janeiro 28, 2016

A Saúde Mental fora da lei, por Marcelo Veras

PICICA: "O que ocorre quando uma política de saúde mental é orientada por um modelo hospitalocêntrico? Talvez muitos das novas gerações de profissionais da saúde mental, que já foram formadas em CAPS e demais serviços substitutivos, não tenham conhecido uma verdadeira instituição asilar. Cabe à todos que conheceram os asilos não deixar essa memória se apagar. A lógica asilar é o fracasso do discurso e da conversação, nela prevalecem o poder e a disciplina como forma de tornar os corpos e mentes dóceis ao Outro social." 


A Saúde Mental fora da lei

por Marcelo Veras

Quem pensa que Saúde Mental é um estado da mente se engana. Saúde Mental é um país. Por isso o leitor não deve estranhar quando às vezes dizemos "nós da Saúde Mental" como dizemos "nós, povo de Pasárgada". Este texto traz uma pergunta: será que nós da Saúde Mental estamos fora da lei? Será que ainda temos legitimidade em nosso país quando somos conduzidos por quem não nos representa? Passados quinze anos da promulgação da lei 10.216, que deveria reorientar definitivamente a modalidade de atendimento em saúde mental no Brasil, é possível constatar que a expressão “Mental” foi incapaz de fornecer a coerência necessária para a efetivação dessa política sem que potentes significantes mestres ameaçassem seu retorno. Como toda lei, esta igualmente foi feita para o cidadão. Devolveria ao louco seu direito à cidadania mas, como efeito colateral necessário, criaria mais um Ideal que pesaria sobre o sujeito em sua relação com o mundo no qual ganharia um maior protagonismo. 

Não há reivindicação de direito que não seja presidida pelo imperativo de um ideal. Ou seja, na demanda pelos próprios direitos o cidadão está sempre certo. Ele tem o Outro como garantia e a identificação como direito assegurado pelo estado, direito a se identificar. É possível, contudo, estabelecer uma distinção entre o que é objeto da demanda de cidadania e o que é o objeto da pulsão. Assim, a demanda do sujeito distingue-se da demanda do cidadão. Ela implica em uma pergunta singular feita ao Outro visando apenas o seu ser falante, uma demanda cujo gozo em questão faz dele um eterno traidor do discurso universal. A cidadania segue cálculos coletivos, já a singularidade de um sintoma implica em estratégias privadas que sempre apontam para uma falha estrutural, o Outro nunca lhe dará aquilo que ele pede. Em sua relação com o gozo, nenhuma política evitará que o sujeito seja um fora da lei. A psicanálise, nesse sentido, não pode tampouco se prestar a oferecer a lei que falta sobre o gozo, este será sempre um problema para o sujeito na sua relação com o mundo.

Tratando-se de sujeitos psicóticos, em sua maioria, os que foram beneficiados pela lei, cabia perguntar que efeitos clínicos e que efeitos terapêuticos podiam ser esperados do novo contexto. O que parecia inicialmente ser um avanço irreversível, com mais cidadania e menos asilo, mostrou-se com o tempo ser um passo sob ameaça constante de retrocesso. Tivemos inicialmente que lutar para explicitar como a lógica do ato médico era incompatível com a clínica da reinserção social e abordagem interdisciplinar. Em seguida tivemos que lutar contra a tendência inquietante de tratar o espaço mental pela religião. Agora, com a mudança do comando da política nacional de saúde mental percebemos que os velhos significantes mestres nunca se afastaram realmente. 

O que ocorre quando uma política de saúde mental é orientada por um modelo hospitalocêntrico? Talvez muitos das novas gerações de profissionais da saúde mental, que já foram formadas em CAPS e demais serviços substitutivos, não tenham conhecido uma verdadeira instituição asilar. Cabe à todos que conheceram os asilos não deixar essa memória se apagar. A lógica asilar é o fracasso do discurso e da conversação, nela prevalecem o poder e a disciplina como forma de tornar os corpos e mentes dóceis ao Outro social. 

Prefiro a babel democrática dos diversos discursos. Queixa-se com frequência de que a pluralidade do discurso interdisciplinar é infernal, que é nela que reside a maior dificuldade em fazer existir uma unidade terapêutica sintetizada no projeto terapêutico individual. Ora, somente o espaço público e democrático poderá garantir e suportar o choque dos discursos criando um lugar para o sujeito. Mais o sujeito é capturado por um único discurso, mais ele tende a ser eclipsado. 

A Saúde Mental não é um conceito organizado a partir de Um discurso ou de Uma lei. Seu objeto é a loucura de cada um, loucura inapreensível quando se busca alcançá-la através da pureza asséptica de uma ciência qualquer. É por isso que a clínica é mais do que um simples discurso, ela implica um ato. Livrar o sujeito das identificações que o condicionam preservando, contudo, o sintoma que é sua forma irredutível de existir. Este é um princípio lacaniano, uma identificação somente é necessária quando é sintoma. O desconforto do mundo moderno diante do sintoma é patente. Alimenta-se a esperança de poder eliminá-lo com os avanços da ciência. Espera-se que ele passe despercebido no mundo se for aceito socialmente. O conservadorismo de muitos políticos que agora se arvoram a legislar sobre a saúde mental – na maioria das vezes sob um fundo religioso - parte invariavelmente da premissa de que todo sintoma é handcap. 

O modo como vejo a psicanálise participando do debate é justamente apontando para a impossibilidade de se encontrar um discurso comum sobre o sujeito. Não alimentar esperanças de que algum projeto terapêutico, principalmente aqueles com a melhor das intenções, seja possível sem preservar e fomentar a liberdade individual. Mesmo quando a doença mental é objeto de uma ciência específica nada pode ser dito do sujeito dessa doença. É aqui que doença e loucura são conceitos que nunca se superpõem. Saúde Mental é muito mais do que tratar de uma doença, ela inclui igualmente o tratamento do Outro, de sua falha, sua incompletude. Estamos em um desses momentos em que tratar o Outro é mais importante do que tratar a loucura. Continuando o processo atual, em breve "nós da Saúde Mental" escreveremos um cartaz dizendo: 

“A Saúde Mental adverte, a política nacional faz mal à saúde.”


Fonte: Marcelo Veras

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