PICICA: "Desde o título aparentemente paradoxal, Boi neon apresenta-se,
por um lado, como mais um filme pernambucano recente que busca conjugar
tradição e modernidade, raízes arcaicas e signos da cultura industrial
contemporânea. No caso, o universo da vaquejada em interação com o mundo
da moda, do consumo, da iconografia pop.
Mas o filme de Gabriel Mascaro, premiado nos festivais de Veneza,
Toronto, Hamburgo, Rio e Salvador, é muito mais do que isso. Outras
camadas mais profundas o enriquecem e adensam, por trás (ou por baixo)
de sua bela e fascinante superfície. Vamos a elas, não sem antes
entregar uma sinopse mínima, mas necessária."
Boi neon e o homem como animal sublime
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 15.01.2016
Desde o título aparentemente paradoxal, Boi neon apresenta-se,
por um lado, como mais um filme pernambucano recente que busca conjugar
tradição e modernidade, raízes arcaicas e signos da cultura industrial
contemporânea. No caso, o universo da vaquejada em interação com o mundo
da moda, do consumo, da iconografia pop.
Mas o filme de Gabriel Mascaro, premiado nos festivais de Veneza, Toronto, Hamburgo, Rio e Salvador, é muito mais do que isso. Outras camadas mais profundas o enriquecem e adensam, por trás (ou por baixo) de sua bela e fascinante superfície. Vamos a elas, não sem antes entregar uma sinopse mínima, mas necessária.
O protagonista, Iremar (Juliano Cazarré), cuida dos bois de uma companhia itinerante de vaquejadas. Mora na carroceria do caminhão conduzido por Galega (Maeve Jinkins). Junto com um ajudante (Carlos Pessoa) e a filha de Galega, a menina Cacá (Alyne Santana), formam uma inusitada família. Nas horas vagas, Iremar busca tecidos e figurinos para desenhar e confeccionar os trajes exóticos e eróticos que Galega usa em suas apresentações de dança.
Sobreposição de papeis
Há portanto, desde o início, um interessante embaralhamento de papeis sociais e de gênero. Mais do que uma mera inversão espetacular (o sertanejo costureiro, a mulher caminhoneira), o que vemos é uma sobreposição de papeis em cada indivíduo: ele é um vaqueiro rude e um estilista sensível; ela é uma enérgica motorista e uma dançarina sensual. Outra personagem feminina que aparecerá depois é ao mesmo tempo vendedora de perfumes e vigia armada de uma fábrica. Ninguém é só uma coisa, um “tipo” unidimensional. As próprias pessoas têm camadas, são ricas, insondáveis.
Sob o olhar curioso de Mascaro, desprovido de julgamento moral e intenção doutrinária, tudo se passa com a leveza e a desenvoltura de seus elegantes travellings descritivos. Nenhum gesto declaratório, nenhuma ênfase melodramática, nenhum empunhar de bandeiras pesa ali. Não se trata de um drama panfletário sobre o pobre vaqueiro incompreendido que queria ser estilista de moda, nem de um manifesto pela emancipação da mulher oprimida do sertão.
O próprio pano de fundo histórico-social – o crescimento da indústria têxtil no Nordeste, a introdução dos valores e signos do consumo urbano no mundo rural – expõe-se naturalmente, em imagens fortes e originais, como a do boi decorado com tinta fosforescente que dá título ao filme.
Animalidade e cultura
Liberto da preocupação doutrinária, o diretor pode penetrar em terreno mais denso e movediço: as relações entre o indivíduo e a natureza, entre o biológico e o cultural ou, para dizer de modo solene, entre matéria e espírito.
Há pano para muitas mangas aqui: psicanalíticas, antropológicas, filosóficas, até religiosas. Em princípio, o que me parece que o filme faz é ressaltar a animalidade do homem, mas não encarando-a como um lastro negativo, a ser superado pela cultura, e sim como um patrimônio cuja negação é não apenas impossível como indesejável. A condição animal, tal como mostrada por Mascaro, é sublime. Ela não contradiz a cultura ou a espiritualidade em seu sentido mais amplo, mas a enriquece e matiza. Ao reconhecer e viver sua dimensão animal, o homem não se rebaixa, mas se eleva.
Daí que as imagens mais marcantes desse filme plasticamente robusto como um touro e delicado como um retalho de seda talvez sejam a da masturbação de um cavalo de raça por um homem (para colher seu valioso sêmen), a da dança de uma mulher com cabeça de cavalo e a hipnótica cena de sexo que não vou descrever aqui para não estragar a poesia e a surpresa.
O menino e o lobo
O leitor desta coluna sabe que não costumo dar excessiva importância ao Oscar. Mas merece louvor e comemoração a indicação do desenho animado O menino e o mundo, de Alê Abreu, para o prêmio da categoria. Primeiro, porque o filme é de fato extraordinário, cativante, original, na contramão das tendências predominantes do gênero. Segundo, porque chegou aonde chegou discretamente, sem estardalhaço de mídia e marketing. Um grande feito da animação brasileira e de um de seus maiores artistas.
No mesmo departamento, de “filmes que chegam lá sem alarde”, O lobo atrás da porta, de Fernando Coimbra, é finalista do prestigioso prêmio da Directors Guild of America, na categoria estreante em longa-metragem. Quando foi lançado nos cinemas escrevi sobre ele aqui.
Seria bom que ambos – O menino... e O lobo... – entrassem de novo em cartaz, para atingir, quem sabe, o público que merecem.
Mas o filme de Gabriel Mascaro, premiado nos festivais de Veneza, Toronto, Hamburgo, Rio e Salvador, é muito mais do que isso. Outras camadas mais profundas o enriquecem e adensam, por trás (ou por baixo) de sua bela e fascinante superfície. Vamos a elas, não sem antes entregar uma sinopse mínima, mas necessária.
O protagonista, Iremar (Juliano Cazarré), cuida dos bois de uma companhia itinerante de vaquejadas. Mora na carroceria do caminhão conduzido por Galega (Maeve Jinkins). Junto com um ajudante (Carlos Pessoa) e a filha de Galega, a menina Cacá (Alyne Santana), formam uma inusitada família. Nas horas vagas, Iremar busca tecidos e figurinos para desenhar e confeccionar os trajes exóticos e eróticos que Galega usa em suas apresentações de dança.
Sobreposição de papeis
Há portanto, desde o início, um interessante embaralhamento de papeis sociais e de gênero. Mais do que uma mera inversão espetacular (o sertanejo costureiro, a mulher caminhoneira), o que vemos é uma sobreposição de papeis em cada indivíduo: ele é um vaqueiro rude e um estilista sensível; ela é uma enérgica motorista e uma dançarina sensual. Outra personagem feminina que aparecerá depois é ao mesmo tempo vendedora de perfumes e vigia armada de uma fábrica. Ninguém é só uma coisa, um “tipo” unidimensional. As próprias pessoas têm camadas, são ricas, insondáveis.
Sob o olhar curioso de Mascaro, desprovido de julgamento moral e intenção doutrinária, tudo se passa com a leveza e a desenvoltura de seus elegantes travellings descritivos. Nenhum gesto declaratório, nenhuma ênfase melodramática, nenhum empunhar de bandeiras pesa ali. Não se trata de um drama panfletário sobre o pobre vaqueiro incompreendido que queria ser estilista de moda, nem de um manifesto pela emancipação da mulher oprimida do sertão.
O próprio pano de fundo histórico-social – o crescimento da indústria têxtil no Nordeste, a introdução dos valores e signos do consumo urbano no mundo rural – expõe-se naturalmente, em imagens fortes e originais, como a do boi decorado com tinta fosforescente que dá título ao filme.
Animalidade e cultura
Liberto da preocupação doutrinária, o diretor pode penetrar em terreno mais denso e movediço: as relações entre o indivíduo e a natureza, entre o biológico e o cultural ou, para dizer de modo solene, entre matéria e espírito.
Há pano para muitas mangas aqui: psicanalíticas, antropológicas, filosóficas, até religiosas. Em princípio, o que me parece que o filme faz é ressaltar a animalidade do homem, mas não encarando-a como um lastro negativo, a ser superado pela cultura, e sim como um patrimônio cuja negação é não apenas impossível como indesejável. A condição animal, tal como mostrada por Mascaro, é sublime. Ela não contradiz a cultura ou a espiritualidade em seu sentido mais amplo, mas a enriquece e matiza. Ao reconhecer e viver sua dimensão animal, o homem não se rebaixa, mas se eleva.
Daí que as imagens mais marcantes desse filme plasticamente robusto como um touro e delicado como um retalho de seda talvez sejam a da masturbação de um cavalo de raça por um homem (para colher seu valioso sêmen), a da dança de uma mulher com cabeça de cavalo e a hipnótica cena de sexo que não vou descrever aqui para não estragar a poesia e a surpresa.
O menino e o lobo
O leitor desta coluna sabe que não costumo dar excessiva importância ao Oscar. Mas merece louvor e comemoração a indicação do desenho animado O menino e o mundo, de Alê Abreu, para o prêmio da categoria. Primeiro, porque o filme é de fato extraordinário, cativante, original, na contramão das tendências predominantes do gênero. Segundo, porque chegou aonde chegou discretamente, sem estardalhaço de mídia e marketing. Um grande feito da animação brasileira e de um de seus maiores artistas.
No mesmo departamento, de “filmes que chegam lá sem alarde”, O lobo atrás da porta, de Fernando Coimbra, é finalista do prestigioso prêmio da Directors Guild of America, na categoria estreante em longa-metragem. Quando foi lançado nos cinemas escrevi sobre ele aqui.
Seria bom que ambos – O menino... e O lobo... – entrassem de novo em cartaz, para atingir, quem sabe, o público que merecem.
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: BLOG DO IMS
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