janeiro 18, 2016

A dignidade da culpa. Por Ricardo Gessner (OBVIOUS)

PICICA: "Uma reflexão sobre a culpa em São Bernardo, de Graciliano Ramos"

A dignidade da culpa


Uma reflexão sobre a culpa em São Bernardo, de Graciliano Ramos

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Em 1934, um brasileiro nascido na cidade de Quebrângulo, Alagoas, chamado Graciliano Ramos, publicou o romance “São Bernardo”. É um livro que põe o dedo numa ferida sempre aberta, por mais esforços que se faça para silenciá-la: o sentimento de culpa. E não seria exagero dizer que a obra mereceria estar ao lado de Crime e Castigo (Dostoievski), Ressurreição (Tolstói), ou Metamorfose (Kafka), num panteão de obras essenciais ao entendimento da natureza humana, não fosse a língua portuguesa que a condenou a ser um “galho menor de um arbusto secundário dos jardins das musas”. Enfim, os leitores de língua portuguesa também têm seus privilégios.

O romance é uma espécie de auto-análise, em que Paulo Honório, narrador-personagem, reconta a história de sua ascensão social, graças as falcatruas, emboscadas, relações de falsa amizade e interesse. Relembra de como levou Luís Padilha (antigo dono e herdeiro da fazenda São Bernardo) à falência; de como planejou o assassinato de seu vizinho para expandir suas terras; de como perdeu o interesse pelo próprio filho; de como levou sua esposa, Madalena, ao suicídio.

Diante de tais “atrocidades”, levanta algumas lamentações, sendo a principal delas a consciência de não conseguir sentir culpa. Apesar de pequenos indícios de “aflição”, trata-se de uma aflição ambígua, pois não brota de um sentimento de arrependimento, mas da consciência por ser incapaz de arrepender-se: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige”. A fala de Paulo Honório referindo-se a ausência de amor pelo filho é emblemática: “Nem sequer tenho amizade a meu filho”: veja-se a precisão e sutileza com que se expressa: nem sequer “amizade” sente pelo filho; ou seja, nem mesmo o mínimo de afeição esperada, que se completa: “Que miséria!”.

A interjeição diante da falta de “amizade” pelo filho é reveladora. Paulo Honório reconhece a miséria de sua própria condição moral. “Reconhecimento” é um item importante nas tragédias gregas: é momento em que o herói reconhece sua condição de desgraça. Nesse sentido São Bernardo é um romance trágico, construído sobre um paradoxo: à medida que Paulo Honório ascende socialmente, decresce moralmente. É uma ironia presente no próprio nome do protagonista: “Honório” provém de “honorius”, que significa “honorífico”, “honrado”, sendo a raiz etimológica “honor”: “honra”; porém toda sua honra retém-se em sua condição social, não moral.

A grandiosidade do romance está na figura de Paulo Honório quando reconhece sua condição moral miserável e assume sua responsabilidade – a culpa – por isso. Não mente para si mesmo: “Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu”. Se por um lado é uma fala que revelaria a perversidade do protagonista, por outro é um gesto de coragem, de alguém que assume a responsabilidade diante de sua condição de desgraça, consciente da própria incapacidade de se libertar.

A atualidade de São Bernardo não está na construção do típico “sinhozinho” que é Paulo Honório; não está na caracterização do explorador avaro e sem sentimentos. A atualidade de São Bernardo está em hoje ser um contraponto a um mundo que facilita e silenciosamente valoriza a mentira para justificar nossas próprias falhas, medos e fraquezas. Se Paulo Honório atribuísse a causa do suicídio de sua esposa ao seu comunismo – “Comunista, materialista. Bonito casamento!”, exclama ironicamente em pensamento o narrador durante uma conversa sobre sua esposa –, se tivesse outra direção esse pensamento, seria menos doloroso. Mas ao mesmo tempo, seria menos honesto, menos consciente.

Quando Paulo Honório assume sua responsabilidade diante da própria vida, quando assume ser o culpado de sua desgraça, torna-se moralmente digno, pois sua coragem e sobriedade merecem respeito. Um gesto raro.

Um dos itens que compõe uma obra clássica é a contribuição para um entendimento mais profundo de nossa natureza e condição. São Bernardo é um clássico.



Ricardo Gessner

Mestre e doutorando em Teoria e História Literária; Professor Colaborador na Universidade Estadual do Norte do Paraná. Publicou Paulo Leminski: uma poética da distração.

Fonte: OBVIOUS

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