PICICA: "O negro como recusa e quilombismo; o índio como usina de alteridade e
outro conceito vivente de alteridade; o queer como libertação das
identidades (toda identidade pressupõe a blitz policial); a vadia como
encarnação do desejo revolucionário contra a degradação do amor e da
desrazão criativa pelo homem dominante. Esta cidade colorida, suja e
desejante, linda e insubmissa, que escandaliza e incomoda os fantoches
do capitalismo brasileiro e mundial. Eles não podem aceitar aldeias e
espíritos. A cidade deles não passa de mundo-espelho, caixa de
ressonância para os interesses nacionais com que brancos ricos e ricos
brancos legitimam a miséria de seu projeto e a obliteração de nossa
cultura de resistência e afirmação.
A revolução brasileira depende do devir de raças, raça-mulher,
raça-negra, raça-criança, raça-planta, raça-índia, de um animismo
radical e revolucionário. “As raízes índias e negras do povo
latino-americano devem ser compreendidas como a única força desenvolvida
deste continente. Nossas classes médias e burguesias são caricaturas
decadentes das sociedades colonizadoras.” (Gláuber) Brasil rico?
Leia-se: nacionalização da pilhagem. Urbanismo? Higienização. Novo Rio?
Velho Rio. Desenvolvimento econômico? Unidimensionalidade da vida, morte
à força da diferença, multiculturalismo = racismo = culturalismo da TV e
dos novos museus na zona sul, entregues de antemão à Fundação Roberto
Marinho e a miséria do establishment estético-cultural com que sonha uma
nova geração de artistas. Querem nos alinhar, a todos sem exceção, na
fila indiana do uni-desenvolvimento, sob toada policial-marcial e no
ritmo da violência racializada, cultural, civilizatória, violência
fundadora da mitologia brasileira, agora realizada. Uma opulência (para
poucos), baseada na miséria antropológica."
Sobre aldeias e espíritos
Não havia viva alma na Aldeia.
Passei por lá hoje de tarde [29/3] e todos tinham sido removidos. O cacique e o pajé, as índias guerreiras e os artesãos camelôs, os pintores, os músicos de rua com instrumentos estranhos, os malucos beleza, o advogado índio, o cotista da UERJ que está se reapropriando da cultura branca, os militantes de várias tendências, os secundaristas, os universitários, um ex-dirigente da FUNAI, a trupe nômade dXs sem destino, todos foram retirados pelo aparelho policial.
Em mais uma operação policial contra movimentos sociais, numa cidade cuja prefeitura não se embaraça em oficializar o “Choque de Ordem”, foi removida a Aldeia Maracanã. Amigos, companheiros, ocupantes tiveram o dia de hoje temperado com pimenta, borracha, lacrimogêneo, escudos, xingamentos e extremo desamor com galão de autoridade. Os espíritos não estavam mais naquele lugar hoje de tarde.
Mais cedo tinha visto pela televisão. Eu estava almoçando num quilo em Cascadura e deu no RJTV. Sério no padrão Global, o âncora se indignava que os invasores e os manifestantes na Aldeia Maracanã estavam atrapalhando a vida do cidadão. Transtornavam o trânsito, na contramão de um dia de trabalho na cidade. A imagem mostrava panorâmicas de carros pretos de combate, helicópteros, pelotões de capacete, homens carrancudos em armaduras cinzentas. Uma força de guerra que, pela simples presença, bloqueava a avenida. A defasagem entre o que mostrava a imagem e a fala do âncora foi se tornando cada vez mais absurda. O embuste se autodenunciava.
Eu ia assistindo a tudo isso boquiaberto, sem poder comer, até uma hora em que o próprio repórter da Globo em campo tossia com a ofensiva descoordenada da polícia. A convicção bem treinada do âncora chegou a vacilar. Engasgou com a situação, parecia não ter decorado a continuação daquilo. A serenidade assertiva e arrogante deu lugar à hesitação, e eu vi na sua expressão como ele ponderava: como sustentar essa farsa? Imediatamente, interveio o especialista em segurança, para justificar o choque de ordem. Explicou, com toda a convicção de quem sabe, o porquê de a polícia estar correta em servir diligentemente à privatização do Maracanã. Aqui no Rio, não somente as equipes de telejornalismo se incorporam a operações policiais, exercendo parte significativa do esforço de guerra, como também a polícia está incorporada nos jornais e programas, reforçando a linha editorial. É uma via de mão dupla: compartilham-se interesses em prol do saqueio generalizado da cidade pelo Grande Negócio do Novo Rio.
Parei de comer de vez. Primeiro, por causa da imagem, companheiros em apuros. Segundo, pelos comentários de fundo, das outras pessoas que almoçavam por ali. “Vagabundos”. “Índio com celular, onde já se viu”. “Lugar de índio é na floresta”. “Brasil não tem mais índio”… Foi difícil. Senti uma solidão muito grande e chorei por dentro. Tive de sair e, carregado negativamente, forçar-me a pensar um pouquinho.
Pensei por exemplo naquela criatura “realista”, aquela que até se anuncia como “centro-esquerda”, mas que é a primeira a desprezar e mesmo ridicularizar qualquer projeto ou ação de transformação vinda dos oprimidos, dos pobres, dos deserdados: no fundo as pessoas são acomodadas, conformistas e muito conservadoras, facilmente manipuláveis em direção a políticas de direita. As pessoas não hesitariam, num plebiscito, em legalizar a pena de morte para “vagabundo” — isto é, todo aquele desajustado, anormal ou rebelde em relação à ordem das coisas. O tipo de realismo arrogante é o primeiro a ser atirado no seu rosto nesses momentos, empenhado em alimentar a tristeza da derrota, o desencanto, a melancolia.
É preciso um esforço para não despencar na dita era do desencanto, na pós-história que é exatamente a narrativa elaborada para a paz dos vencedores. Esta condição afetiva é suicidária do ponto de vista político. Então pensei, forçando-me a pensar, contra o senso comum, que não funciona assim. Não é isso, Bruno. O conservadorismo não é explicado pelos discursos de almoço. Não é que o indivíduo seja egoísta. É que o egoísmo, um afeto fabricado social e historicamente, e funcional à economia do capitalismo, é ele quem cria o indivíduo enquanto tal. É preciso virar as verdades ao avesso. Lembrar como, poucos meses antes da maior revolução do século 19, um observador europeu comentou como os negros do Haiti eram submissos, sendo impossível que se rebelassem.
As pulsões reacionárias se multiplicam pelo tecido da sociedade, encontrando câmeras de eco onde quer que se olhe: na TV, nos jornais, no almoço, nas rodinhas, na fila do banco. Mas lado a lado com essas pulsões também está em pé o desejo, que nos faz querer mais do que é concedido e cabido, querer ser mais e viver melhor. Um desejo despotenciado mil vezes simplesmente para que as pessoas acordem novamente e marchem, em massa, para mais um dia do trabalho. Para quererem tão menos do que podem. Boa parte dos comentários fascistóides como os que ouvi, — que a criatura realista atribuiria genericamente ao vulgo e ao “popular”, — não passa de um maquinismo. Uma espécie de bem de conversa para agradar as expectativas e manter-se na zona de conforto, mantendo o ritmo do dia de trabalho sem enlouquecer.
Foi isso que me reconfortou ao pensar, e continuei.
Passei na Aldeia hoje de tarde e vi casas, ocas e tendas arrasadas pelo trator. As barracas e pertences recolhidos por caminhões de lixo. A vegetação em processo de corte. Estava tudo destruído, à sombra do Maracanã, alargado e espaçoso, o novo estádio que intimida pela imponência e certamente propicia uma “experiência de massa” que neofascista nenhum botaria defeito. A Aldeia era a última da fila de remoções e demolições. Milhares, talvez dezenas de milhares de operários explorados laboravam nessa arquitetura da destruição.
Mas o que mais me chamou a atenção foram os muros. Provocativamente repintados de branco, homogêneos. Antes, pichados e rabiscados de temas indígenas e mensagens ativistas, com um grande “Aldeia Maracanã”. Agora, revestidos de um branco ofensivo, esse estupro do colorido sujo da cidade, de um branco que é um tesão profanar, como dizia Leminski. Esse branco horrendo que escamoteia o negro, o vermelho, o amarelo – cores indesejadas porque insubmissas ao novo Rio que se embranquece em todos os flancos, apesar da resistência. Projetam o pobre, o negro e sobretudo o índio, sobretudo o derrotado, indolente e fatalista índio!, o negro da terra, para bem longe do novo Rio. Se quiserem ficar, adaptem-se. Tornem-se sustentáveis. Modernizem-se. Sigam o exemplo máximo dos nobres dignatários da República que venceram-na-vida-superando-toda-a-privação. Embranqueçam e apareçam, apelam à gente. O resto é baderna, vagabundagem e política em clima de “movimento estudantil”.
De toda a riqueza da Aldeia, só consegui divisar um elemento. Perdido em meio aos destroços, ainda dava pra ver da rua. Era um enorme e precário painel, largado dentro do prédio do Museu do Índio. Dava ainda pra ler o final de uma frase: “…ÇÃO”. Seria revolução? Ocupação? Conspiração? Insurreição? Não me lembro. Lembro-me da música, da ciranda, dos encontros debaixo de palha e lâmpadas improvisadas, da fogueira da resistência, dos cultos, das oficinas e performances. Das palavras, não lembro. É como um sonho, uma torrente de memórias sobrepostas, rostos, cânticos, incitações, reuniões tensas. Nenhum idílio de “bom selvagem”, nenhuma utopia reacionária que resgate num passado distante a salvação do futuro. O índio era transformação, e podia correr por todos e por ninguém. E olha que nem fiquei muito tempo por lá. Compareci dispersamente. Fico imaginando quem viveu os dias e noites de loucura na sua inteireza.
Fisicamente, sobrava apenas esse fragmento, nessa tarde que talvez seja a sua última. Apenas esse. Mas tantos na memória coletiva. E memória real! Escombros de um passado que não volta, e por isso cumpre revivê-lo como impulso de luta. Uma luta cuja eloquência cotidiana é constantemente desdenhada pelas câmaras de eco.
Não é tempo de desencanto. A Aldeia Maracanã, o Pinheirinho carioca, — Palmares e Canudos em memória, — é grande. Qualitativamente. Nela atuaram os fermentos da organização. Uma organização além dos rituais do esquerdismo, com suas neuroses discursivas. Ali, outro lugar e outra dimensão. Ali, rituais, sim, mas de regeneração. Rituais de liberação pessoal e libertação coletiva. Ali, se pôde reconectar ao mundo. Religar-se ao que nunca deixamos de ser, ao que sempre fomos, ao porvir do selvagem, selvagem mais futurista que o moderno, selvagem já nascido no “pós”, além de qualquer essência comunitária perdida e miticamente regressiva, selvagem na oscilação do ainda-não e do já-está, selvagem como o outro radical. Neoprimitivismo! Este mundo, mas outro.
O negro como recusa e quilombismo; o índio como usina de alteridade e outro conceito vivente de alteridade; o queer como libertação das identidades (toda identidade pressupõe a blitz policial); a vadia como encarnação do desejo revolucionário contra a degradação do amor e da desrazão criativa pelo homem dominante. Esta cidade colorida, suja e desejante, linda e insubmissa, que escandaliza e incomoda os fantoches do capitalismo brasileiro e mundial. Eles não podem aceitar aldeias e espíritos. A cidade deles não passa de mundo-espelho, caixa de ressonância para os interesses nacionais com que brancos ricos e ricos brancos legitimam a miséria de seu projeto e a obliteração de nossa cultura de resistência e afirmação.
A revolução brasileira depende do devir de raças, raça-mulher, raça-negra, raça-criança, raça-planta, raça-índia, de um animismo radical e revolucionário. “As raízes índias e negras do povo latino-americano devem ser compreendidas como a única força desenvolvida deste continente. Nossas classes médias e burguesias são caricaturas decadentes das sociedades colonizadoras.” (Gláuber) Brasil rico? Leia-se: nacionalização da pilhagem. Urbanismo? Higienização. Novo Rio? Velho Rio. Desenvolvimento econômico? Unidimensionalidade da vida, morte à força da diferença, multiculturalismo = racismo = culturalismo da TV e dos novos museus na zona sul, entregues de antemão à Fundação Roberto Marinho e a miséria do establishment estético-cultural com que sonha uma nova geração de artistas. Querem nos alinhar, a todos sem exceção, na fila indiana do uni-desenvolvimento, sob toada policial-marcial e no ritmo da violência racializada, cultural, civilizatória, violência fundadora da mitologia brasileira, agora realizada. Uma opulência (para poucos), baseada na miséria antropológica.
Então é isso. Não frequento congressos de cultura onde se aplaude a conversação universal pelos ocidentes harmônicos – antevisão do purgatório, onde só se pode falar de si. Ritos de consagração do idêntico. Não podemos render o carnaval, que não acontece no Carnaval, às opiniões de almoço e aos rostos cinicamente unânimes no RJTV. Sobretudo, não aceitaremos espelhinhos. É tão inaceitável compreender que não nos renderemos? Não aceitaremos a cultura branca e colonizadora. Essa “riqueza” não queremos! Disso tudo desde Oswald deveríamos estar imunizados. Nossa cultura = resistência = campanha de vacinação antropofágica contra toda a pasmaceira progressista, da direita ao esquerdismo, onde tudo muda para ficar igual, ou pior.
Hoje de tarde eu tive essa certeza. A certeza da dor. A certeza que mobiliza. A certeza que faz buscar o outro, que é sempre melhor do que eu. O tipo de certeza que brota da perplexidade, dessa recusa de ser o que não se é, o que fizeram com você. Sou feito do branco, mas me transformo. Porque você me transforma. E eu a ti. Poder ser o que o outro me impele a ser, e sem o qual nada poderia. O corpo é o que pode ser com o outro. O corpo imediatamente político. Não o mundo do outro: o outro do mundo. Eles estão lutando. Eu estou lutando. É questão de continuar. Renasço intacto e faço disso, uma vez mais, a minha questão. O resto evolui como problema de organização, estratégica, árdua, diuturna, obsessiva. Mas o indispensável já acontecera: estamos desde o início cindidos dessa cultura oficial de choque, ordem e progresso, do branco que não queremos ser. Nosso comportamento assim como a nossa estética estão famintos, e dessa fome não se sacia sozinho.
Nos
círculos da noite, redescubro a Aldeia vivinha da silva. Ela se derrama
como mancha. Pintaram os muros e demoliram as casas? Tiraram as pessoas
de lá? Vitória de Pirro. A mancha avança, imprevisível, vermelha como o
espectro imemorial e anônimo que não pára de criar o outro do mundo, que
morde o nosso porvir. Esse espectro maculado que tanto assusta quem
acha que vive mas já morreu amarfanhado no conforto. A boca escancarada
de dentes, tão brancos e sadios quanto podres, inúteis.
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* Originalmente escrito em 29 de março de 2013. Adaptado de minha contribuição ao 7º Corredor Cultural de Franca, a convite de Alexandre Magno Jardim.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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