PICICA: "Conheça a história do inquérito 01/2013, do Deic, em São Paulo,
que já intimou 300 pessoas para depor e busca enquadrar o Black Bloc
como associação criminosa"
O “inquérito do Black Bloc”
Conheça a história do inquérito 01/2013, do Deic, em São Paulo,
que já intimou 300 pessoas para depor e busca enquadrar o Black Bloc
como associação criminosa
Ao todo, 40 pessoas foram convocadas a prestar depoimento no Deic no sábado, dia 22, mesma data em que ocorria o segundo grande ato contra a Copa do Mundo, marcado para as 17h na Praça da República. Sobre a proximidade dos horários dos depoimentos e da manifestação, o diretor do Deic, Wagner Giudice, em coletiva de imprensa, se limitou a dizer que marcar os depoimentos no sábado, naquele horário, foi uma “estratégia” do departamento. Ao todo, 32 pessoas compareceram.
As oitivas fazem parte do inquérito 01/2013 conhecido
dentro da polícia civil como “O Inquérito do Black Bloc”, uma
investigação-mãe montada pelo Deic no dia 9 de outubro de 2013. Dois
dias antes, uma viatura fora depredada por manifestantes no centro de
São Paulo. Humberto Caporalli e Luana Bernardo Lopes, acusados de
participarem da ação, foram presos e indiciados pela Lei de Segurança
Nacional da Ditadura Militar (leia o relato de Humberto no box ao final
da matéria).
A novidade do “inquérito Black Bloc” é a tentativa de
enquadrar grupos de pessoas pelo crime de associação criminosa em vez de
investigar individualmente cada delito de vandalismo. Na justificativa
da polícia, o fato de indivíduos aparecerem várias vezes em situações de
depredação indica que há uma coordenação do movimento, que não se trata
de algo espontâneo. A investigação reuniu informações de manifestantes e
boletins de ocorrência de detidos que antes circulavam separadamente
nas delegacias regionais de São Paulo. Já foram ouvidas quase 300
pessoas, entre detidos em diversos protestos a partir de outubro e até a
mãe de um manifestante.
Advogados ouvidos pela Pública criticaram o procedimento e o teor político dos questionamentos realizados no Deic.
“Vou porque é meu direito”
“Perguntaram se eu era filiada a algum partido, se participava de movimentos sociais, se era Black Bloc”, contou à Pública
uma intimada, na porta do Deic no sábado, 22 de fevereiro, após prestar
depoimento. A jovem se queixava de ter sido questionada sobre sua
ideologia, se era a favor ou contra a depredação, e sobre o porquê de ir
às manifestações. “Por que eu quero, é meu direito”, indignou-se.
Naquele sábado, diversos interrogados relataram terem
ouvido perguntas sobre sua filiação a partidos, sua participação em
movimentos sociais e até mesmo em quem haviam votado nas últimas
eleições. Muitos tiveram que explicar o motivo de terem ido a
manifestações e a quantas haviam comparecido. A polícia também perguntou
se conheciam outros manifestantes, “vândalos” e integrantes do Black
Block.
Pedro, que havia sido intimado por telefone, foi
questionado se era financiado por algum partido ou movimento social, se
utiliza drogas ou pratica artes marciais. “Sempre vou a manifestações,
mas sempre de cara limpa. Acredito que as intimações arbitrárias são
para intimidar, e cada vez mais o Estado prevalece em seu momento de
surdez”, critica.
“Eu sou de maior e nunca fui detido, nunca fiz nada de
errado. Eu só curto a página Black Bloc [no Facebook] e comento algumas
vezes”, explicou Lucas, que fora intimado no dia do seu aniversário
junto à sua mãe, que também prestou depoimento. “Fui na manifestação do
dia 25, mas estava normal. Quando começou a palhaçada toda de quebrarem
tudo, eu logo fui embora. Tinha que estar em casa por volta das 19h30.
Minha mãe nem sabe o que significa Black Bloc”, conta Lucas. Já sua mãe,
que chegou nervosa ao local, questionou a validade de se ouvirem
pessoas que nem sequer participaram das manifestações. Incomodada por
não ter nenhum detalhe do porquê estar sendo interrogada, reclamou: “Em
uma dessas, quem sabe, a pessoa pode até infartar de susto”.
Começam as apreensões: “Não vão ser só três, vão ser 60″
No mesmo dia 22, munidos de mandados de busca e apreensão,
policiais civis entraram em três residências na Grande São Paulo para
confiscar pertences de pessoas acusadas de serem black blocs: uma em
Jardim d’Abril, em Osasco; outra no bairro de Laranjeiras, na zona
leste; e uma terceira na Cohab 2, em Itaquera, também na zona leste. Os
acusados são um menor de idade que veio junto à mãe ao Deic e foi
liberado; uma mulher identificada como “Laura Molotov” que aparentemente
está em Brasília e é investigada por produzir e ensinar a produção de
coqueteis molotov; e um homem, supostamente foragido no Paraguai,
acusado de render um segurança na segunda invasão ao laboratório do
Instituto Royal, em São Roque, no episódio do resgate de animais que
serviam de cobaia para pesquisas farmacêuticas, no fim do ano passado.
O diretor do Deic, Wagner Giudice, exibiu em coletiva de
imprensa tudo o que foi apreendido, como máscaras do soldado britânico
Guy Fawkes – usada como símbolo do grupo hacker Anonymous – máscaras de
proteção a gás lacrimogêneo, faixas de protesto, sprays de tinta, um par
de botas e cinco computadores. “Foi a primeira vez que conseguimos
cumprir os mandados de busca e apreensão, tendo em vista as
manifestações de hoje. Nós sabíamos que alguns desses tinham cometido
crimes anteriormente, então fomos às casas deles”, disse aos
jornalistas. A reportagem da Pública perguntou quais
eram os crimes que eles haviam cometido. “Depredação”, afirmou o
diretor. “Se tiver que acontecer de novo, vai acontecer, e com mais
veemência. Não vão ser só três, vão ser 60”, completou.
Segundo Giudice, os computadores serão enviados à perícia
para verificar o conteúdo dos discos rígidos. A busca é por “convocações
para atos, manuais de guerrilha, de como se faz um coquetel molotov”,
nas palavras da polícia, e também de ligações entre as pessoas
investigadas.
As origens do inquérito
O inquérito, que está sob sigilo, é assistido por
promotores, delegados e policiais militares de uma força-tarefa criada
em 8 de outubro de 2013 pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) e o
Ministério Público de São Paulo com objetivo de “combater atos de
vandalismos durante manifestações no Estado e garantir que protestos
legítimos não sejam ameaçados por ações violentas”, conforme texto publicado na página da SSP.
“Para dar um basta à violência, unimos as polícias Civil e Militar ao
MP para, numa operação rápida, identificar os suspeitos de atos
criminosos que atrapalham o direito de manifestação”, afirmou o
secretário Fernando Grella Vieira. “As manifestações populares permeadas
por atos de vandalismo podem prejudicar o direito coletivo da livre
manifestação”, argumentou o procurador-geral de Justiça do Ministério
Público do Estado de São Paulo, Márcio Elias Rosa.
A força-tarefa composta por Ministério Público, Polícia
Civil e Militar foi criada um dia antes da abertura do inquérito-mãe
pelo Deic. Segundo nota da SSP, na época a Polícia Civil já monitorava
as redes sociais dos suspeitos de envolvimento com a tática Black Bloc.
Posteriormente, no dia 31 de outubro de 2013, os secretários de
Segurança Pública de São Paulo e do Rio de Janeiro se reuniram com o
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e anunciaram que os serviços
de inteligência da Polícia Civil paulista e carioca atuariam em conjunto
com a Polícia Federal para combater os black blocs.
A portaria de abertura do inquérito do Deic lista, em seis
parágrafos, algumas considerações genéricas sobre o “famigerado bando”,
segundo o documento. O texto faz referência ao ocorrido dois dias antes,
no dia 7 de outubro de 2013, quando uma viatura de polícia do 3º DP de
São Paulo (Campos Elíseos) foi tombada por manifestantes, e ao fato de
Humberto Caporalli e Luana Bernardo Lopes terem sido presos em
flagrante, acusados de participar da depredação. Naquela noite de
protestos sete pessoas ficaram feridas, incluindo quatro policiais
militares.
“Tais indivíduos atuam de forma organizada com o objetivo de questionar o sistema vigente”, diz o texto da portaria, referindo-se também às roupas pretas e máscaras que impossibilitam a identificação dos investigados. A portaria descreve a tese de que a reunião de adeptos da tática de Black Bloc nas manifestações constitui uma associação criminosa, crime previsto no artigo 288 do Código Penal e cuja pena é de um a três anos de reclusão.
Inicialmente um inquérito policial dura 30 dias, mas pode haver prorrogações sucessivas de 30 dias cada uma, sem prazo limite para o término da investigação. O inquérito do Deic já foi prorrogado ao menos três vezes e corre em sigilo a pedido do delegado que o preside, para que a investigação não seja prejudicada.
Quem é um Black Block para o Deic?
De acordo com a assessoria de imprensa do Deic, o perfil identificado como Black Bloc é de um jovem, de 16 a 20 e poucos anos, que mora com os pais, de orientação política de extrema esquerda, de classe média a média baixa. “Temos um inquérito instaurado para apuração de formação de quadrilha. Nem todos são black blocs. Uma parte é de manifestantes que tiveram de correr para se proteger, em virtude do confronto da polícia com black blocs. A nossa função foi pegar todo o material que tínhamos, o material de internet e que a própria PM apresentou para nós de pessoas que foram abordadas na rua mas sequer foram levadas para o distritos policiais. Estamos formando um quebra-cabeça para saber quem promove a depredação, quem patrocina, e quando digo patrocina não estou dizendo pagando – quem é que organiza isso para fazer as coisas acontecerem”, detalha o diretor-geral do Deic, Walter Giudice.
No dia 3 de outubro de 2013, poucos dias antes da
instauração do inquérito no Deic, alunos da Universidade de São Paulo
decidiram, em assembleia, entrar em greve reivindicando eleições diretas
para reitor. Um ato foi convocado para o dia 15, dia dos professores,
em solidariedade à luta dos docentes no Rio de Janeiro, a favor da
democratização das universidades e de melhorias na educação. Os
manifestantes argumentam que foram encurralados pela polícia na Marginal
Pinheiros e que a única forma de fugir das bombas de gás lacrimogênio
foi correr para dentro da loja Tok&Stok, que fica na Marginal. Eles
afirmam que foram ajudados pelos funcionários da loja e que não houve
depredações. Segundo a polícia, o protesto terminou com 56 detenções e
confrontos entre manifestantes e a Tropa de Choque da Polícia Militar.
Durante o mês seguinte, os ativistas detidos no protesto receberam intimações para depor no Deic.
Um dos intimados foi o estudante de Jornalismo da Escola de
Comunicação e Artes da USP, Fernando Magarian de Freitas. Fernando faz
parte do bloco de maracatu Coro de Carcarás, que costuma se somar aos
protestos, e fora detido junto com outros estudantes. “A gente estava em
greve ainda e, em uma das assembleias do departamento, uma colega minha
do Diretório Central dos Estudantes (DCE) avisou que três estudantes
que foram presos comigo tinham recebido intimação para depor no Deic. No
dia seguinte apareceu um oficial de justiça na minha casa me chamando
para depor. Tinha muita gente lá para depor no dia, cerca de 100
pessoas”, conta. Fernando foi prestar depoimento no dia 14 de novembro.
“Cheguei lá, o escrivão confirmou meus dados pessoais e depois
perguntou: ‘Você sabe porque você tá aqui?’ Eu falei que não sabia e ele
me mostrou a revista Época daquela semana”.
A publicação de 8 de novembro trouxe a manchete “Os Black
Blocs sem Máscara” para a reportagem de capa que relatava que um
repórter da revista passara “o fim de semana de Finados num campo de
treinamento dos Black Blocs, em São Paulo”. O texto descrevia o Black
Bloc como um grupo que tinha “método, objetivos, um programa de atuação e
acesso a financiamento de entidades estrangeiras” e refutava a ideia de
que seria uma tática de atuação horizontal, sem lideranças, que ataca
símbolos do Estado e de grandes corporações. A revista mencionava três
líderes: Leonardo Morelli, da ONG Defensoria Social; Daniela Ferraz, a
“Pantera”, e um ex-integrante do MST chamado Paulo Matos.
“O escrivão me perguntou se eu tinha lido a matéria, eu
disse que não. Aí ele falou: ‘Essa é uma matéria em que o jornalista foi
recebido num acampamento de treinamento de milícia do Black Bloc’.
Falei que eu não sabia disso, ele começou a me perguntar se eu conhecia
os líderes do grupo apontados na reportagem e eu disse que não conhecia
ninguém”, diz Fernando.
“Já participou de treinamentos de guerrilha?”
A estudante de audiovisual da ECA-USP Amanda Carvalho, de
18 anos, também foi detida e intimada para depor nos mesmos dias que o
colega Fernando. Ela reafirma que muitas perguntas foram baseadas na
reportagem. “Fizeram desde as perguntas mais triviais – como ‘você é
Black Bloc?’, ‘conhece o Black Bloc?’, ‘já viu a página do Facebook do
Black Bloc?’ – até as mais bizarras, como ‘você já participou de
treinamentos de guerrilha urbana no campo?’”. Outros depoentes ouvidos
pela Pública também foram questionados se tinham ligação com os supostos líderes do Black Bloc citados na reportagem.
Detido no mesmo dia 15 de outubro do ano passado, o
publicitário Alexandre Morgado, de 30 anos, é membro do GAPP (Grupo de
Apoio ao Protesto Popular) que presta primeiros socorros aos feridos nas
manifestações. Alexandre conta que ajudou a montar o GAPP a partir dos
próprios conhecimentos em primeiros socorros. “Fui brigadista de
incêndio muitos anos e fiz um curso ministrado pelos bombeiros de
atendimento em primeiros socorros”, explica.
Sobre o interrogatório, ele conta: “Me perguntaram o que eu
estava fazendo na manifestação, quem era o meu grupo. Quiseram saber
quantos voluntários são, por que a gente faz isso. Ficamos mais ou menos
uns 40 minutos nisso. Depois começaram a me questionar basicamente
sobre o Black Bloc. Me perguntaram primeiro se o meu grupo era adepto da
tática e eu falei que o meu grupo é 100% pacífico. Até porque a gente
não é ativo, não tem pauta própria, não marcamos manifestação, só
apoiamos. Nosso papel é passivo na rua até o momento em que alguém se
fere, não tem nada a ver com Black Bloc. Chegaram a perguntar se a gente
era um grupo que prestava primeiros socorros aos black blocs para eles
não irem ao hospital e se identificar, o que eu neguei. Se existem
primeiros socorros é porque haverá outros socorros, inclusive no
hospital se for o caso”, lembra. “Depois perguntaram se eu conhecia a
‘Pantera do Black Bloc’, eu dei até risada nessa hora, tive que me
segurar”, ironiza o publicitário.
Práticas e posicionamentos políticos individuais também
foram questionados. “O escrivão me perguntou que roupa eu estava
vestindo no dia da manifestação e por uma infelicidade eu estava com uma
camiseta preta, o que pra eles deve ser um super indício de que a
pessoa é Black Bloc”, diz Fernando, aluno da ECA-USP. “Ele me perguntou
se eu trabalhava, se eu era associado a partido, e qual era a minha
posição política a respeito dos black blocs. Ele quis fazer um
mapeamento político e ideológico, como depois eu descobri que ele também
fez com os meus colegas aqui da ECA”.
Protestos variados e MPL são alvos
Boa parte das pessoas intimadas para depor no inquérito do
Deic havia sido detida e identificada em protestos diferentes que
ocorreram a partir de outubro de 2013. Mas este não foi o único critério
usado para as intimações. O Movimento Passe Livre (MPL), responsável
por organizar as manifestações que levaram milhares de pessoas às ruas
em junho de 2013 contra o aumento das tarifas de ônibus, informou que
dez integrantes já foram intimados para depor. “Até o fim do ano
passado, foram chamados para depor os membros do MPL que foram detidos
no ato de 25 de outubro, um dos quatro da Semana de Lutas pelo Passe
Livre. Na leva de intimações para o Deic feitas para esse sábado, 22 de
fevereiro de 2014, foram chamadas pessoas que não tinham sido detidas em
nenhuma manifestação, incluindo militantes, um dos advogados do
movimento e até mãe de um dos integrantes que nunca foi num protesto”,
conta Mariana Toledo, 28 anos, membro do MPL desde 2005.
Ainda no ano passado, os integrantes do grupo decidiram não
comparecer ao Deic para dar seus depoimentos. Eles argumentam que o
inquérito parte de práticas consideradas arbitrárias e ilegais pelos
militantes, como a detenção de pessoas “para averiguação” em meio ao
protesto. “A gente tomou a decisão de não comparecer, em exercício a um
direito constitucional de ficar em silêncio. Entendemos que aquilo seria
uma duplicação da ilegalidade que já havia acontecido na delegacia ano
passado, quando as meninas passaram por revista vexatória, as pessoas
apanharam, a Tropa de Choque ocupou a delegacia e não havia acusação
nenhuma contra ninguém”, explica Rodolfo Valente, 31 anos, advogado do
MPL. “Então, pelo lado jurídico, em exercício do direito ao silêncio, e
sobretudo pelo lado político, de não passar novamente por uma
ilegalidade flagrante, as pessoas não compareceram. Nós manifestamos
essa posição em petições entregues no Deic e publicamente também” (veja a nota publicada no blog do MPL)
Valente também foi intimado a depor no Deic no último
sábado, 22 de fevereiro. “Para nós não existe um sinal de intimidação
maior do que intimar o advogado que estava cuidando do caso de alguns
detidos que tinham sido intimados. A pessoa que acompanhou isso, fez as
petições, que é o advogado do movimento, é intimada nessa segunda leva.
Isso mostra um esforço de dizer: ‘olha, a gente não vai deixar vocês em
paz'”, avalia Mariana. “São estratégias feitas para criar o clima do
pânico. Se até o advogado é intimado, se a mãe de alguém é intimada, é
melhor ficar em casa.” Ainda assim, ela diz que o MPL não pretende parar
de organizar atos, debates e outras atividades.
As críticas da defesa
Para Alexandre Pacheco Martins, advogado da Comissão de Direitos Humanos do Sindicato de Advogados de São Paulo, que atua no caso, o inquérito em curso no Deic para investigar a associação criminosa de adeptos da prática Black Bloc é ilegítimo. “Um inquérito não serve para investigar pessoas e sim crimes. É essa a divergência principal que a gente tem em relação ao objeto do inquérito policial”, diz. Ele aponta o teor dos interrogatórios – “de conteúdo político, e não de conteúdo criminal” – como uma das evidências desse fato.
“Todas as pessoas que foram presas para averiguação desde
junho de 2013 até hoje estão sendo aos poucos somadas [ao inquérito]. E
conforme vão tendo novos atos, novas manifestações, invariavelmente
também tem novas levas de intimação para que as pessoas compareçam”,
relata Martins.
O advogado encara a investigação policial como uma forma de
prevenir a radicalização das manifestações, através do mapeamento de
pessoas frequentadoras dos atos. “Quando em dia de grandes eventos,
pode-se emitir uma medida cautelar em que a pessoa não possa frequentar
espaços públicos, sob a pena de ser presa. Evidentemente que essas
pessoas tenderão a se manter em casa por receio”, acredita.
André Zanardo, que atua no caso por meio do coletivo
Advogados Ativistas, também vê uma estratégia política por trás da
instauração do inquérito. Segundo ele “o objeto desse inquérito é muito
amplo, é peculiar”. “Esse inquérito está abarcando tudo ultimamente,
situações de todo tipo. E o apelido dele é o ‘inquérito dos black
blocs’. Só que no inquérito dos black blocs tem de tudo: tem professor,
tem trabalhador de toda a sorte”, critica. “Você está expondo, por
exemplo, uma senhora de 50 e tantos anos de idade a passar na frente da
delegacia com toda a repercussão da imprensa para ir depor num inquérito
apelidado de ‘Black Bloc’. É um absurdo”, acredita, se referindo ao
caso da mãe de Lucas.
Para Martins, não há elementos que configurem a associação
criminosa no caso. “São crimes autônomos de dano ao patrimônio. Não é
isso que faz ser uma associação criminosa. Se eu não te conheço e vejo
você quebrando uma janela e eu vou lá e quebro uma janela também, isso
não faz de nós pessoas associadas para cometer um crime. Faz que você
responda pelo dano ao patrimônio e eu também”, explica.
Para Ariel de Castro Alves, advogado membro do Movimento
Nacional de Direitos Humanos e do Grupo Tortura Nunca Mais, o Deic
estaria tendo uma “atuação de polícia social e política”. “Mas esta
atuação só ocorre porque tem respaldo do governo estadual e também do
Ministério Público e do Poder Judiciário”, analisa. “Nessa investigação,
eles precisam identificar: quem, em qual dia, quebrou o quê, em tal dia
agrediu quem, quem tal dia jogou coquetel molotov contra quem. Precisa
ter essa especificidade. Não se pode tentar indiciar ou criminalizar
pessoas com base no ‘ouvi dizer’ ou na posição ideológica dessas
pessoas”.
Questionada pela Pública, a assessoria de
imprensa da Secretaria da Segurança Pública não quis revelar os nomes
dos delegados atualmente responsáveis pelo inquérito. “Por enquanto é
prudente parar de dar visibilidade demais para esse assunto enquanto a
polícia trabalha. Isso foi falado à exaustão durante um tempo e agora a
determinação é não se falar mais”, declarou a assessoria. A Secretaria
se negou a confirmar ou refutar se a polícia está realizando escutas ou
pedidos de quebra de sigilo de dados telefônicos e digitais dos
investigados.
De acordo com o diretor do Deic, Wagner Giudice, a polícia
aguarda informações requeridas ao Facebook sobre os investigados. “Você
pega esse cara, pega com quem ele conversa, quem é próximo… Assim que a
gente trabalha. Hoje é muito fácil para a gente, é tudo integrado”,
explicou o diretor sobre o mapeamento feito através das redes sociais.
Segundo ele, não há previsão de término para as investigações em curso
no inquérito 01/2013.
Prisão de casal pela Lei de Segurança Nacional deu origem a inquérito
No dia 7 de outubro de 2013, às 22h30, Humberto Caporalli,
24 anos, e Luana Bernardo Lopes, de 20, foram detidos na esquina da
avenida São João com Ipiranga – ironicamente, no cartão-postal da
capital paulista eternizado na voz de Caetano Veloso. Ambos participavam
de um protesto em solidariedade aos professores em greve no Rio de
Janeiro que também cobrava mais investimentos em educação. Segundo
Humberto contou em entrevista à Pública, ele e Luana
percorriam as ruas fotografando a manifestação quando se depararam com
uma viatura policial desguarnecida na avenida Rio Branco. Logo, a dupla
presenciou e fotografou – segundo a versão de Humberto – o quebra-quebra
de manifestantes que viraram e depredaram o veículo policial.
Mais tarde, ambos foram abordados, junto a outro homem, por
policiais armados que levaram apenas Luana e Humberto ao camburão. “O
policial pegou a câmera, mostrou as fotos e disse: vocês estavam no
protesto? Eu respondi que sim. Ele disse: vocês estão presos”. Na versão
registrada no Boletim de Ocorrência policial as fotografias produzidas
por Humberto da depredação à viatura comprovam a participação da dupla
no ato. Não é mencionada a presença do terceiro manifestante apontado
por Humberto.
Os dois chegaram a ser expostos pelos policiais à imprensa,
ainda no banco traseiro da viatura, e fotos pessoais que estavam na
câmera fotográfica apreendida foram publicadas pela imprensa. “Minha mãe
ficou sabendo que eu tinha sido preso só quando saiu no Jornal
Nacional”, conta Humberto.
Presos em flagrante, ambos foram enquadrados, no artigo 15
da Lei de Segurança Nacional promulgada por João Figueiredo em 1983 –
que prevê a pena de 3 a 10 anos para quem pratica sabotagem contra
“instalações militares, meios de comunicações, meios e vias de
transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragem,
depósitos e outras instalações congêneres” (acesse aqui).
Também foram acusados por dano qualificado ao patrimônio público,
incitação ao crime, associação criminosa e crime de pichação.
Humberto ainda foi enquadrado por porte ilegal de arma de fogo de uso restrito – o B.O. relata a apreensão de uma bomba de gás lacrimogêneo “aparentemente utilizada”. O jovem admite: “Eu estava com uma cápsula usada de bomba de gás da Condor, empresa fabricante do Rio. Todas as bombas usadas pela polícia nos protestos são dela [da empresa]. Eu tenho uma coleção da Condor, pego uma em cada manifestação, queria fazer umas instalações artísticas colocando poesias nas latas”. Ele pode pegar de três a seis anos apenas pela posse desse artefato. Em entrevista à Agência Brasil, o ex-delegado titular do 3º Distrito Policial, Antônio Luis Tuckumantel, justificou o indiciamento dizendo que a bomba de gás lacrimogênio “embora [estivesse] detonada, estava na posse deles, e é de uso restrito da polícia”.
Também consta no boletim de ocorrência a apreensão de uma
“Cartilha de Como se Portar em Movimentos Sociais” entre os pertences de
Caporelli. Humberto diz que a tal “cartilha” era um simples panfleto
distribuído pelo grupo Advogados Ativistas, que presta auxílio jurídico
voluntário para manifestantes detidos. No B.O. as únicas testemunhas são
os próprios policiais.
“Ficaram olhando minhas conversas no Facebook durante a madrugada”
Segundo Humberto, enquanto ainda estavam na viatura, a
caminho da delegacia, ouviram dos policiais que seriam enquadrados na
legislação militar. “Ele me disse: vocês rodaram, sabe o que vai ser? A
Lei de Segurança Nacional. A Luana chorava, eu fiquei gelado. Eu sabia
por alto o que era a Lei de Segurança Nacional, mas não sabia que
existia algo assim no Brasil”.
A dupla chegou ao 3º DP, nos Campos Elíseos, às 23h30.
Separado de Luana, Humberto teve que tirar a roupa e foi algemado a uma
cadeira. Depois, foi obrigado a acessar o seu Facebook no computador da
delegacia. “Ele [o policial] perguntou: como você ficou sabendo da
manifestação? Eu respondi: pelo Facebook. Ele então disse: me mostra, me
mostra, põe aí. Ele me fez por a senha e acessar meu Facebook na
delegacia. Ficaram olhando minhas conversas durante a madrugada”,
relata. O B.O. informa, em termos genéricos, que “através de um trabalho
de polícia judiciária (…) conseguiram identificar Humberto como sendo
um membro do grupo ‘Black Block’ através do seu perfil no Facebook”.
Humberto dormiu em uma das celas da delegacia que, lotada,
abrigava de 20 a 30 detidos. “Tinha gente que não tinha como dormir. A
gente revezava, enquanto uns deitavam e dormiam, outros se sentavam,
isso para caber todo mundo. Só tinha uma manta que a gente usava ou para
se cobrir ou para colocar no chão. Achei que fossem me deixar lá dentro
e jogar a chave fora”
De lá, foi transferido para outro DP e, em seguida, ao
Centro de Detenção Provisória (CDP) Belém II. Luana foi enviada para o
CDP Feminino de Franco da Rocha.
Ao ser liberado do CDP, Humberto precisou pedir dinheiro emprestado para conseguir pagar sua passagem de volta à casa da sua família em Mogi Guaçu, interior de São Paulo. Sem advogado, ele diz não saber como está o processo, mas conta que foi intimado para prestar esclarecimentos no final de dezembro de 2013. Jamais foi informado que o seu caso era citado na justificativa da abertura do “inquérito do Black Bloc” do Deic em São Paulo.
Fonte: AGÊNCIA PÚBLICA
Nenhum comentário:
Postar um comentário