PICICA: "Para afirmar em extrema síntese: não parece haver hoje na
Europa uma “constituição” disponível a receber – sequer de modo
contraditório – as instâncias propostas pelos movimentos de
“insurreição” (utilizando, por óbvio, o termo no significado que lhe
atribui Balibar). Estamos, na verdade, na presença de uma transformação
profunda da própria institucionalidade européia (mais ainda da alquimia
geográfica do processo de integração) que a faz impermeável a qualquer
projeto de “democratização da democracia” e funcional exclusivamente à
saída “neoliberal” da crise que, na sua aparente impossibilidade, já tem
hoje um impacto devastador (mesmo que evidentemente diferenciado) sobre
as sociedades europeias."
Uma democracia à procura de radicalidade
26/09/2012
Por Sandro Mezzadra
1. Intervindo no debate aberto neste
verão por Jürgen Habermas, sobre a crise européia (“Il Manifesto”, 20
de setembro), Étienne Balibar repetiu uma tese formulada já há alguns
anos: a ideia de que a Europa política é necessária, mas que, ao mesmo
tempo – para ser “legítima e, então, possível” – esta deveria realizar
um “superávit” de democracia com relação aos Estados-nação que a
compõem.
O ponto é, todavia, que este “superávit” de
democracia não parece mais pensável nos termos de uma continuidade
linear com os processos de “democratização” que tem caracterizado a
história do Estado-nação na Europa: aqueles que, não obstante
contraditórios (e com a interrupção do Fascismo), determinaram, a partir
do Oitocentos, uma progressiva extensão do sufrágio e um enriquecimento
“intensivo” dos direitos de cidadania, culminando na construção do
Estado Social democrático.
Balibar reconhece o fato, e introduz – como para
testar sua própria produtividade – uma série de categorias que,
internamente aos debates críticos, são empregados para “reagir” a esta
solução de continuidade, o que torna difícil a seu ver o conceito de
Habermas de “constitucionalismo normativo”: democracia participativa,
governance, democracia conflitual, construção do comum,
contra-democracia. Trata-se de hipóteses teóricas não necessariamente
compatíveis umas com as outras: mas Balibar, longe de propor uma síntese
delas, parece interessado – coerentemente com seu estilo de pensamento –
a colocá-las em tensão, com o objetivo de produzir um campo teórico e
político pelo qual seja possível avançar na busca de uma saída para
frente e pela esquerda, da crise européia.
2. A recente publicação de um livro do próprio Balibar (Cittadinanza,
traduzione di Fabrizio Grillenzoni, Bollati Boringhieri, 178 pgs.)
permite-nos melhor compreender o amplo horizonte de seu discurso. Desde o
início dos anos 1990, Balibar tem sido um dos protagonistas de uma nova
temporada de estudos sobre o tema da cidadania, que parecia a muitos
oferecer, após o fim do socialismo real, uma linguagem adequada de
requalificação de uma teoria política (mais ou menos radical)
democrática. A crítica feminista, e aquela que trabalhou em torno da
questão da “raça”, tinham descartado a teoria abstrata do cidadão, já
colocada duramente em discussão pela crítica marxista; mas também tinham
inaugurado um novo modo de encarar a cidadania, considerando-a em
primeiro lugar – para dizer brevemente – não mais como um status, mas como um espaço de conflito e de “movimento”. Além disso, os próprios movimentos sociais, (os do sans papiers
de 1996, por exemplo, mas também os movimentos nos quais a figura do
imigrante não era central), falavam cada vez mais a linguagem dos
direitos e da cidadania, ao mesmo tempo em que a instituição da
cidadania européia parecia colocar em discussão o nexo entre cidadania e
nação.
Sob o conjunto destes temas, a reflexão de Balibar
tornou-se uma referência essencial, capaz de conjugar empenho militante e
rigor teórico, denúncia dos riscos que emergiam no interior da própria
configuração “pós-nacional” da cidadania européia e escolha de campo, ao
mesmo tempo, clara contra todas as formas de retomada neo-nacionalista,
e a favor da Europa política. O respiro de um amplo histórico da
filosofia, por outro lado, lhe tem permitido definir uma visão original
de conceitos políticos fundamentais da modernidade, a partir de uma
reconstrução genealógica das figuras assumidas pela subjetividade
(conferir o recente Citoyen Sujet, et autres essais d’anthropologie philosophique, P.U.F.,
2011). Desde as primeiras páginas deste novo livro, o conceito de
cidadania é indagado em sua relação que originariamente (na tradição
filosófico-política européia) o relaciona com o conceito de democracia.
Não no sentido de que entre os dois conceitos haja coincidência: ao
contrário, segundo Balibar, a democracia constitui o centro em torno do
qual gravita a filosofia política desde a antiguidade clássica, uma vez
que “é a democracia que torna a instituição da cidadania problemática”.
No interior de um diálogo travado com alguns dos protagonistas do
debate contemporâneo (para dar alguns exemplos: Chantal Mouffe, Jacques
Rancière, Toni Negri e Wendy Brown), Balibar encontra nesta relação
entre cidadania e democracia, no potencial caráter absoluto da segunda
que intervém e faz explodir todo o aspecto fechado da primeira, o
“motor” das transformações políticas. Uma original interpretação do
termo grego politeía (traduzido como res publica pelos latinos e depois como polity e commonwealth,
pelos ingleses) o permite individuar o espaço – a “constituição da
cidadania” – no qual são assentadas as relações entre os termos que
Balibar definiu em Le frontiere della cittadinanza (Manifestolibri, 1993), os dois pólos da política moderna: a “constituição” e a “insurreição”.
Assim, delineia-se um ponto de vista metodológico que
orienta a reconstrução das tramas conceituais e das reviravoltas
históricas que marcam o percurso da cidadania moderna. Grandes temas, de relevo de todo diverso de “antiquário”,
são assim investidos e felizmente renovados. Escolho apenas dois desses
temas: a autonomia do político vem reconduzida por Balibar a um
processo de secularização, a uma crítica de todo o tipo de fundação
transcendente, que a reenvia a
“plano de imanência”; ao mesmo tempo, a análise crítica da globalização
contemporânea mostra tanto a impossibilidade de um “fechamento
autárquico” em torno de uma “comunidade”, organizada na forma de um
Estado nacional, como também a de um uma separação entre política e
“condições materiais da vida”. As “Declarações de Direitos”, que tem
tido um papel muito importante na história moderna da cidadania,
apresentam-se de um modo diferente aos olhos de Balibar: não como
simples “limites” às ações dos poderes, mas como documentos nos quais se
inscreveu o conjunto das conquistas possíveis das ações coletivas e de
uma história de luta, e, ao mesmo tempo, como “ponto de apoio para novas
invenções”. Relida em chave “constituinte”, e, portanto, relacionada
certamente ao pólo insurrecional da política moderna, a figura
arendtiana do “direito de ter direitos” se encarrega de manter aberto
este espaço de “invenção democrática” (Claude Lefort): não só sob o lado
da “exclusão” da cidadania, mas também no interior do conflito que
surge da “violência da inclusão” (e a crítica de uma oposição dura entre
exclusão e inclusão é, certamente, um dos aspectos mais preciosos deste
livro).
A hipótese de uma “cidadania conflitual” que parece,
assim, emergir, já estava sendo utilizada por Balibar, a partir de uma
referência maquiaveliana, para definir a figura da cidadania dentro do
sistema do welfare, a partir da qual se define o
“Estado-nacional-social”. Com efeito, aqui, sob o impulso incessante das
lutas operárias, era permitido encontrar expressões em um molde
“dialético”, em direitos específicos e mecanismos institucionais, i.e, a
mediação entre “constituição” e “insurreição”. E, no contexto, daquela
experiência histórica podiam parecer convincentes algumas reconstruções
da história da cidadania (como aquela do sociólogo inglês T.H. Marshall
em Cittadinanza e classe sociale, Laterza, 2002) nos termos de
um movimento contínuo e progressivo de democratização. O fato é,
todavia, que esta história está interrompida. Balibar sabe disso, tanto
que escreve no primeiro capítulo do livro que o “próprio poder” da
categoria de cidadania, “isto é, a capacidade de reinventar-se
historicamente, de repente, parece aniquilado”. A análise do
neoliberalismo, conduzida à luz do conceito de “de-democratização” e com
atenção especial à crise da representação, traz abundantes argumentos
que justificam este acontecimento, aqui apresentado em termos mais
acurados que em outros lugares. Assim, fica para o leitor a impressão de
um hiato, de um salto, quando, nas páginas conclusivas, Balibar volta a
refletir, com sua sólida maestria, sobre o projeto de “democratizar a
democracia”, a partir de uma dimensão de “cidadania reflexiva”, capaz de
voltar “aos princípios” – ou bem, à raiz conflitual de sua própria
estória.
3. É, no fundo, uma impressão não
diferente daquela suscitada pela intervenção em resposta a Habermas,
aquela que utilizei como ponto de partida. “Precisaremos”, escreve
Balibar no fim do artigo, que, sobre as questões colocadas pela crise
européia, “tome frente algo como uma oposição ou um movimento social”.
Atinge-nos, com efeito, a timidez, o caráter quase incidental, desta
observação, que, me parece, toca o ponto central da crise em ato (e não
esqueçamos que, nestes anos de crise, as mobilizações e lutas na Europa,
como recordou, por exemplo, Mary Kaldor, no “Manifesto” de domingo, tem
estabelecido com a dimensão européia uma relação ao menos
problemática). Para afirmar em extrema síntese: não parece haver hoje na
Europa uma “constituição” disponível a receber – sequer de modo
contraditório – as instâncias propostas pelos movimentos de
“insurreição” (utilizando, por óbvio, o termo no significado que lhe
atribui Balibar). Estamos, na verdade, na presença de uma transformação
profunda da própria institucionalidade européia (mais ainda da alquimia
geográfica do processo de integração) que a faz impermeável a qualquer
projeto de “democratização da democracia” e funcional exclusivamente à
saída “neoliberal” da crise que, na sua aparente impossibilidade, já tem
hoje um impacto devastador (mesmo que evidentemente diferenciado) sobre
as sociedades europeias. E, no entanto, o problema colocado por Balibar
permanece: a retomada da dimensão nacional não pode ser outra coisa que
desastrosa, a Europa política é necessária, uma nova hipótese
constituinte é mais necessária que nunca. A busca deve partir daqui, da
reflexão sobre sujeitos que são materialmente capazes de sustentar essa
hipótese e da individualização de uma tática que seja capaz de,
finalmente, colocar na ordem do dia a construção de uma força e de um
programa que conquiste, para a Europa, uma política, para dizer com
Balibar, de liberdade e igualdade.
—————————
1 Tradução de Alexandre F. Mendes, com revisão de Talita Tibola,
originalmente publicado no jornal italiano “Il Manifesto” (25 de
setembro de 2012). Republicado no site da Universidade Nômade (Itália): http://uninomade.org/una-democrazia-in-cerca-di-radicalita/ Acesso em 28 de setembro de 2012.
2 Sandro Mezzadra é professor de ciências políticas na Universidade de Bolonha, Itália, autor de, entre outros, La costituzione del sociale. Il pensiero politico e giuridico di Hugo Preuss (1999), Diritto di fuga. Migrazioni, cittadinanza, globalizzazione (2006) e La condizione postcoloniale. Storia e politica nel presente globale (2008), todos sem tradução para o português.
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