janeiro 10, 2016

Saúde mental e futuro – artigo de Rosana Onocko Campos (ABRASCO)

PICICA: "“Então, a esperança... eu não tenho esperança, eu não tenho esperança de que eu vou ficar boa. Porque eu sei que a hora que eu deixar de tomar remédio, o meu maior medo vai voltar, que é ser internada, que é ser amarrada. Que é ninguém cuidar de mim (...). Isso me bota num desespero maior”. Depoimento de Rita (nome fictício), de 39 anos, com internações em hospital psiquiátrico - Foto Davide Espertini"

Saúde mental e futuro – artigo de Rosana Onocko Campos

'O Brasil não merece a degradação técnico-científica que vem sofrendo a partir do discurso do Ministério da Saúde'


“Então, a esperança... eu não tenho esperança, eu não tenho esperança de que eu vou ficar boa. Porque eu sei que a hora que eu deixar de tomar remédio, o meu maior medo vai voltar, que é ser internada, que é ser amarrada. Que é ninguém cuidar de mim (...). Isso me bota num desespero maior”. Depoimento de Rita (nome fictício), de 39 anos, com internações em hospital psiquiátrico - Foto Davide Espertini


A professora Rosana Onocko Campos, da Universidade Estadual de Campinas e membro do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco opina sobre a nomeação do médico psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho, para a assunção do cargo de Coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, do Ministério da Saúde – “É lastimável que o coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde, em pleno século XXI, seja uma pessoa que tenha um passado tão pouco comprometido com os rumos da reforma” diz Rosana em artigo publicado no jornal O Globo, nesta quinta-feira, 17 de dezembro. Confira o artigo na íntegra:

“Então, a esperança… eu não tenho esperança, eu não tenho esperança de que eu vou ficar boa. Porque eu sei que a hora que eu deixar de tomar remédio, o meu maior medo vai voltar, que é ser internada, que é ser amarrada. Que é ninguém cuidar de mim (…). Isso me bota num desespero maior”. Depoimento de Rita (nome fictício), de 39 anos, com internações em hospital psiquiátrico.
A aposta brasileira na reforma psiquiátrica é, sem dúvida, ético-política, algo muito valoroso que nos foi deixado pelos anos 1980. Nesse período, houve a expansão do Sistema Único de Saúde, da rede de serviços comunitários (os Centros de Atenção Psicossocial) e ainda a diminuição do número de leitos em hospitais psiquiátricos monovalentes. Isso significou melhores cobertura e cuidado para as pessoas com transtornos graves de saúde mental.

Várias pesquisas demonstraram que as redes reformuladas têm uma melhor cobertura para pacientes e familiares, conseguindo tratar melhor os transtornos graves de saúde mental, abordando-os de forma humanizada, na comunidade e sem produzir isolamento social nem exclusão. Estas evidências comprovam que a proposta da reforma não é mera utopia, e que é, sim, possível ser alcançada quando nas cidades se investe em saúde. Estes dados concretos e objetivos comprovam o equívoco de uma política de saúde mental baseada em uma psiquiatria pseudocientífica, entregue a interesses comerciais, que pretende nos apresentar como burros, mal informados ou, na melhor das hipóteses, como ingênuos ignorantes bem-intencionados e não científicos.

Em todo o mundo, os modelos de tratamento comunitário, baseados na experiência pioneira do Brasil, vêm demonstrando a superioridade desse estilo de abordagem interdisciplinar, bem mais efetivo que a tradição psiquiátrica tradicional, centrada na medicalização e em internação em hospitais. As evidências científicas estão contra a psiquiatria tradicional: abordagem familiar e psicodinâmica tem mais efetividade do que medicamentos fantásticos e mentirosos. A ciência está comprovando isto; o resto é discurso influenciado por interesses corporativos e empresariais.

Numerosos estudos apontam que os transtornos mentais são cada dia mais prevalentes, e isso só tende a crescer, tendo em vista as condições competitivas da vida contemporânea. Muitos dos sistemas de saúde de cobertura universal têm se preocupado com esse tema e vêm se reorganizando para enfrentar o problema, como é o caso do inglês. Mesmo em países sem sistemas de cobertura universal, como nos Estados Unidos, o movimento de pessoas em prol do recovery (a possibilidade de viver melhor apesar do contexto) tem ganhado força desde os anos 80; e não casualmente alguns desses pacientes escolheram ser chamados de survivors (sobreviventes), como alternativa ao horror do isolamento e da segregação social do tratamento asilar.

Que a luta pelos direitos das pessoas com transtornos mentais tenha se alinhavado às lutas pela democracia no Brasil não deveria, portanto, nos surpreender. O Brasil foi criticado na Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações em hospitais psiquiátricos que resultaram em morte de pacientes. A lógica da segregação e despersonalização dos manicômios não pode ser reformulada ou humanizada (discurso defendido pelo atual ministro da Saúde). É lastimável que o coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde, em pleno século XXI, seja uma pessoa que tenha um passado tão pouco comprometido com os rumos da reforma. O Brasil não merece a degradação técnico-científica que vem sofrendo a partir do discurso do Ministério da Saúde. Como diria a Rita: “Isso me bota num desespero ainda maior”.

Fonte: ABRASCO

Nenhum comentário: