."
O desafio do comum vem dos Andes
Por Alejandra Santillana Ortiz, em Corpus – archivos virtuales de la alteridad americana (dez. 2015) | Trad. UniNômade—
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Resenha de Plurinacionalidad y Vivir Bien/Buen Vivir. Dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador, de Salvador Schavelzon. Quito: Abya Yala-CLACSO, 2015. 286 pags.
Ao longo das últimas décadas, dois movimentos indígenas
andinos, o equatoriano e o boliviano, colocaram a necessidade de
transformar o estado, denunciando o seu caráter uninacional, colonial e
oligárquico (Ospina, 2000). Os povos e nacionalidades indígenas
mostraram o caráter de estados regidos por um pacto colonial que, ao
longo de todo o período republicano, montaram um complexo sistema de
dominação e exploração. O estado colonial foi a forma assumida pelo
capitalismo periférico e dependente nas sociedades andinas, enquanto
ordem e fato fundante. A configuração das organizações indígenas
(sindicatos, organizações campesinas, confederações e federações) se
alimentou de reivindicações por reconhecimento, justiça, terra e
território (Santillana e Herrera, 2009). Nos anos 80 e 90, com a
instauração do pacote de programas de ajuste estrutural e a vontade das
elites nacionais articuladas com o capital global em configurar uma
ordem que maximize os seus ganhos, os movimentos indígenas de Equador e
Bolívia levantaram a bandeira da plurinacionalidade.
Este projeto político, articulado com reivindicações
territoriais, populares e produtivas, demonstrou a grande capacidade das
organizações indígenas em combinar exigências ante o estado uninacional
e apresentar uma alternativa para as sociedades andinas. A partir desse
momento, como parte da dinâmica das mobilizações e levantes, a proposta
do estado plurinacional se tornou central no projeto programático do
campo popular e de esquerda. Durante as décadas de mobilização, os
movimentos indígenas desenvolveram a capacidade de representar e
integrar as lutas democráticas, sociais e populares.
A concretude e a riqueza dos
processos constituintes permitiram a aprovação do caráter plurinacional
dos estados equatoriano e boliviano que, somado à definição do Buen vivir e Vivir bien,
respectivamente, iluminavam um novo momento pós-neoliberal e,
aparentemente, de descolonização, liderado pelos governos progressistas
de Rafael Correa e Evo Morales. Com o passar dos anos, esses governos se
alienaram dos postulados democráticos e de transformação profunda e
realizaram projetos de modernização capitalista e continuidade dos
padrões de acumulação extrativista, rentista e dependente, se
sustentando com dinâmicas autoritárias e de deslegitimação do protesto
social, ainda que este tenha um amplo respaldo popular (Equador) e
organizativo (Bolívia).
Plurinacionalidad y Vivir Bien/Buen Vivir. Dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador foi
publicado em 2015, um ano crucial para o futuro dos governos
progressistas na região. O grau crescente de conflito devido à aplicação
dos projetos políticos rentistas, extrativistas e capitalistas, e a
queda dos preços das matérias primas, se veem somados à ação de
organizações indígenas, populares e sociais que questionam o caráter de
“transformação” dos processos. Essas mudanças na época foram expressadas
pela literatura crítica, que propôs duas alternativas: uma crise da
hegemonia progressista (Modonessi, 2015) ou um fim de ciclo do populismo
progressista (Svampa, 2015).
A pesquisa realizada por
Salvador Schavelzon chega precisamente numa etapa onde a caracterização
dos processos progressistas precisa vir acompanhada do resgate de
conceitos, que revelam mundos e interpretações da totalidade situada e
que constituem eixos para os projetos políticos de movimentos indígenas
em ambos os países. Apesar das importantes mobilizações contra os
governos progressistas, as organizações indígenas, populares e sociais
não conseguiram construir uma dinâmica sustentada e uma alternativa
política que superasse o progressismo como projeto nacional. A pergunta
sobre o tipo de nucleação que permitiria uma articulação mais
estável entre os vários sujeitos capazes de sustentá-la, segue
mantendo-se como princípio de unidade mais além do progressismo.
Se o progressismo configurou uma opção pós-neoliberal e
se firmou enquanto projeto hegemônico, em alguns casos, como no
Equador, enquanto disputa interburguesa, de representação interclassista
e de modernização capitalista (Unda, 2013; Saltos, 2015) e noutros,
enquanto expressão de capitais emergentes e velhos setores do
capitalismo rentista (Webber, 2015), sob um projeto mestiço com
representação indigenista; o processo de desgaste e a sua resposta
autoritária, o retorno a saídas que não mudam o padrão de acumulação
interno e a sistemática deslegitimação, judicialização e criminalização
do protesto, tudo isso coloca novamente a pergunta sobre a hegemonia.
Se bem o estado adquira uma
centralidade e se legitime como única nucleação possível, permanece
ainda latente se os novos projetos progressistas conseguem representar o
conjunto da sociedade na promessa da nação, tanto em sua dimensão
política, quanto em suas dimensões cultural, territorial e econômica.
Este livro contribui para mostrar de maneira sistemática e profunda, que
a proposta construída pelos movimentos indígenas contempla a
interpelação da representação do comum que não é mais a pretensão
homogeneizadora do estado-nação moderno, mas tampouco é a diferença
pós-moderna surgida no seio do neoliberalismo. É o desafio do comum no
contexto da heterogeneidade; a superação da colonialidade, sexualização e
racialização da relação entre sujeitos e mundos, através da construção
de um sistema político capaz de articular modos distintos de organização
do mundo para além da colonialidade capitalista patriarcal. A
plurinacionalidade e o Vivir Bien / Buen Vivir permite
o entendimento da natureza enquanto sujeito, e não como exterioridade e
objeto de exploração e dominação; mas ao mesmo tempo é a configuração
política dos sujeitos equiparados com a natureza: povos indígenas e
também as mulheres.
A análise que o livro realiza com categorias como
autonomia (princípio central) permite descentrar o estado como única
formação histórica e mostrar a potencialidade de povos e nacionalidades
na configuração de outras comunidades políticas. A plurinacionalidade se
constitui numa crítica à nação como única comunidade política, e
permite, a seu passo, articular a plurinacionalidade como projeto
político com outras formas de organização, outras experiências de
relacionamento não ancoradas na nação, outras comunidades políticas e de
produção/reprodução.
Finalmente, a genealogia da plurinacionalidade e de outros horizontes societais (Vivir bien e Buen vivir)
em contextos pós-neoliberais e de narrativa progressista, devolvem ao
debate teórico e político a pergunta sobre o problema do nacional e da
nação, articulando uma crítica à modernidade capitalista. Este livro é,
sem dúvida, um acerto, porque outorga vigência e pertinência a distintos
modos de vida (mundos) em contextos de transformação e mudanças de
época. Constitui uma análise fundamental para a memória em médio e longo
prazo, de alternativas surgidas nos contextos andinos, e constitui
também ferramenta para fortalecer projetos políticos que superem a
narrativa progressista em contextos de crise e desgaste.
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Referências
Modonessi, M. (2015). Fin de la hegemonía
progresista y giro regresivo en América Latina. Una contribución
gramsciana al debate sobre el fin de ciclo”. Viento Sur núm. 142, Madrid, octubre de 2015.
Ospina, P. (2000). Reflexiones sobre el transformismo: movilización indígena y régimen político en el Ecuador (1990-1998). En J. Massal, y M. Bonilla (Eds.) Los movimientos sociales en las democracias andinas (pp. 125-146). Quito: FLACSO – IFEA.
Saltos, N. (2015). Momento estratégico. Línea de Fuego http://lalineadefuego.info/2015/10/13/momento-estrategico-por-napoleon-saltos-galarza/
Santillana, A. y Herrera, S.(2009). Génesis, experiencia, transformación y crisis del movimiento indígena ecuatoriano. En América Latina desde abajo. Experiencias de luchas cotidianas. Quito: Abya-Yala.
Svampa M.,(2015). América Latina: de nuevas izquierdas a populismos de alta intensidad. Memoria núm. 256, México, noviembre de 2015.
Unda, M. (2013). Modernización del capitalismo y reforma del Estado. En Varios Autores. Correismo al desnudo. Quito: Montecristi Vive.
Webber, J.(2015). Teatro político en Bolivia. Revista Herramienta Nº 56, Otoño de 2015 – Año XVIII.
Fonte: UniNômade
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