PICICA: "Na apuração da reportagem “Escolas de luta”, publicada na edição 102
(janeiro de 2016), o Le Monde Diplomatique Brasil entrevistou por e-mail
a socióloga Silvia Viana, professora da FGV-SP. Confira a seguir o
depoimento completo"
ESCOLAS OCUPADAS
A "maldita" política
Na apuração da reportagem “Escolas de luta”, publicada na edição 102 (janeiro de 2016), o Le Monde Diplomatique Brasil entrevistou por e-mail a socióloga Silvia Viana, professora da FGV-SP. Confira a seguir o depoimento completo
por Le Monde Diplomatique Brasil
Formatura da Polícia Militar em São Paulo
As ocupações das escolas neste ano guardam muitas semelhanças (políticas, organizativas, estéticas) com a jornada de junho de 2013. Como analisar o movimento dos estudantes à luz da atual conjuntura do país?
Silvia Viana - Pode-se analisá-lo à luz de uma
disjunção que, desde 2013, parece ter vindo para ficar. Trata-se do
abismo que se abriu entre a contabilidade conjuntural e a política
propriamente dita. O “propriamente dita” deve-se ao samba dos termos
clássicos, que não mais prescindem de complementos. Tomemos, por
exemplo, o famigerado áudio do encontro de quarenta dirigentes de ensino
do estado de São Paulo, sob comando do chefe de gabinete da secretaria
de Educação. Neste, “política” é xingamento e significa, por um lado, a
“instrumentalização” do debate por opositores de partidos e movimentos
sociais organizados, preocupados com votações e manobras afins; por
outro, e por contraditório que possa parecer, uma “radicalização
ideológica”. Da ótica da reunião vazada – e também, como não citar?, de
uma “autoridade máxima” da Igreja Católica – a assim chamada
“politização” pode, então, ser derrubada mediante seu oposto: a razão
administrativa. Esta é capaz, ao mesmo tempo, de expor a “manipulação” –
que é, segundo o chefe de gabinete, “estudada”, “tem método”, “tem
estratégia” – e anular a irracionalidade. A “guerra” ali declarada, e
repetida à exaustão, é a “guerra da informação”, e não tem como
“público-alvo” aqueles que fazem “política”, e sim a maioria, os
incautos, manipulados ou simplesmente deficitários de esclarecimento,
que acabaram por aderir à causa. Nessa “guerra” caberia então mostrar
que “a radicalização está do lado do movimento”, que deve ser
“desqualificado” por ser “político”, “partidário”, voltado para “desviar
o foco de Brasília” e que, por isso mesmo, “não tem nada a ver com
educação”.
A análise crítica dessa conversa buscou invertê-la: percebamos como são
eles que tentarão enganar a opinião pública, a começar pela mentira
quanto ao papel dos estudantes na mobilização. De fato, movimentos
sociais tradicionais, entidades representativas e partidos políticos
vieram a reboque de um movimento autônomo e auto-organizado, o que não
significa que os gestores da educação não tenham fé na inversão que
apresentaram. E não apenas eles.
Se há uma palavra-chave a ser analisada nessa “guerra” talvez seja a
que se apresentou, de ambos os lados, como seu oposto, o “diálogo”. Foi
graças a esse mote que os estudantes conquistaram um amplo espectro de
apoio às ocupações – por sinal, uma diferença crucial com relação a
2013, quando se logrou uma massificação à custa da hegemonia quanto à
pauta. No fim de um, de outro modo, lamentável 2015, não foram poucos os
moderados que chegaram a apoiar, e até mesmo ajudar os estudantes
contra o autoritarismo brutal do governo. Até em revista de
extrema-direita apareceram ecos a respeito da “forma equivocada” pela
qual foi decidida a “reestruturação” (aspas aqui por se tratar de
eufemismo). Mas não precisamos chafurdar ainda mais no lixo já que, na
própria fala dos gestores, o mesmo diagnóstico foi apresentado: “faltou
diálogo”. É claro que, na sala de reunião, a tal incompetência
comunicacional foi terceirizada para alguns diretores, e compassivamente
compreendida à luz do medo e ignorância de pais “conservadores”. Seja
como for, o caso é que foi para esse bullseye, no qual a turma
da planilha vislumbrou, com razão, a iminente derrota, que foram
apontadas suas metralhadoras: “informação, informação, informação...”.
Contudo, para além dos estúpidos folhetos explicativos, que sempre
pressupõem a estupidez alheia, a “tática de guerrilha” incluiria
reuniões com representação de pais e professores para a resolução de
eventuais demandas pontuais e “justas”, tais como o medo de que os
estudantes sejam obrigados a passar pela cracolândia a caminho da
escola... Assim, para eles, é absolutamente razoável que a comunidade
concernida participe: “ó, me apresente suas propostas, venha conversar”.
Ao fim e ao cabo, trata-se de uma questão técnica, de otimização de
recursos, nada que conversas seguidas de ajustes não possam resolver.
Então o termo “dialogômetro” pode ser compreendido, para além da piada,
em toda a sua precisão e justeza quantitativas.
É apenas dessa perspectiva que podemos entender a crença inabalável dos
gestores quanto à sua capacidade de convencimento. Sua razão é a razão
do mundo, diante da qual a grita da “política”, cedo ou tarde, terá que
ceder. O campo da disputa é traçado por números que, independente da
conta, são irrefutáveis: a diminuição da demanda, a crise econômica, os
indicadores de aprendizagem etc. – um etc. infinito, e que nos vai
aporrinhar nos próximos meses com novos estudos, estatísticas, rankings,
avaliações, todos a comprovar o que já sabemos, ou deveríamos saber: o
sistema deve ser eficiente. Fora desse campo está o delírio. Daí a
afirmação de uma das dirigentes de ensino presente na reunião vazada,
segundo a qual as propostas apresentadas por pais, alunos e professores
serão debatidas “dentro do decreto da reorganização” – seus limites são
os limites da realidade. A verdade social desse espaço, o único no qual a
comunicação é possível, apareceu em outro “diálogo”, esse travado em
ruas atravancadas por cadeiras. Disse o governador: “A polícia dialoga, a
polícia conversa, a polícia pede para as pessoas saírem, a polícia dá
tempo para as pessoas saírem. Agora, não pode prejudicar quem precisa
trabalhar. Então, é preciso ter o mínimo de bom senso”. Não se trata de
uma analogia fortuita: polícia e decreto são coisas feitas da mesma
substância, do inapelável. Pois nenhum deles obedece a princípios, tais
como educação ou dignidade humana, por exemplo, ambos respondem às
urgências. Em ambos os casos, cabe responder à urgência produtiva.
Voltemos à sala da reunião, na qual outra dirigente pode vir em nosso
auxílio: “não é o decreto que vai garantir a demanda, é a demanda que
vai garantir o decreto”. O autoritarismo da medida não se deve,
portanto, à figura do governador, e sim à natureza do dispositivo – não
obstante ser Alckmin uma de suas encarnações mais bem acabadas e, talvez
por isso, mais bem sucedidas: o homem que “faz o que deve ser feito,
doa a quem doer”. Impedir o fluxo de ativos, que vulgarmente chamamos
rua, equivale a impedir a adequação entre custo e benefício nas escolas,
ambos admitem o “diálogo democrático”, contanto que em seus próprios
termos.
Não foi outro o espaço ofertado aos manifestantes de Junho de 2013 – e,
diga-se de passagem, com as mesmas palavras: “apresente sua proposta”,
“vamos dialogar”, contanto que dentro do orçamento... Também da
perspectiva da administração municipal, os manifestantes não estavam
sendo “razoáveis” e, provavelmente, serviam aos interesses inconfessos
da instrumentalização partidária e eleitoral, ou, novamente, da maldita
“política”, então a serviço do outro, esse mesmo que agora entende tudo
exatamente do mesmo modo. Apesar de, na luta contra a “reestruturação”, o
embate parecer mais claro – afinal a crítica está voltada ao governo do
estado, o que contempla os recipientes mentais binários, mas está a
quilômetros de abarcar os verdadeiros antagonismos –, assistimos à mesma
paranoia, mesmo que com outra roupagem moral: em 2013, o fantasma era
ingrato, agora, é só burro mesmo. No embate atual, o fato de que são os
partidos e entidades representativas os que correm atrás do rastilho
aceso por moleques, é algo que, da perspectiva dos eficientes, não
apresenta chave explicativa. Por isso, e não graças a uma compulsão por
manipulação, a explosão de estudantes, que simplesmente estão de saco
cheíssimo de serem objeto de manejo, ocorre, sob suas fuças,
irrelevante, para não dizer impossível. A única explicação aventada é
aquela que organiza seu próprio mundo, pois organiza também o mundo de
sua oposição: trata-se de um cálculo. E o que, a seus olhos, não passam
de espasmos ideológico-irracionais são, portanto, para uns e outros, um
logro ou um “resto” não assimilável, política e epistemologicamente.
Acontece que é esse “resto”, estranho e avesso às redundantes alocações
de recursos, que faz o chão tremer, outrora, ao negar 20 centavos, e
agora trancando o portão da escola e reabrindo ruas incógnitas. Outra
das senhoras da reunião, apresentando atestado de sua abertura ao
“diálogo” afirmou: “Eu pedi para eles me darem uma lista [de
reivindicações]. Eles me mandaram: ‘sou contra isso, contra aquilo,
contra aquilo...’, não tem reivindicação, só tem protesto!”. O chefe de
gabinete, incumbido de declarar a guerra, complementou: “Eles usam o
argumento do diálogo. Toda vez que você vai no TJ eles não querem o
diálogo coisa nenhuma [...] Toda vez que alguém fala contra, eles berram
e não querem”. O caso é que não querem mesmo, dada a natureza do
“dialogômetro”, por eles meio intuída, meio sabida, certamente não
aprendida em salas de aula/depósitos. Por isso, o abismo, semicerrado no
período de hegemonia da luta, começa, em seu refluxo, a aparecer em sua
dimensão transversal real. As organizações que, no auge do movimento,
seguiam os estudantes, agora se esmeram como podem em tomar a dianteira,
ensinando a eles, os inexperientes, que venceram. Também para a
esquerda que governa, o recuo do governador foi a abertura do “diálogo”:
haverá um ano de participação, ao longo do qual, nos termos de todos os
que se bicam e se entendem, serão “criadas as agendas propositivas” (só
para constar: essa citação não remete à declaração de alguma entidade
apoiadora do movimento, mas à gangue da reunião) –, cabendo,
evidentemente, os cuidados necessários ao se lidar com o outro
manipulador. O “resto” incômodo, o verdadeiro outro da comédia
institucional, no entanto, sabe que isso não significa nada; que o
retorno à planilha é o retorno ao Grande Plano, para o qual não passam
de lenha fresca para a reprodução social ou, em suas palavras, de “mão
de obra barata para o capitalismo”.
Como está sendo o processo de formação política dos jovens que
estão participando das ocupações? Pode-se falar em uma nova geração de
militantes, no sentido de um novo tipo de militância?
Silvia Viana - Eles não foram formados politicamente, e
aí reside seu segredo. Próxima dos temidos quarenta anos, já posso
dizer que tenho um passado, não tanto porque estou ficando velha, muito
mais porque aquilo o que me formou politicamente se tornou uma jaula de
ferro. Sob o guarda-chuva do socialismo democrático, travávamos nossas
disputas colegiais e universitárias com um projeto comum, nós ajudamos a
forjá-lo, com a experimentação participativa em projetos sociais nos
mais variados campos, como coletivos de diversos formatos, junto a
vários movimentos sociais. Dizer que a conquista do poder degenerou tal
projeto, ou pior, que fora traído, seria uma banalidade incapaz de
ajudar na compreensão de seu ocaso. O fato é que, querendo ou não,
construímos uma forma de governar, forma essa que já não faz o menor
sentido para aqueles que não criaram o participacionismo, tampouco
participaram, ou ainda, estão cansados de participar. Daí seu despudor
quando simplesmente descartam o “porém” que nós compulsivamente anexamos
à crítica a essa forma de governo. Eles não foram formados e, no
entanto, são governados. Não é à toa que quebram a cabeça e, já tantas
vezes, se quebram, em sua forma horizontal e autônoma de luta – seu
ponto pacífico, embora não pacificado. Tampouco é birra a recusa
persistente e aterradora ao chamamento razoável para a conversa, que
eles, ao mesmo tempo, exigem. A proposição para a construção paulatina
de uma sociedade mais justa parece lhes feder a mofo quando já não é
possível futuro algum senão o da queima ritual em mercado. Se a
esperança reformista – seja ela hard, seja racionada – já há algum tempo
foi substituída por um “segurar as pontas”, porque diabos essas pessoas
deveriam acatar a infindável prestação de contas em que se converteu a
sociedade?
Trata-se de um descompasso de tempos históricos, mais que geracional:
esse fenômeno que não tem nome, mas certamente não é uma “nova
militância”, é compreensível, por exemplo, à luz do recente post, no
Facebook, da presidenta: “transformamos milhões de pessoas que estavam
excluídas em consumidores”. A celebração de uma “cidadania consumidora”
como uma conquista preciosa talvez seja o horizonte social mais
mesquinho que já se apresentou e, não obstante, trata-se do único. O
estranho, portanto, não é que esses trancadores de rua tenham surgido
agora, visto terem suas vidas trancafiadas. Estranha, pois radicalmente
fora de seu tempo, é a qualidade que lhes foi imputada pela gestora
educacional. Assustada ante o deslize sintático do chefe de gabinete,
que afirmou: “se sair a reorganização”, ela retrucou: “se sair?”, e cobrou que o decreto fosse imposto imediatamente, pois “O problema é que eles têm esperança [inaudível]...”.
Fonte: LE MONDE DIPLMATIQUE BRASIL
Nenhum comentário:
Postar um comentário