PICICA: Foi Anibal Beça quem gentilmente me enviou o ensaio abaixo de Astrid Cabral, às vésperas dos oitenta anos do poeta Luiz Bacellar. Ontem, Bacellar foi ao encontro de Anibal, que nos deixou em agosto de 2009. É a terceira vez que reproduzo o texto da poetisa Astrid Cabral. Vale a pena reler, com os votos de que no firmamento da poesia amazonense o brilho da obra de Luiz Bacellar inspire a nova geração de poetas.
Haceldama
Anibal Beça
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Fernando Pessoa
Para o poeta Luiz Bacellar
Quem fez esta cidade fê-la para o sono
Para acordar de novo em rotação de sombras.
Quem fez esta cidade fê-la para o sangue
Para o albergue estrangeiro em sinuoso mangue.
O foco e a luz tateiam pegadas sonâmbulas
Pelos becos, vielas, aspirando espantos.
A vi sentada, um Ógmios, se tanto, três noites
Com Ankou, esperava a carroça de estornos.
De treze em treze dias traziam-lhe a lâmina
Alma de aço templária de fio inoxidável.
Era aí que a colheita renovava o cálcio:
Expostos esqueletos no seu ossuário.
Quem fez esta cidade fê-la em sangue e sono
Fê-la celebração do sacro e do profano.
***
A POESIA DE LUIZ BACELLAR
Astrid Cabral
“Se o Brasil não fosse um arquipélago cultural, todos certamente conheceriam a poesia do amazonense Luis Bacellar.”.
Na época do apogeu da borracha, Manaus ligara-se diretamente à Europa, de onde a elite econômica tudo importava e para onde enviava os filhos a estudar em Coimbra ou no Porto, em Oxford ou Cambridge. Os numerosos imigrantes judeus sefarditas e sírio-libaneses, por sua vez, mantinham contatos com os continentes de origem. Por outro lado, finda a prosperidade implantada pelo ciclo extrativista, os frágeis vínculos do Amazonas com o restante do país, especialmente com o eixo Rio-São Paulo, coração político, econômico e cultural, estavam totalmente atrofiados pela vastidão geográfica e a insuficiência dos meios de transporte. E não só isso, antigas razões de ordem histórica agravavam a situação, pois, durante o período colonial, a região, ao ser administrada diretamente de Lisboa, estava seccionada do consenso colonial do Brasil. Por ocasião da 2ª Guerra mundial, razoável aquecimento do comércio na demanda da borracha, acendeu esperanças de recuperação, mas logo se mostrou incapaz de reinstaurar a riqueza perdida. O Teatro Amazonas, símbolo do extinto esplendor, virara uma espécie de relíquia histórica. Quando abria as portas era para espetáculos de baixa categoria. Nada de relevante parecia acontecer na cidade condenada à mesmice, distante do progresso industrial paulista e do movimento artístico que por aí se instalara, propagando-se pelo Rio e outros pontos do país, a partir de 22.
Em 1952, organizou-se no Colégio Estadual do Amazonas, o tradicional Pedro II, um debate comemorativo dos trinta anos da Semana de Arte Moderna e foi imensa a dificuldade em encontrar três estudantes que se encarregassem de apresentar e defender o Modernismo. A fidelidade ao gosto parnasiano e simbolista era um denominador comum esmagador na sociedade local, até mesmo entre os jovens .
Nessas circunstâncias, o conhecimento do que ocorria na área da literatura brasileira foi se processando não pelos habituais veículos de comunicação. Manaus não dispunha de livrarias, só de pequenas papelarias onde os poucos livros, quase todos didáticos, figuravam como intrusos entre resmas de papel, cadernos, lápis, colas e tinteiros. Jornais e revistas de fora eram raridades que circulavam entre amigos cuidadosos. Encomendas e novidades demoravam a chegar.
Nascido em 1928, Luiz Bacellar cresceu na Manaus da decadência, da vida provinciana acanhada e retrógrada, da falta de perspectivas para a juventude. A inexistência de uma universidade (contava-se apenas com faculdade de agronomia e de direito) levava ao êxodo grande número de jovens cujas vocações não se coadunavam com a oferta restrita e que muitas vezes acabavam se radicando em outras paragens ao concluir a formação profissional. Por sorte, Luis Bacellar, ainda adolescente (dos 11 aos 17 anos) cursou o Colégio São Bento em São Paulo, além de mais tarde permanecer quatro anos no Rio de Janeiro como bolsista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Tais temporadas certamente contribuíram para suprir a falta de contato com a literatura que se produzia nos grandes centros. Outro fator relevante na promoção do necessário intercâmbio com a vida cultural do resto da nação, foram as duas caravanas de jovens escritores amazonenses, viajando ao Sul do país em 1951 e ao Norte e Nordeste em 53.
Valendo-se de todos os tipos de transporte e abertos à aventura e aos conhecimentos, o grupo travou contatos fecundos e decisivos com a juventude de outros estados. As conseqüências não tardaram.
O surgimento do Clube da Madrugada, em 1954, veio coroar as aspirações de integração nacional e consolidar as propostas de modernidade, sacudindo de modo decisivo o marasmo crônico de Manaus. Luiz Bacellar e o grupo de jovens. que se lançara na empresa de descobrir o Brasil (Jorge Tufic, Alencar e Silva, Antísthenes Pinto , Farias de Carvalho, Guimarães de Paula, e outros que depois aderiram), fundaram, com determinação e entusiasmo, o movimento renovador, promovendo uma revolução cultural na cidade até então letárgica, e onde os raros esforços individuais se perdiam sem repercussão. Nas palavras de Jorge Tufic: a tarefa abraçaria algo mais que combater o pieguismo da literatura decadente, o rompimento com o versejar tradicional. Importava sobretudo a desmistificação do homem da região, um contato maior com a realidade da terra. Cabia sim, compensar o atraso de meio século com urgente atualização, estudar com afinco a Semana de 22 e sua proposta de brasilidade.
A designação Clube da Madrugada, sugerida por Luiz Bacellar, foi extremamente provocativa e adequada. A idéia de clube funcionava como alfinetada no formalismo passadista das academias, sugeria descontração, prazer da convivência informal , companheirismo sem hierarquias. Eram jovens tirando, simbolicamente, as gravatas que os sufocavam. Quanto à palavra Madrugada, ao mesmo tempo que remetia às noites boêmias, em que a rapaziada se arrastava dia afora no bate-papo dos bares, sugeria também o raiar de algo novo, o alvorecer de uma postura mais crítica, menos alienada diante da realidade.
Examinando-se a literatura amazonense que antecedeu à geração Madrugada, encontramos nos “Poemas Amazônicos”, de Pereira da Silva, publicado em 1927, e nos “Ritmos de Inquieta Alegria”, de Violeta Branca, de 1935, o rompimento com as formas fixas parnaso/simbolistas . São obras em verso livre e , portanto, modernistas enquanto estrutura formal . Mas o mundo que revelam está carregado da atmosfera pré-modernista. O idealismo exacerbado, a dicção retórica , e a rejeição ao cotidiano são aí características marcantes. Para ilustrar a total distância, entre a linguagem e a atitude poéticas desses antecessores com o que se instaurou a partir do movimento Madrugada, comparemos dois textos onde o tema do amanhecer é tratado por Pereira da Silva e por Luiz Bacellar:
De Pereira da Silva, leio as estrofes finais de “Na hora do milagre do amanhecer:
“Vede, mortais! O sol se desvencilha
Dos ebúrneos coxins do seu leito sidério
E enfim desponta.
Vem percorrer e governar seu grande império.
O suave milagre do amanhecer,
Faz a espécie vibrar. E o homem é o semideus ousado
Que defronta o sol,
Vida-das-vidas, que rebrilha.
Nem um leve tremer
De pálpebras! O gênio está de pé,
E o outro gênio fita!
O homem e o sol… A floresta e o céu… Eis tudo!
Evoé! Evoé!
Esse entreolhar, grandiosamente mudo,
É uma saudação ciclópica de titãs!
O homem e o sol. O gênio e a luz infinita.
- Duas almas irmãs!
Na imponência imortal de um bronze antigo,
O homem vê no sol desperto o fogo amigo,
Em lumaréus, chameando, na grinalda
Dos vastos, lindos e encantados céus.
E sente que é também um nobre Grão-Senhor!
Ah! O milagre da madrugada
Trouxe-lhe a explicação da Beleza e do Amor!” pag. 67
Vejamos a seguir a “Cantiga do Amanhecer”, de Luiz Bacellar:
O ovo do sol
canta nas landes
uma cantiga de gemas
com as claras nuvens
batidas de ventos.
Ovo da nhambu
a casca azul do céu
se abre em passarinhos
que já chilreiam
no choco desse ovo louro.
Pelo pasto verde claro
vai aquele touro novo
em seu cortejo
de borboletas
retouçando o dia
que começou quando o vôo
do ovo se derramou.
Amanhecia. Pag.189
A contigüidade dos poemas serve para ilustrar a imensa distância entre as duas dicções. A de Pereira da Silva é altissonante, grandiloqüente, laudatória . Dirige-se a uma platéia de público afeito à retórica e amante do espetáculo grandioso. Já a dicção de Luiz Bacellar, extremamente concisa, de grande condensação imagética e comedimento emocional, foge à ênfase, visando uma comunicação efetiva, mas despojada de qualquer pompa oratória. Eis a fundamental mudança a raiar com o movimento Madrugada. Os “Poemas Amazônicos”, contemporâneos da fase primitivista do Modernismo, guardam pontos de contato com o Cobra Norato, de Raul Bopp, no agenciamento das lendas exóticas da região, mas se afastam pelo tom solene e rebuscado, de um beletrismo que não passou pela lição oswaldiana. É a visão crítica e o contato profundo com a realidade social imediata que vai marcar o novo grupo Madrugada.
Não entraremos aqui na discussão do que representa a geração de 45 dentro do movimento literário modernista brasileiro.. O que nos interessa, no momento, é reconhecer na geração amazonense do Clube da Madrugada, e especialmente em Luiz Bacellar, vínculos diretos com a geração de 45. Percorrendo a obra dos seus poetas mais representativos, torna-se evidente o extremo apuro formal que os notabilizou , a assiduidade às formas fixas tradicionais, como o soneto, (elaborado tanto em decassílabos como em redondilhas), e o romance, a forma narrativa ibérica, levada à perfeição no Brasil por Cecília Meirelles no Romanceiro da Inconfidência.
A obra de Luiz Bacellar desenvolve-se, pois, a partir desse momento literário. Não se trata de simples acaso os tributos que presta, em seu livro de estréia, a Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, Federico Garcia Lorca, todos denominador comum das preferências dos poetas brasileiros daquela geração. No entanto, ressalte-se também a presença indireta dos autores fundamentais de 22 e 30. Se Mário de Andrade eternizou em “Paulicéia desvairada”, a exuberante metrópole, tumultuada pelo progresso e pelo cosmopolitismo, o amazonense deixou um pungente testemunho da pacata Manaus dos meados do século XX. A série de poemas do Romanceiro Suburbano flagra a decadência da cidade condenada à demolição. Leia-se o painel de abertura da longa Balada da Rua da Conceição, onde se aliam a intensidade dramática e a precisão visual nos detalhes arquitetônicos:
“Vão derrubar vinte casas
na rua da Conceição.
Vão derrubar as mangueiras
e as fachadas de azulejo
da rua da Conceição.
(Onde irão morar os ratos
de ventre gordo e pelado?
E a saparia canora
da rua da Conceição?
Onde irão os jornais velhos?
Onde? E as garrafas quebradas?
Pra onde os cacos de vidro?
Pra onde os cacos de telha?
Pra onde as latas de conserva
vazias e enferrujadas?)
Oh ! Vede as fisionomias
desgostosas e alquebradas
das velhas casas desertas…
Oh! Vede as rugas tristonhas
das janelas dolorosas,
dos batentes desbeiçados,
das velhas portas cambadas
de gonzos desengonçados!
Vede os beirais rebentados!
Vede as calhas entulhadas
pelas folhas fermentadas
e os buracos dos soalhos
e os alpendres corroídos
e as cumeeiras caídas
e as goteiras dos telhados!"
Num dos variados trechos dessa balada, Bacellar nos apresenta uma conversa entre árvores da rua e a fala da “mangueira casimiriana”:
“Ai que saudades que tenho
do tempo em que não sofria
reumatismo nas raízes
e não tinha cicatrizes
pelo meu tronco enrugado…
Nunca mais nos voltarão
caroços de nossos frutos
contra as nossas copas fartas.”
O tom de humor brincalhão, além de lances de ironia, vai despontar em muitas passagens, mostrando-nos que as liberdades, conquistadas pelo modernismo da fase iconoclasta, foram incorporados por nosso autor. Exemplos de sua veia satírica podem ser detectados nos poemas narrativos em que relata casos preservados na memória popular, tais como Chiquinho das Alvarengas (rico e gordo/gordo e rico/Creso de muitas arrobas/achatador de penicos), Beco do “Pau-não-cessa” e no “Romance do esquartejado” , onde Bacellar, irreverente, nos apresenta um “alferes” pelo avesso, tipo malandro que nada tem de mártir / herói da pátria, e não passa de um aventureiro garanhão castigado por marido ciumento..
Também na “Balada do Bairro do Céu”, percebe-se a presença da lição Oswald de Andrade, no uso estilístico de dicção eminentemente popular.
(“Tá havendo porrada grossa/no crube “Todos os Santo”:/Capuêra e anavaiada/rabo de arraia, facada,/ bufete no pé d’uvido./Tá um fuzuê danado,/o Pedo tá de oio inchado/ e o Cristo já foi firido.)
À propósito do domínio expressivo de Bacellar, a capacidade protéica de valer-se de múltiplos registros lingüísticos, vale a pena comentar aqui como o poeta ora elabora a linguagem coloquial, direta, ora dá preferência à outra, culta, cifrada e até hermética. É o que ocorre na composição de cunho erótico “Anacreôntica”, onde, paralelamente ao vocabulário erudito, ele vai soldando termos de diferentes categorias gramaticais, criando insólitos neologismos de grande força expressiva. Se tomarmos o poema “Torneio de papagaios” verificaremos a extrema ousadia com que reúne não apenas termos do mesmo registro, mas torna, democraticamente, simultâneos os registros popular e culto. Ao descrever com invulgar maestria a competição de pipas e pandorgas, o poeta cria , graças a ritmo ágil e tensões vocabulares, um equivalente torneio verbal:
Na liça das nuvens
a justa do azul:
estrelas e arraias
sóis e paparolas
pipas e pandorgas
briais de papel
de seda, paquifes
de tiras de trapo
veros contraveros
palas xaquetados
cruzados em plena
cortados em barra
goles sobre ouro
prata sobre blau
fusetas lisonjas
bandas de asas no ar
dos paveses leves
de seda, de cola
e talo (evoluem
títeres volantes
roncadeiras vibram
trompas e atabales?)
as linhas comandam
ginetes de vento
bridões rabiolas
gualdrapas estolas
barrigueiras tensas
brigantinas brancas
celadas de vidro
lambrequins rabeiam
peitorais rebentam
nas tranças de lanças
e lâminas pandas
das adargas vítreas
de cerol burnido
flechadas colhidas
bruscas descaídas
brandas empinadas
quedas embiocadas
escudos rompidos
dos famões vencidos
desta imponderável
ágil, livre, frágil
heráldica aérea.
A obra de Luiz Bacellar compõe-se dos seguintes títulos:
Frauta de Barro ( 1963)
Quatro Movimentos (1963)
Sol de Feira (1973) Editora Umberto Calderaro, Manaus
O Crisântemo de Cem Pétalas (1985) em co-autoria com Roberto Evangelista; editado pela Prefeitura Municipal de Manaus; republicado só com os poemas de sua autoria, como “As Pétalas do Crisântemo”, integrando a reunião intitulada Quarteto (1998), edição da Editora Valer de Manaus, com apoio da Fundação Biblioteca Nacional.
Satori (1999) Editora Travessia, Manaus
Os dois primeiros livros, premiados pela Academia de Letras em 1959, e publicados quatro anos depois, pela Livraria São José , no Rio de Janeiro, já nos apresentam uma obra madura, rica e diversificada.
Em Frauta de Barro e Quatro Movimentos, o autor assume nominalmente a importância da música na gestação de sua poesia. Já no prólogo do primeiro livro, opta pela simplicidade, quando alude ao fato de ter achado em menino “um frio tubo de argila” e ao se por a soprá-lo “rude e doce melodia” “ jorrou límpida e tranqüila/ como água por um gargalo.” Refere-se também ao tom “faceto e gaiato” e à saudade “dos longes da infância”. A maior parte do livro abarca a Manaus de seus primeiros anos. Comparecem aí também os “Dez Sonetos de bolso”, onde o poeta, cheio de argúcia, simplifica o soneto, reduzindo-o à métrica da redondilha, redimensionando-o, portanto, ao tema: miúdos objetos como lenço, canivete, caixa de fósforo, lápis, chaveiro, etc. Fora alguns poemas ( a exemplo, “Torneio de Papagaios”, “Anacreôntica”, “Estudo de Marinha”, “Os 7 campos do Mito” e “A escada”) Frauta de Barro se mantém dentro da proposta inaugural de simplicidade, contato com a realidade concreta ( o barro da terra), e linguagem quotidiana.
Em “Quatro Movimentos”, no entanto, o clima instaurado é outro. A proposta musical é mais complexa. Nesses 33 sonetos, Bacellar se propõe a realizar uma sinfonia cósmica, destinando 4 sonetos em compasso de allegro, a compor uma carta sazonal , 13 sonetos em andante, a compor uma carta pastoral, 4 sonetos em compasso de adágio para uma carta lunar e finalmente 12 sonetos em largo, por conta de uma carta náutica. Trata-se de elaboração literária em que o autor expõe seu conhecimento e intimidade com a tradição poética de língua portuguesa. Experiências estéticas, decorrentes de leituras literárias e entretecidas com experiências vitais, conduzem o autor pelas veredas do clássico e pelos campos do simbólico. A cosmovisão, que sustenta o conjunto, revela intensa participação no acervo dos mitos e da memória universal. O poeta como que se desprende da paisagem local circundante e se entrega a um mundo interior idealmente imaginado. O que surpreende nesse livro é a originalidade com que Bacellar se move no labirinto das convenções consagradas. Há sempre uma nota pessoal na reelaboração de temas tão comuns como terra, mar, lua e o giro das estações. Se em certos momentos ele se avizinha do território poético descortinado em alguns sonetos de Jorge de Lima, deste se afasta por um grau de menor onirismo e maior transparência. Além de grande apuro formal, decassílabos heróicos estruturando riquíssimas rimas e vocabulário erudito, os sonetos se impõem pela grande força imagética, como se vê, por exemplo, no início da carta lunar: “A lua é um touro oculto atrás das nuvens / deixando ver os áureos cornos fora”
Nos poemas relativos à carta náutica, são magníficas as descrições dos animais marinhos. Aliás, um dos grandes dons de Luiz Bacellar é a capacidade de desenhar, por meio de palavras, seres e objetos. Desde os Sonetos de Bolso, fez-se notar pela intensa visualidade, característica que se evidenciará de maneira extraordinária no terceiro livro: Sol de feira. Segundo depoimento do autor “foi escrito com a intenção de servir de textos para uma Suíte de danças brasileiras, com motivos tirados do folclore alimentar da região amazônica”, o que foi realizado pelo maestro Coelho Maciel.
Nesta obra, de caráter lírico-didático, o autor retoma a tradição de poetas brasileiros da fase colonial, que se compraziam em louvar os frutos da terra, gabando-lhes a superioridade sobre os do reino. Mas se o tema nos remete a Manuel Botelho de Oliveira em À Ilha de Maré, vemos que o tratamento dado por Bacellar difere bastante. Os frutos passam a comparecer com destaque, desmembrados em concisas unidades poéticas cheias de autonomia. Em lugar da forma poética silva, ele utiliza o rondel, personalizando-o, numa estrofe de oito versos em vez de duas quadras, seguida por sextilha em vez de quintilha. Valendo-se desta estrutura, faz o inventário poético de 50 frutos da flora amazônica. Em Sol de feira, Bacellar, emancipado da preocupação ufanista dos antecessores, realmente os ilumina com a observação minuciosa de um botânico e a percepção sensorial de poeta . Em alguns rondéis o sabor regional é sublinhado pelo uso de palavras indígenas. Veja-se o da mandioca, onde ele flagra o processo de transformação da raiz nos subprodutos do molho e da farinha:
“manimani
teu corpo branco
esfarelado
no caititu
chora espremido
no tipiti
lágrimas vivas
de tucupi
depois no tacho
dança lundus
cateretês
todo doirado
dança emboladas
de amido e luz.
À leitura desses poemas somos sempre agradavelmente surpreendidos com a adequação das metáforas que o poeta agencia para nos mostrar os frutos. O rondel do abacaxi nos diz:
“com teu cocar
de verdes plumas
feroz te aprumas
para lutar:
feres a mão
que corta as cruas
douradas puas do teu gibão;
No rondel da banana, lemos:
“onde a banana
doce crisálida
dorme? na verde
rede da casca:
no cacho oclusa
tão mansa e inerme
tão paquiderme
musa reclusa;
Note-se que aqui e ali, surge oblíqua a presença do humano. Ao comparar vegetais com homens, Bacellar desieherarquiza a ordem culturalmente instituída e nobilita a vida natural. O rondel do jambo critica de modo irônico o comportamento humano:
“Jambo tu és
tão rubicundo
qual se corasses
por todo mundo
tanta vergonha
tu tens na cara:
talvez por isso
és fruta rara”
Ao longo da obra, a visão transfiguradora do poeta vai enaltecendo a realidade comezinha com associações inusitadas. Em princípio, Bacellar se deixa levar pelo lado visual, explorando as potencialidades estéticas do material em foco. Já Manuel Bandeira, ao transformar em objetos poéticos a maçã e o cacto, os emprenha de significações que transcendem as aparências, contaminando-os de subjetividade. Convém deixar claro que a atitude do criador de Sol de feira é predominantemente objetiva e direta. Ele não se aproveita das frutas como pretexto para falar de si, nem de outra pessoa. João Cabral, no seupoema “Jogos Frutais”, serve-se das frutas pernambucanas como metáforas e metonímias para, de maneira oblíqua e sui-generis, louvar certa mulher da terra. Bacellar quer apenas, e consegue plenamente, captá-las na específica integridade delas.
Por controlar a subjetividade, fugindo ao confessional e mantendo em regra um distanciamento estratégico, e sobretudo pela onipresente concretude de expressão, Luiz Bacellar tem sido associado a João Cabral de Mello Neto. O crítico amazonense Marcus Frederico Krugger já desenvolveu análise aproximando os dois, apontando o rigor construtivista que estrutura a obra de ambos, e mostrando como a par do alto grau de universalidade que os distingue, permanecem emblemáticos de suas regiões. Cabral, caracterizado pelo elemento pedra, símbolo da secura nordestina e Bacellar, pelo elemento água, símbolo dos rios e da floresta equatorial. De fato, ponderando sobre as considerações de Krugger, verificamos que no poeta amazonense certas características de fluidez sintática, variedades métricas e intensa musicalidade dão à sua expressão perfeita sintonia com a maleável natureza fluvial, isso, é claro, sem comprometer o rigor de sua criação gerada sob signo de lucidez e claridade.
Os dois últimos livros de Luiz Bacellar, O Crisântemo de Cem Pétalas( de 85) e Satori (de 99), se inscrevem dentro da forma oriental dos Haicais. Embora não se possa negar um certo modismo na numerosa produção dessa forma poética no Brasil, seja por conta da globalização, que orientalizou o Ocidente e ocidentalizou o Oriente, ou da contribuição cultural interna dos imigrantes nipônicos, o certo é que, em Luiz Bacellar, ela surge como decorrência natural de sua inclinação para a síntese, espécie de clímax para o persistente exercício de despojamento, e sobretudo, exigência de sua profunda vinculação com o cósmico. Coincidentemente, nosso poeta sempre fugiu ao confessional e o haicai, na teoria e na prática ortodoxa, implica a visão pura do horizonte do mundo, aquela que há quando o “eu” desaparece, totalmente liberto de sofrimentos e dualidades. Além disso, Bacellar iniciou-se na filosofia zen-budista e é poeta comprometido com a essência das coisas.
A prática do haicai em Bacellar tanto exibe o cordão umbilical com Matsuo Bashô, de quem traduz várias composições em gesto de reverência, como se mostra autônoma e inventiva, de olhos voltados para a sedução da natureza, seja universal ou amazônica. No primeiro caso serve de exemplo “A foice da lua/a messe das nuvens/ceifa devagar”. Muitas e luminosas são as captações da paisagem regional, celebrando o tapete róseo do jambeiro, o relâmpago do calango, a sensualidade do jambu, o mureru poranga, as palmeiras ao vento, o mamoeiro, o ninho de japó, que compara a um “Pé de meia só”. Nessa linha de composição destaca-se o haicai nacionalista: “Na laranja e na couve/picada - as cores brasileiras/da feijoada”.
Note-se que em sua produção, nem sempre a natureza é apreendida em estado puro. Há momentos em que o cósmico e o humano implícito se defrontam. “Por-do-sol. / Em resposta o edifício / acende as luzes”. Outro exemplo:“Súbita garoa: floração de sombrinhas / nas alas do parque”. A série “Volta ao mundo em 10 flagrantes”, com alusões a Rossio, Piazza Navona, Torre Eiffel etc, confirma a visceral conexão do autor com o mundo da cultura e com o urbano, traço fundamental desde o livro de estréia. Neste se encontra, vizinho ao prólogo, o poema “O Poeta veste-se”. Tem-se no texto um perfeito equilíbrio entre elementos pertencentes à esfera da natureza e à esfera da cultura, no caso, a ocidental de que também fazemos parte . É admirável a articulação que Bacellar promove entre os dois mundos, inserindo-se entre eles, em plena harmonia. Leio parte da composição:
“Com seu paletó de brumas
e suas calças de pedra,
vai o poeta.
……………………………
a caminhar pelas serras.
(pelos montes friorentos
mal se espreguiça a manhã)
Com seu pull-over cinzento
(feito com lã das colinas)
com seus sapatos de musgo
(camurça verde dos muros)
com seu chapéu de abas largas
(grande cumulus escuro).
Mas algo ainda lhe falta
Para a elegância completa:
Súbito pára, se curva,
Num gesto sóbrio e perfeito,
Um breve floco de nuvens
Colhe e prende na lapela.
Se, no cômputo geral, a poesia de Bacellar trava um constante diálogo com o mundo da realidade física palpável, o poeta sempre seduzido pela fruição dos sentidos, nem por isso exclui momentos de grande inquietação espiritual:
“Anjo decaído, irresoluto, ansioso
oscilo entre o Criador e o Rebelado
tão fluido coração me deu o Fado
que nem n’água, ar ou fogo dou repouso.”
Há também composições em que o poeta envereda pelo território do sonho e pela invenção do mito, liberto de qualquer tradição, entregue de corpo e alma à fantasia.
A poesia, todos sabemos, é fenômeno irredutível a explicações de ordem racional, a despeito das análises interpretativas e iluminadoras dos grandes críticos.
Espero que os versos citados sirvam de isca à leitura profunda e prazerosa dos leitores, dispostos a conhecê-lo melhor.
Astrid Cabral
***
Frauta de barroEd.Valer, Manaus, 2004)
Soneto do cigarro
Pequena múmia de fumo
na sua branca mortalha,
simbolizando o resumo
dessa obscura batalha
que sofre a folha macia
do tabaco que se faz
fumaça e assim concilia
os pensamentos de paz...
E quanta coisa nos conta,
ao cabalístico jogo
dos gestos de nossa mão,
sua ruiva estrela tonta,
em hieroglifos de fogo
no meio da escuridão...
Ciranda à roda de um tronco
Mangueira de minha rua
Do velho tronco enrugado
Que serve de alcoviteira
Ao casal de namorados.
O vento mexericando
Com tuas folhas assanhadas
Te arrepia as verdes franjas
Em murmúrios assustados.
As formas dos papagaios
Te pendem das galharias
Como brancos esqueletos
De duendes enforcados.
Te escorre o luar das folhas
Com seu brilho niquelado
Como um colar de rainha
Sobre um dossel desfiado.
Mangueira de minha rua
Vivo cheio de cuidados
Pela ingrata que tortura
Meu coração macerado.
E hei de quebranto e saudade
Morrer contigo abraçado.
***
SatoriEd.Travessia, Manaus, 2002)
Por Tenório Telles
Três séculos se passaram desde a partida de Bashô, e o desafio do reencontro e conciliação do ser humano com sua essência e o eterno persistem. Luiz Bacellar faz parte dessa linhagem de poetas comprometidos com a revelação dos mistérios do mundo, com a essencialidade das coisas e dos seres. Tendo na musicalidade uma de suas marcas definidoras, sua poesia é prenhe de imagens, de ressonâncias filosóficas e espirituais. A acuidade no tratamento dos temas e apuro da linguagem são expressivos da excelência do seu fazer poético.
Iniciado na sabedoria zen-budista e profundo conhecedor da poesia japonesa, Bacellar é um mestre na arte do haiku. É um dos principais divulgadores dessa forma poética entre nós. Satori é um livro surpreendente pela riqueza temática e beleza plástica dos haicais. Fiel à tradição japonesa, seus poemas evidenciam sua “fé no verbo limpo”, como observou o saudoso crítico Antônio Paulo Graça. Sensível aos acontecimentos mais simples, o poeta evoca em seus versos os sentidos e sinais contidos nas pequenas coisas _ metafóricos da vida: No centro da grama /seca da campinha / o girassol resiste.
Tenório Telles
Professor de literatura brasileira e ensaísta)
Um tronco queimado
cercado de grama:
negro iceberg!
Num canto sombrio
- a humilde violeta
esconde o perfume.
A aranha rendeira
de um ponto a outro ponto
retecendo o orvalho.
Floresce o jambeiro:
há um tapete róseo
no chão de janeiro.
Um ponto de luz
no escuro.Um fumante
ou um vaga-lume?
Formigas na porta
Carregam o corpo
Da cigarra morta
(La Fontaine)
Não me importa a lua
não me importa o vento,
fecho a minha porta
Chaleira na trempe,
Mugido de gado,
Campo sossegado.
(Pastoral)
Chuva de janeiro:
o barco de papel
naufraga no bueiro.
Entre a minha e a tua
janela florescem
tuas samambaias
Um cheiro de peixe
podre e fruta estragada
Vento do mercado.
Um barulho mole
depois esse cheiro...
Caiu um jaca!
Um novelo
desmancha outro novelo.
Um gatinho.
***
Sal de feira
Ed. Valer, Manaus, 2005 – 6ª edição
Por Ernesto Renan Freitas Pinto
Este é, seguramente, um dos livros mais insólitos da atual literatura poética brasileira. Trata-se de um trabalho poético didático de um dos raros poetas do Norte, que retoma uma temática característica de certa poesia que se praticou largamente no Brasil Colônia entre 1650 e 1750. O nosso Luiz Bacellar vem cultivando este livro como um pomar real e nesse paciente labor nos ensina a admirar e saborear a rica coleção dos frutos da terra.
(...) Após quase três séculos, um poeta do Amazonas se empenha no cultivo de um pomar em parte já desvendado, mas que em algum lugar guarda surpresa de frutos nunca antes cantados.
Pessoalmente, vejo neste livro um grande benefício a um gosto quase perdido, ao nostálgico saborear dos frutos que vão desaparecendo um a um.
Tecnicamente, e também de certa forma em seu tema, o livro poderia ser equiparado aos pomulários góticos da França. E o rondel se elege como forma poética capaz de satisfazer o espírito requintado, o verso ágil e preciso do autor. O rondel é uma forma lúdica por excelência. Mozart inclui rondós em muitas de suas sinfonias e concertos, sobretudo nos últimos movimentos, exatamente quando queria brincar (pelo menos é essa a primeira idéia que temos) com algum tema predileto. Desses rondéis do Sol de feira resulta harmoniosa e terna sinfonia dos frutos da Amazônia.
Ernesto Renan Freitas Pinto
(Doutor em Sociologia e professor da Universidade Federal do Amazonas)
Rondel da graviola
graviola, posto
que viola grave,
de aroma e gosto
de arpejo suave;
em vindo agosto
que a chuva lave
teu verde rosto
pra bicos de ave;
pevides breves
na polpa, neves
de arminhos reais,
são semibreves
desses teus leves
sons palatais
Rondel do cupuaçu
cupuaçu
és soberano
do pomulário
americano
num cofre pardo
guardas com ciúmes
raros sabores
vivos perfumes
urna selvagem,
ubre silvestre,
moreno seio,
tanta delícia
tua curva crosta
retém no meio
Rondel do figo
a que mistérios
tu, figo, aludes?
teus hemisférios
dois alaúdes –
música e formas
plástica e cor
em que transformas
o teu sabor:
teu mel que abelhas
vão coletar
(ruivas centelhas
bailando no ar)
é grato acorde
a quem te morde
Rondel da jaca
jaca: entre as frutas
eis a matrona,
esparramada
gorda sultana;
com frouxos bagos
flácido aroma
dá visgo aos lábios
de quem a coma
seu jeito lembra
as contorções
moles, lascivas
dos ventres nus
das odaliscas
no harém cativas
Rondel do maracujá
ao te chamarmos
flor da paixão
teus frágeis ramos
deitas ao chão
por te vergarem
pesos sagrados:
Cruz, Lança, Espinhos,
Cravos e Dados
e porque a Hora
da Remissão
não passará
és passiflora
flor da paixão
maracujá
Rondel do abacaxi
com teu cocar
de verdes plumas
feroz te aprumas
para lutar:
feres a mão
que corta as cruas
douradas puas
do teu gibão;
abacaxi,
topázio agreste,
cristal-farol:
cada rodela
da tua polpa
revela o sol
Rondel da manga
manga olorosa
e aurirrosada
chamam-te rosa
chamam-te espada,
espada e rosa
tens com razão
forma amorosa
de coração;
com a fronde esparzes
sombra e raízes
pelas estradas
no tronco trazes
mil cicatrizes
desesperadas
Rondel da pitanga
gracioso arbusto
de folhas breves
todo adornado
de frutos leves
como as caboclas
do meu torrão
e as notas loucas
do meu violão
rubras miçangas
rubis talhados
de viva cor
sois vós pitangas
cristalizados
beijos de amor
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