janeiro 28, 2016

Construir a invencibilidade no go. Por Raúl Sánchez Cedillo (UNINÔMADE)

PICICA: "O 15M abre o período do jogo de go, que desloca essa fantasia de uma justa viril entre soberanos que concorrem por um poder vazio. Ao contrário, no go se trata de ocupação e hegemonia d/no espaço do político, mediante movimentos distribuídos de uma multidão de fichas de igual valor (feijões, pessoas, cidadãos), até impedir ao adversário o exercício eficaz de seus poderes, até cercá-lo e paralisá-lo. A estratégia pertence à multidão cidadã, e a forma do cerco consiste na expansão e articulação eficaz da participação e a radicalização democrática dos subalternos. Algo muito distinto do papel de plateia para torneios dos grandes mestres do xadrez." 

Universidade Nômade Brasil

Construir a invencibilidade no go

Por Raúl Sánchez Cedillo, na Contraparte, 26/1/16 | Trad. UniNômade



Iglesias



Em situações como esta, não adianta ficar enrolando com pistas ou mcguffins: o que quer que aconteça, na próxima primavera haverá eleições.

E já falaram os simpáticos paroquianos que dirigem a Comissão Europeia. Estavam apenas esperando. O seu papel é relativamente fácil: eles somente têm que preocupar-se em lembrar que a disputa parlamentar e a liberdade dos eleitores é somente uma performance que não deveria durar muito e que somente pode terminar numa missa aos defuntos da mudança sistêmica e um aleluia ao austericídio das classes subalternas. Sabem perfeitamente que as próximas eleições serão uma espécie de segundo turno do 20D, quer dizer, algo completamente normal em países como a França, Portugal, Polônia, Áustria, Finlândia, Eslováquia ou Eslovênia, apenas para citar estados membros da União Europeia. Não gostam, entretanto, da distribuição da função e da possibilidade crescente de desenlaces poucos favoráveis ao 1%.

Compartilhamos com a freguesia de Juncker a pouca estima das virtudes da arte dramática parlamentar e a franqueza crua na descrição das alternativas em jogo: não há uma sequer que mude os ditames da ditadura comissária do Eurogrupo. Somos igualmente céticos quanto às leituras que veem no resultado das eleições do 20D uma mensagem da cidadania que deve ser interpretada. Tanto Lênin quanto Carl Schmitt chegaram a dizer que os parlamentos da democracia liberal eram uma feira de ventríloquos para um ausente, o povo. Mas hoje, como apontaram recentemente Francisco Jurado e Juan Moreno Yagüe, a presença e a decisão da multidão cidadã não podem deter-se às portas dos parlamentos, sob pena de desperdiçar o projeto constituinte a que a ordem dos acontecimentos nos condenou.

A “grande jogada”

É preciso respeitar e seguir com atenção as aparições em cena de Pablo Iglesias e interpretar o sentido de seus gestos, a “jogada” de sua proposta de um governo de coalizão e as maneiras como ela foi anunciada. Contudo, o paradoxo dos parlamentos nas democracias constitucionais reside no fato que o mandato representativo, diferentemente do imperativo, permite aos representantes fazer o que bem entender dele, quase sempre com consequências nefastas. Lembremos, por exemplo, da rebelião contra Suárez de Herrero de Miñon, Fernández Ordóñez e outros barões da Unión de Centro Democrático (UCD), na legislatura de 1979-1982, ou no voto quase unânime do grupo socialista no Congresso e Senado a favor da reforma constitucional do art. 135, tornando absoluta a prioridade do serviço da dívida em detrimento aos direitos sociais (sim, Pedro Sánchez votou nela num dia confuso). Sabemos que a proposta de governo apresentada pelo grupo formado por Podemos e as confluências é uma performance, um ato que se realiza, sobretudo, enquanto efeito num dado contexto que têm os atos de fala. A proposta de Pablo nos diz algo mais sobre as intenções de quem fala do que da realidade de que ele fala. Porém, existiria algo aí, nos gestos do grupo encabeçado por Iglesias, além de metáforas enxadristas? A rigor, seria cabível pensar que o Podemos pode chegar a formar um governo com o PSOE?

A resposta está no grau de liberdade excepcional que, depois do 20D, ficou sob a gestão de Pedro Sánchez. A arbitrariedade que o mandato representativo permite, bem como o prognóstico funesto que os tempos reservam ao seu partido, constituem um fator que acrescenta alguma incerteza à representação em curso, se bem que em doses muito escassas.

Pedro sem causa

Pedro Sánchez precisa governar a qualquer custo se quiser seguir com vida política, mas sabe que somente poderá respirar quando tenha acabado com a de seus adversários mais próximos: a) os barões de seu partido, as pessoas do grupo PRISA e os grupos cujo porta-voz e patriarca ocorre de ser Felipe González; b) Pablo Iglesias e os representantes das confluências.

Por isso, o buraco da agulha por que Pedro Sánchez pretende passar é tão pequeno que nos obriga a submergir nas incertezas da mecânica quântica. Embora a vida do fóton Pedro nos pareça curta, ele parece convencido que nenhum instrumento de medir político pode determinar se ele efetivamente passou pelo buraco da agulha ou foi desviado por um gráviton de Sevilha. Trata-se, então, de manter-se em sua condição de onda até que os adversários sucumbam num furdunço de interferências. Claro, tudo tem que ser feito segundo uma ordem. Primeiro, seria caso de conter as hordas baronais com a promessa que um eventual governo de coalizão com Podemos será na realidade uma emboscada, que vai permitir acabar com a ameaça que ele implica. Logo, seria o momento de entabular negociações com Pablo Iglesias, aceitando o desafio com a convicção de quem sabe que as tarefas de governo serão muito mais devastadoras (fustigada pela tormenta perfeita de Troica, IBEX e “grande coalizão” tertuliana) para quem advoga pela ruptura, do que para quem nem sequer pretende quebrar a regra de ouro do equilíbrio orçamentário. Romper as negociações devido à obstinação de Podemos no assunto do referendo catalão não seria senão ceder-lhe um ponto de consolação, antes dele subir no cadafalso socialista. Pedro Sánchez não se dispõe, portanto, a cruzar o Rubicão. Em vez disso, considera em qualquer caso que pode ser o melhor piloto no jogo do frango contra os barões e contra Pablo Iglesias. Outro rosto bonito destroçado nas corridas.

Por quê? Porque a aceleração é crescente, o balanço de custo e benefício entre ele e Pablo Iglesias desigual demais e, sobretudo, porque o carro de Pedro Sánchez está sem freios. Ou alguém derruba a parede de separação no meio deles, ou a sua beleza se tornará bidimensional. Tudo isto sabe-o perfeitamente Pablo Iglesias. Sabe que o custo eventual de compartilhar ou ficar com todas as culpas pela não formação do “governo de mudança” é um risco que vale a pena, porque ao fim e ao cabo: a) ele não suporá em médio prazo nenhum fortalecimento do PSOE, pelo contrário; b) é infinitamente pior a perspectiva de uma divisão interna no grupo parlamentar em torno de questões, por exemplo, como e quando realizar o referendo sobre a Catalunha, ou então, sobre os graves conflitos internos ao redor da gestão e controle desde baixo do governo e do grupo parlamentar “confederado”, no cenário do pacto com Pedro Sánchez, isto é, num horizonte que somente pode ser entendido como chorar e rir ao mesmo tempo e, c) e isto é decisivo, não podes governar enquanto força minoritária com um partido que, retórica à parte, deseja pública e ostensivamente uma impiedosa pasokização.

O tempo do go

Por isso, nada de xadrez. Entre outras coisas, porque se calcula que no xadrez o número de posições aceitáveis se situe entre 10^40 e 10^123, ao mesmo tempo que, como vimos, aqui as posições e movimentos sensatos podem ser contados com os dedos de uma mão. Mas há algo nessa fixação com o xadrez que remete ao caroço da teoria do poder político de Pablo Iglesias, concebido precisamente como uma disputa entre soberanos e príncipes, como um espaço vazio que uma ou outra elite precisa ocupar, para dar-lhe um uso ad libitum imperatoris. Existe algo mais do que retórica no recurso ao discurso malfadado do compromisso histórico italiano, que em sua versão original se traduziu na autoimolação do PCI de Berlinguer no altar da austeridade, ante as demandas sociais e a repressão implacável daquele antepassado do 15M que foi o Movimiento de 77. Existe a convicção de que haja um autonomia do político (do Estado de partidos, da classe política, dos parlamentos) em relação à potência composta dos contrapoderes sociais e cidadãos, e que, em última instância, o tipo de mudança política se ventila nas jogadas de mestre desse intelectual coletivo que é o Partido (ou mais precisamente: a sua direção carismática).

Ainda assim, tal como ensina a própria história do PCI de Togliatti e Berlinguer, a autonomia do político é sempre para o pior, a saber: para a desarticulação da relação democrática entre o novo tipo de contrapoderes sociais que nasce com o 15M, com a PAH, as Mareas e o municipalismo, e o instrumento — somente um instrumento — que permita desbloquear a infiltração das ruas no parlamento e a sua subsequente transformação numa assembleia subordinada ao exercício direto do poder constituinte por parte dos cidadãos. Estamos ante tensões e ambivalências que somente começarão a aclarar-se dentro de semanas ou meses, quando o obstáculo Sánchez tiver sido removido do caminho.

Continua sendo certo que a estrela polar da mudança política é o mandato constituinte exprimido a partir do 15M. Daí seja bem mais urgente pensar na sequência que se abrirá a partir da convocação de novas eleições, do que na gestão do resultado eleitoral, passando pela ampliação e a radicalização democráticas das confluências e seu reflexo na eleição das candidaturas e da construção dos programas políticos. Será o caso, então, de oferecer um governo radicalmente democrático, que mire tanto as sedes europeias da ditadura comissária, quanto a participação real (incomodada, então) da cidadania na definição e organização dos processos constituintes no Reino da Espanha.

Construir a invencibilidade


Sun Tzu repara nos preparativos da vitória e lembra que o exército vitorioso somente entra em combate depois de ter obtido a vitória, dito de outra forma, que a invencibilidade depende de si próprio, enquanto que a vulnerabilidade corresponde ao inimigo. Seguramente, Pablo Iglesias reparou nisso e não esquecerá que, com as novas eleições, se trata de construir, em comum, a invencibilidade das forças da mudança, à margem de golpes de gênio enxadrista. Yanis Varoufakis exprimiu a sua preocupação ante a possibilidade de um pacto de governo com os socialistas. Talvez seja porque ele, o especialista da teoria dos jogos, saiu escaldado demais da disputa com a besta do Eurogrupo.

O 15M abre o período do jogo de go, que desloca essa fantasia de uma justa viril entre soberanos que concorrem por um poder vazio. Ao contrário, no go se trata de ocupação e hegemonia d/no espaço do político, mediante movimentos distribuídos de uma multidão de fichas de igual valor (feijões, pessoas, cidadãos), até impedir ao adversário o exercício eficaz de seus poderes, até cercá-lo e paralisá-lo. A estratégia pertence à multidão cidadã, e a forma do cerco consiste na expansão e articulação eficaz da participação e a radicalização democrática dos subalternos. Algo muito distinto do papel de plateia para torneios dos grandes mestres do xadrez.


Raúl Sánchez Cedillo é tradutor e pesquisador residente a Madrid, participa da Universidad Nómada, escreve para vários sites, escreveu artigos com Felix Guattari, Toni Negri, entre outros.

Fonte: UniNômade

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