PICICA: "O megaevento agudiza e aprofunda essa
ideia de cidade de exceção: as regras todas vão para o espaço. A
legislação de exceção produzida para acolher esses eventos é o exemplo
mais puro do que estou falando. Por exemplo, todas as empresas
associadas ao COI e à Fifa não pagam impostos. A lei de responsabilidade
fiscal, que estabelece um limite de endividamento, é flexibilizada para
obras associadas a megaeventos. Por que um município pode se endividar
para fazer um estádio e não pode para fazer saneamento básico? A Fifa
agora quer proibir a comercialização de qualquer produto que não seja de
seus associados em um raio de 2 quilômetros dos eventos e das áreas de
interesse dos jogos. E também viola direitos humanos consagrados em
nossa Constituição, como o direito à moradia. Em nome desses projetos,
atualmente se procede a uma limpeza social e étnica, expulsando
populações; 170 mil pessoas serão removidas em nosso país."
COPA 2014 |
Estamos sofrendo uma manipulação brutal |
Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, denuncia a manipulação do amor dos brasileiros por sua cidade e pelo futebol como forma de conquistar apoio para a realização da Copa do Mundo. Ele alerta: é um grande negócio para as grandes empresas, não vão sobrar migalhas
por Luís Brasilino
DIPLOMATIQUE – No estudo “Cidades de exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro”, o senhor afirma que os megaeventos realizam de maneira plena e intensa a cidade de exceção. O que isso significa na prática?
CARLOS VAINER – São processos resultantes de uma maneira de pensar a cidade que se fortaleceu com a ofensiva neoliberal. Esta pensa a intervenção do Estado na economia e na vida social como essencialmente perversa, já que o mercado seria a forma mais adequada de alocar recursos da sociedade. Na cidade, isso se materializa em uma crítica feroz a todas as formas de organização que caracterizaram o planejamento urbano desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que tinham como elemento principal um plano de ocupação do solo que leva em conta a cidade como um todo, buscando racionalizar o crescimento e a evolução da cidade e organizar a ocupação do espaço. Esse planejamento centralizado, muitas vezes tecnocrático e autoritário, foi objeto de duas críticas. A primeira, de movimentos populares, reivindica descentralização, com participação expressiva da sociedade civil no planejamento da cidade. A outra crítica identifica a intervenção do Estado como um obstáculo ao livre desenvolvimento urbano. Assim, o planejamento centralista, tecnocrático e autoritário que existia durante a ditadura militar recebe, nos anos 1980 e 1990, um ataque pela esquerda e outro pela direita. E, apesar da Constituição de 1988 estabelecer que todas as cidades com mais de 20 mil habitantes devem ter um plano diretor, ao longo da década seguinte a correlação de forças vai caminhar em direção ao projeto neoliberal. Este vai atacar de maneira brutal todas as formas de regulamentação. Mesmo com a aprovação do Estatuto das Cidades, o que avança é a concepção da cidade pensada como empresa, que compete com outras “empresas” em um mercado mundial de cidades para atrair capitais, investimentos, turistas. Isso promove uma guerra aberta de cidades contra cidades, cada uma oferecendo vantagens mais absurdas que a outra para atrair capitais.
Se a cidade é pensada no modelo de empresa, ela deve ser dirigida como tal, não pode ficar submetida a regras rígidas, tem de ser flexível e capaz de aproveitar as janelas de oportunidade que o mercado mundial oferece. Na legislação brasileira, essa flexibilização toma a forma da “operação urbana”, que autoriza o governo local a desrespeitar as leis sempre que houver uma negociação caso a caso. Isso passa a dominar o planejamento de algumas cidades, excluindo a ideia de um planejamento compreensivo, ainda mais o planejamento democrático-participativo. Em uma empresa, não dá para fazer democracia, tem de fazer negócio. E como o negócio é feito? Caso a caso. Com as parcerias público-privadas, uma negociação caso a caso entre poder local e as empresas privadas, a cidade inteira torna-se objeto de negociação, como acontece no Rio de Janeiro. Essa cidade em que a negociação ad hoc impõe-se sobre a regra geral é uma cidade cada vez mais regida pela exceção.
DIPLOMATIQUE – E como a Copa do Mundo atua nesse contexto?
CARLOS VAINER– O megaevento agudiza e aprofunda essa ideia de cidade de exceção: as regras todas vão para o espaço. A legislação de exceção produzida para acolher esses eventos é o exemplo mais puro do que estou falando. Por exemplo, todas as empresas associadas ao COI e à Fifa não pagam impostos. A lei de responsabilidade fiscal, que estabelece um limite de endividamento, é flexibilizada para obras associadas a megaeventos. Por que um município pode se endividar para fazer um estádio e não pode para fazer saneamento básico? A Fifa agora quer proibir a comercialização de qualquer produto que não seja de seus associados em um raio de 2 quilômetros dos eventos e das áreas de interesse dos jogos. E também viola direitos humanos consagrados em nossa Constituição, como o direito à moradia. Em nome desses projetos, atualmente se procede a uma limpeza social e étnica, expulsando populações; 170 mil pessoas serão removidas em nosso país.
DIPLOMATIQUE – Essa cidade de exceção tem um corte de classe, ou seja, quem perde e quem ganha com esse modelo?
CARLOS VAINER– A cidade de exceção é uma face da moeda. A outra é o que chamo de democracia direta do capital, com a cidade segmentada em projetos singulares, cada um deles sendo objeto de uma negociação particular, que denominam publicamente de parceria público-privada. A área portuária do Rio de Janeiro é um caso insuperável. Nela, 5 milhões de metros quadrados, praticamente no centro do Rio, foram entregues a uma operação urbana; um consórcio empresarial, que evidentemente não foi eleito para isso, que vai ter poder de governo sobre uma parte vital da cidade. E com financiamento público. É um deslocamento brutal de recursos públicos não apenas financeiros, mas fundiários, de potencial construtivo, paisagístico. Em Curitiba, o Atlético Paranaense vai construir o estádio da Copa, só que a prefeitura ampliou o índice de ocupação nessa área, de maneira que, em potencial construtivo, transferiu para o clube o equivalente ao que ele vai gastar no estádio. Alguns projetos só podem ser explicados por uma vontade antipopular profunda. A Vila Autódromo no Rio de Janeiro está sendo deslocada apenas porque o pobre é considerado um vizinho indesejável; não há nenhum projeto que ocupe aquela área. Em Pequim, essa limpeza social teve efeitos dramáticos: mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas. Na África do Sul, foram realizadas operações nas áreas próximas aos estádios para impedir que os pobres “poluíssem” o caminho.
Voltando ao termo, não é que vai se seguir a legislação vigente sobre a ocupação e o uso dos espaços públicos. Não. É feita uma legislação de exceção. A Lei Geral da Copa estabelece uma pena específica para o uso indevido do logo da Fifa. Se você usa indevidamente uma marca comercial, você estava passível de sofrer as penalidades da lei. Mas aqui não; existe uma tipificação criminal de exceção. Foi criada uma secretaria especial de segurança dos grandes eventos no âmbito do Ministério da Justiça. Estamos criando novos órgãos no Estado. Tribunais especiais de exceção.
A soberania de espaços públicos é entregue a uma entidade privada estrangeira. Quer dizer, quem determina quem entra em espaços públicos e quanto se paga vão ser eles. Sabemos que querem eliminar o direito à meia-entrada. No Pan do Rio em 2007, um contrato com uma empresa de fast food proibia a entrada de qualquer alimento nos estádios. O sanduíche da sua namorada ou da sua avó não poderia adentrar no Engenhão porque você estava obrigado a comer o “saudável” hambúrguer da tal rede. Para ver se não portavam comida, as pessoas eram revistadas na entrada do estádio. Não podia entrar com água. Veja bem, regime de exceção é um termo delicado para isso.
DIPLOMATIQUE – E os estádios, o senhor acredita que eles poderão levar desenvolvimento ao menos para as regiões onde serão instalados?
CARLOS VAINER– Falemos de experiências concretas. Em Pequim, os grandes equipamentos estão vazios. Na África do Sul, já discutem a demolição de alguns estádios. O Parque Aquático Maria Lenck, feito para o Pan, não serve para as Olimpíadas. Em Brasília, eles pretendiam fazer um estádio de 70 mil lugares para poder competir com São Paulo pela abertura – agora sabemos que São Paulo foi escolhida, mas, de qualquer maneira, um estádio da Copa tem de ter 40 mil lugares. Vocêsabe qual é o público médio de Brasília? Duas a três mil pessoas. Em São Paulo, o Morumbi estava lá. Mas foi necessário vetar o estádio para poder fazer uma grande obra que, se não passar de R$ 1 bilhão, já estamos no lucro. Manaus não tem time na primeira divisão. Natal, Cuiabá e Brasília também.
DIPLOMATIQUE – Por que a iniciativa privada não coloca dinheiro nesses projetos?
CARLOS VAINER– Para cada prefeitura, o BNDES deu uma bolsa-estádio de R$ 400 milhões. Por que é que eu vou fazer um estádio de 250 se posso começar com 400? Por que botar meu dinheiro se tem o BNDES me dando a juros subsidiados? De repente eu vou fazer um hotel. Mas o BNDES também financia hotéis, tem uma linha de financiamento para empreendimentos e eventos sociais variados. E vou ter isenção de IPTU. E não tocamos em um ponto gravíssimo, que são as condições de trabalho nas obras associadas a esses eventos. Apesar das afirmações de que os prazos estão sendo respeitados, ninguém duvida de que eles estão atrasadíssimos. E as obras de mobilidade também não vão ficar prontas a tempo. Evidentemente, nada está sendo feito. Quando chegar 2012, 2013, vão começar a acelerar esse processo. Isso tem duas dimensões: uma, mais dinheiro; dois, as condições de trabalho vão se degradar, os acidentes de trabalho vão se multiplicar, a jornada vai ser estendida... É a crônica da violação aos direitos trabalhistas anunciada. (Ver mais na pág. 8)
DIPLOMATIQUE – Um dos argumentos mais utilizados pelos promotores da Copa são as estimativas dos recursos que serão gerados pelo evento. Em geral, as projeções ultrapassam R$ 100 bilhões...
CARLOS VAINER– Realmente é um belo negócio, não há dúvida. Copa do Mundo não tem a ver com esporte, mas com negócio. A questão é saber quem se beneficia. Vou dar pequenos exemplos de diferentes maneiras de abordar a aplicação de recursos. São recursos, quase todos públicos, que estão gerando empregos. Mas esses postos de trabalho seriam gerados se os recursos estivessem sendo aplicados na construção de hospitais, de escolas, em saneamento básico, transporte público de massa. Existe uma coisa em economia que se chama custo e oportunidade. É o custo e benefício comparado com outros investimentos que você poderia fazer com esse mesmo recurso. Por exemplo, investi R$ 1 bilhão no Maracanã. Isso gerou 1.500 empregos durante um ano e meio. Mas esse mesmo R$ 1 bilhão gasto em habitação popular, saneamento básico, postos de saúde, escolas e outras necessidades sociais também geraria 1.500 empregos, só que teria um efeito diferente porque o produto desse investimento em si já seria um ganho social.
O segundo ponto é a forma de distribuição dos recursos públicos. Por exemplo, a recepção de turistas pode ser feita por grandes cadeias ou pode ser disseminada. Ao chegar hoje a Copenhague, na estação de trem, você vai ao serviço de recepção de turistas e vão lhe perguntar: o senhor quer ficar em um hotel ou em uma casa de família? Em que bairro? A prefeitura cadastra famílias que têm um quarto, inspeciona, e elas recebem turistas. Por que isso acontece? Porque, assim, a riqueza gerada é distribuída de maneira mais ampla.
Com a alimentação é a mesma coisa. Se a concedo a exclusividade da comercialização para uma única empresa, estou concentrando as vantagens advindas daquele evento. É o que ocorre quando proíbo os ambulantes de vender sanduíches. É a lógica do grande negócio para as grandes empresas. Se vai acontecer um show de música no Ibirapuera, seu entorno vai encher de gente que vai vender cerveja, sanduíche etc. Às vezes são trabalhadores desempregados, às vezes são empregados que vão fazer um bico. [Na Copa] Não vai ter isso! A repressão ao vendedor informal, ao trabalhador honesto que está na rua tentando sobreviver, vai ser brutal. É fundamental esclarecer isso porque há uma ilusão enorme, uma expectativa, porque as pessoas estão acostumadas com um certo laxismo no Brasil. Quando há um grande fluxo de recursos em uma direção, desse duto pinga alguma coisa para os de baixo, em um fenômeno que os economistas chamam de efeito de gotejamento. As migalhas do banquete que caem da mesa. [Na Copa] Não vai cair migalha. Eles são de um apetite interminável. As experiências internacionais já mostraram isso. Os vendedores ambulantes das cidades sul-africanas foram expulsos para 50 quilômetros das cidades. O espaço público é entregue às grandes corporações, e os pobres não são removidos apenas em termos habitacionais, mas em termos paisagísticos. Eles são cada vez mais vistos como uma classe perigosa que deve ser mantida a distância.
DIPLOMATIQUE – O senhor desenha um quadro muito grave. O governo tem possibilidades de atenuar essa situação?
CARLOS VAINER– Há algumas sinalizações positivas, mas o essencial do aparelho de Estado brasileiro em nível federal, estadual e municipal está comprometido com os grandes empreendimentos. Foi gerada toda uma legislação de exceção que viabiliza esses eventos, disponibilizam-se recursos públicos de maneira geral e há ainda uma ausência total de informação. O Estado não informa sobre as escolhas. A legislação brasileira estabelece que obra de impacto urbano tem de ser discutida com a sociedade. Quando é que a sociedade discutiu a mudança do plano metroviário do Rio de Janeiro? Há uma falta de informação total. Não se sabe quanto vai gastar, não se sabe quanto da população será removida.
É o seguinte. Eu amo minha cidade, você ama a sua. E gostamos que as pessoas venham visitá-la. Quando recebe um amigo de fora, você mostra o que São Paulo tem de melhor. Faço a mesma coisa no Rio; não vou levá-lo para ver a miséria. Isso é normal nas pessoas. Além disso, nós gostamos de esportes, adoramos futebol, sou Fluminense. Pergunto: você gostaria de ter uma Copa do Mundo em sua cidade? Claro, vai vir um monte de gente, vai ser uma festa, vamos ter jogos de futebol... Esses sentimentos todos estão sendo manipulados. As pessoas não sabem qual é o custo que isso vai ter. Elas não vão conseguir comprar ingresso. O Maracanã, que já foi um estádio para 170 mil pessoas, está resumido a 80 mil. O preço vai impedir o torcedor que mora na zona leste de São Paulo de pegar uma passagem e entrar no estádio. E, provavelmente, ele não vai conseguir nem beber a cervejinha dele porque a festa não é para ele. Só que a gente não sabe disso, não temos essa experiência. Diante da total falta de informação, acreditamos que vamos poder vender mais, ganhar mais, que vamos ver jogo de futebol. Não vamos. É a manipulação de um sentimento legítimo que nós temos. Ontem fui dormir tarde porque estava vendo a seleção brasileira feminina de vôlei jogar. Eu gosto, fiquei emocionado quando tocou o hino porque elas ganharam a medalha de ouro. Vai fazer o que comigo? Vai dizer que eu sou idiota? Faz parte de nossa formação. E isso é manipulado de forma brutal. Há muita dificuldade em desfazer esse sonho, o que só vai acontecer quando as pessoas não puderem chegar a 5 quilômetros do Itaquerão, quando descobrirem que o preço é inalcançável e que 80% das entradas foram vendidas na Europa. E elas não vão poder tomar a cervejinha delas porque está proibido, só pode beber Budweiser. Não vai poder comer o sanduíche da vovó, vai ter de comer fast food.
DIPLOMATIQUE – E o senhor identifica uma resistência na sociedade civil?
CARLOS VAINER– Ela acontece. Já temos comitês populares da Copa constituídos em todas as cidades-sede. Uma das bandeiras é “Copa sim, remoção não”. Outra é “um tostão para a Copa, um tostão para a educação, um para a saúde”. E há algumas vitórias. Em Porto Alegre, uma remoção foi derrotada na luta. Há movimentos não apenas entre as comunidades populares ameaçadas. Estou me referindo, por exemplo, à Associação Nacional de Torcedores, que está na luta contra a elitização dos estádios. Há uma série de grupos de esportistas que protestam porque propagandeiam que os Jogos Olímpicos darão um grande impulso para a disseminação e popularização da prática esportiva no país. Só que os recursos não fluem para isso. Há também alguns setores sérios na imprensa... Embora achemos que a resistência aqui é pequena, colegas de outros países se impressionaram com a maneira precoce de nos organizarmos. Não se trata, evidentemente, de impedir que a Copa ou as Olimpíadas sejam realizadas no Brasil, mas de assegurar que uma parcela desses recursos seja destinada às necessidades sociais e que a população não seja vitimada pela grande festa do negócio.
Luís Brasilino
Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.Ilustração: Daniel Kondo
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
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