PICICA: "“Vamos falar sobre o luto”, em vamosfalarsobreoluto.com.br,
é um espaço que merece atenção na internet brasileira, dada a nossa
dificuldade cultural de falar sobre a morte. Carrega um paradoxo talvez
incontornável, porque falar sobre o luto será sempre também falar sobre a
vida que fica, continua, sobrevive, permanece. Se, como me disse um
médico e amigo, é preciso passar pelo luto, se o luto é uma experiência
inevitável, então é também inevitável aprender a falar sobre ele –
assim como precisamos aprender a falar sobre a morte, como nos encontros
promovidos pelo Death Cafe em Londres –, mas para isso me parece que devemos também falar sobre o tempo."
O tempo do luto é outro
POR Carla Rodrigues Carla Rodrigues | 27.01.2016
“Vamos falar sobre o luto”, em vamosfalarsobreoluto.com.br,
é um espaço que merece atenção na internet brasileira, dada a nossa
dificuldade cultural de falar sobre a morte. Carrega um paradoxo talvez
incontornável, porque falar sobre o luto será sempre também falar sobre a
vida que fica, continua, sobrevive, permanece. Se, como me disse um
médico e amigo, é preciso passar pelo luto, se o luto é uma experiência
inevitável, então é também inevitável aprender a falar sobre ele –
assim como precisamos aprender a falar sobre a morte, como nos encontros
promovidos pelo Death Cafe em Londres –, mas para isso me parece que devemos também falar sobre o tempo.
A velocidade da vida contemporânea rima perfeitamente com
seu imperativo de felicidade a qualquer custo, tema tão bem trabalhado
nas pesquisas de João Freire Filho, organizador de Ser feliz hoje,
livro no qual discute, entre inúmeros outros aspectos, como o
imperativo da felicidade nos embrutece. Manter-nos funcionando como
máquinas bem azeitadas exige também a manutenção de um certo ritmo, a
partir do qual perde-se o tempo da delicadeza.
Uma das características do luto é quebrar esse ritmo
maquínico e, de certa forma, mostrar seu absurdo. O tempo do luto é
também a indicação do tempo em que chegará a nossa própria morte. Se há
verdade na ideia de que toda angústia é angústia de morte, falar sobre o
luto é conversar com a angústia, a partir dela, e deixar existir em
nossas vidas a tristeza das faltas. Há saudades, lacunas, tristezas,
sentimentos de perda e de vazio, que a morte de alguém muito amado
exacerba, mas esses buracos que nos são constitutivos – no começo, há
falta – estão cada vez mais sendo encobertos pelo necessidade de manter o
giro do tempo rodando em ritmo acelerado, violento, virulento.
Quando escrevi sobre
as exigências de flexibilidade do capitalismo tardio, um dos aspectos
que sublinhei foi a constatação do sociólogo espanhol Manuel Castells,
para quem o tempo deixou de ser “linear, irreversível, mensurável e
previsível”, produzindo uma experiência de eterno “presente”. Não acho
que havia nada de errado com o meu tempo quando ele era linear e,
sobretudo, previsível. Embora tente me adaptar aos “novos tempos”,
também gosto da ideia de resistir a suas exigências, de dizer não à
obrigação de produtividade, de resultados, de eficiência, cujos valores
contaminam tanto e a tal ponto os processos pessoais que contaminam até o
tempo do luto. Sofra rápido, porque a vida continua, é um dos clichês
do luto contemporâneo.
Penso sobretudo que o tempo do luto é necessariamente
marcado pela presença do passado, ou a isso que se dá o nome de saudade.
Para que a experiência de “eterno presente” nos mantenha funcionando
segundo os imperativos da felicidade e da performance, é preciso não
passar pelo tempo do luto. Falar, conversar, trocar experiências, dizer
como se sente em relação a quem partiu, contar histórias, lembrar e até
esquecer, tudo isso faz parte do tempo do luto, que não pode ser
encaixado em qualquer normatividade. Em um mundo que pretende definir o
vinho certo, a comida certa, a cerveja certa, a roupa certa, a decoração
certa, o lazer certo, na hora certa, para o lugar certo, fica difícil
dar tempo ao luto, porque não há o “tempo certo” do luto.
No clássico Luto e melancolia, Freud observa que é
"digno de nota que nunca nos ocorre considerar o luto um estado
patológico, nem encaminhá-lo para tratamento médico, embora ele acarrete
graves desvios da conduta normal da vida. Confiamos que será superado
depois de algum tempo e consideramos inadequado e até mesmo prejudicial
perturbá-lo". Quando fala em “depois de algum tempo”, deixa
(propositalmente) em aberto qual é a medida desse tempo. No site Vamos
Falar Sobre O Luto, há um relato marcante de um pai que perdeu a filha e passou um ano se reinventando.
Na prática, todo luto implica também o trabalho de encerrar
a existência civil de quem morreu – e mesmo neste aspecto jurídico mais
básico, o prazo para abertura de um inventário é de 60 dias. Até mesmo o
imperativo da lei reconhece que há um tempo do luto. A tramitação do
fim de uma vida civil torna concreto o que o filósofo Jacques Derrida
escreveu sobre a morte de uma pessoa querida: a cada vez, o fim do
mundo. Providências administrativas nos evidenciam que cada morte
representa o fim de um mundo, do mundo compartilhado com aquele que
partiu: “A morte declara a cada vez o fim do mundo em sua totalidade, o
fim de todo mundo possível, e a cada vez o fim do mundo como totalidade
única, portanto insubstituível e portanto infinita”. Essa morte, como
toda morte, tem um tempo. Vamos falar sobre o luto, e para isso podemos
começar reconhecendo que o tempo do luto é outro.
Carla Rodrigues
Carla Rodrigues é professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ. Fez especialização, mestrado e doutorado em Filosofia na PUC-Rio e pós-doutorado no IEL/Unicamp. É coordenadora do laboratório de pesquisa Escritas - filosofia, gênero e psicanálise.
Fonte: BLOG DO IMS
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