PICICA: "Se os “direitos humanos” se tornaram a grande gramática
da dignidade, da liberdade e da igualdade, porque, na prática, tal
discurso é usado de forma tão seletiva, no direito internacional, e, no
âmbito interno, determinadas violações têm sido invisibilizadas?"
Contra as visões de 'baixa intensidade' dos direitos humanos
Por que, na prática, o discurso dos
“direitos humanos” é usado de forma tão seletiva no direito
internacional, e, no âmbito interno, determinadas violações têm sido
invisibilizadas?
César Augusto Baldi
Se os “direitos humanos” se tornaram a grande gramática
da dignidade, da liberdade e da igualdade, porque, na prática, tal
discurso é usado de forma tão seletiva, no direito internacional, e, no
âmbito interno, determinadas violações têm sido invisibilizadas?
Para Ratna Kapur, o aparente consenso esconde, em realidade, um campo de lutas e de contestações, também discursivas, “em que competem pressupostos e visões de mundo distintos sobre gênero, diferença, cultura e subjetividade.” Salientem-se alguns exemplos.
Primeiro: o estupro coletivo na Índia, no final de 2012, pôs em questão, na imprensa, a opressão das mulheres daquele país, em virtude de casamentos forçados, de limitações de direitos, etc. Esta hipervisibilidade, contudo, é a outra face da violação sistemática dos direitos das mulheres em todos os países pretensamente defensores dos direitos humanos, pela precarização das formas de trabalho, pelas condições desumanas de vida, pelas opressões sexuais, pelo não reconhecimento de sua agência como cidadã e outras desigualdades.
Segundo: a reação de populações islâmicas, em 2005, contra caricaturas do profeta Maomé ensejou, no “Ocidente”, uma discussão sobre liberdade de expressão e fanatismo. Tal visibilização, por sua vez, foi construída pela invisibilidade do tratamento diferenciado para os emigrantes africanos na Europa, pelas sucessivas tentativas de assimilação forçada das populações não cristãs, pelo não reconhecimento da liberdade religiosa na esfera pública e pela seletividade na abordagem da liberdade de expressão de fundo discriminatório e racista praticado contra estas mesmas populações.
Terceiro: o reconhecimento, em 2009, da “pachamama” como sujeito de direito, pela Constituição equatoriana foi alvo de debates pelos fundamentos não antropocêntricos. A defesa do modelo ocidental de “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” foi construída pelo ocultamento dos direitos socioambientais das populações “tradicionais” (indígenas, incluídos), pela intransigência de um modelo neoextrativista (com suposto fundo de redução de desigualdades sociais), pela criação do conceito de “economia verde”, pela ignorância de outras cosmovisões e da pluralidade de conhecimentos, anteriores- e posteriores- à própria chegada europeia a Abya Yala.
Quarto: a reforma do Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, iniciada no âmbito da Assembleia Geral da OEA, com aparente democratização da discussão (pela amplitude dos membros), escondia, por sua vez, que a própria Comissão não tinha tomado a iniciativa, que as medidas cautelares têm sido uma das formas mais eficientes de proteção dos direitos, que os órgãos de proteção do sistema interamericano devem ser reforçados em sua independência e que os garantes ou destinatários principais do sistema não eram os países membros, mas sim os usuários e as vítimas destes mesmos.
Quinto: a eleição, para a Comissão de Direitos Humanos (Câmara dos Deputados, Brasil), de parlamentares contrários ao reconhecimento de reivindicações de grupos LGBTTI e minorias raciais foi defendida sob fundamento de que as composições anteriores não respeitavam a diversidade de pensamento, a liberdade religiosa e constituíam verdadeiras ditaduras. Um procedimento de contra-reforma em defesa de direitos reconhecidos em tratados internacionais, paralelo ao questionamento da Comissão da Verdade, que, fundada em decisão da Corte Interamericana, pode destacar que a tortura, longe de ser um componente da ditadura militar, é uma prática cotidiana do momento atual, eliminando, fundamentalmente, homens negros com idade inferior a 25 anos.
Não se trata, portanto, de negar a importância dos direitos humanos, mas sim de combater “visões de baixa intensidade”, de reforçar mecanismos de proteção, de proceder à crítica interna e de produzir (e articular) cosmologias que reinventem esta gramática , a partir de contra-memórias de outras genealogias, histórias, sujeitos, experiências e modos de poder excluídos, ignorados e silenciados.
Para Ratna Kapur, o aparente consenso esconde, em realidade, um campo de lutas e de contestações, também discursivas, “em que competem pressupostos e visões de mundo distintos sobre gênero, diferença, cultura e subjetividade.” Salientem-se alguns exemplos.
Primeiro: o estupro coletivo na Índia, no final de 2012, pôs em questão, na imprensa, a opressão das mulheres daquele país, em virtude de casamentos forçados, de limitações de direitos, etc. Esta hipervisibilidade, contudo, é a outra face da violação sistemática dos direitos das mulheres em todos os países pretensamente defensores dos direitos humanos, pela precarização das formas de trabalho, pelas condições desumanas de vida, pelas opressões sexuais, pelo não reconhecimento de sua agência como cidadã e outras desigualdades.
Segundo: a reação de populações islâmicas, em 2005, contra caricaturas do profeta Maomé ensejou, no “Ocidente”, uma discussão sobre liberdade de expressão e fanatismo. Tal visibilização, por sua vez, foi construída pela invisibilidade do tratamento diferenciado para os emigrantes africanos na Europa, pelas sucessivas tentativas de assimilação forçada das populações não cristãs, pelo não reconhecimento da liberdade religiosa na esfera pública e pela seletividade na abordagem da liberdade de expressão de fundo discriminatório e racista praticado contra estas mesmas populações.
Terceiro: o reconhecimento, em 2009, da “pachamama” como sujeito de direito, pela Constituição equatoriana foi alvo de debates pelos fundamentos não antropocêntricos. A defesa do modelo ocidental de “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” foi construída pelo ocultamento dos direitos socioambientais das populações “tradicionais” (indígenas, incluídos), pela intransigência de um modelo neoextrativista (com suposto fundo de redução de desigualdades sociais), pela criação do conceito de “economia verde”, pela ignorância de outras cosmovisões e da pluralidade de conhecimentos, anteriores- e posteriores- à própria chegada europeia a Abya Yala.
Quarto: a reforma do Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, iniciada no âmbito da Assembleia Geral da OEA, com aparente democratização da discussão (pela amplitude dos membros), escondia, por sua vez, que a própria Comissão não tinha tomado a iniciativa, que as medidas cautelares têm sido uma das formas mais eficientes de proteção dos direitos, que os órgãos de proteção do sistema interamericano devem ser reforçados em sua independência e que os garantes ou destinatários principais do sistema não eram os países membros, mas sim os usuários e as vítimas destes mesmos.
Quinto: a eleição, para a Comissão de Direitos Humanos (Câmara dos Deputados, Brasil), de parlamentares contrários ao reconhecimento de reivindicações de grupos LGBTTI e minorias raciais foi defendida sob fundamento de que as composições anteriores não respeitavam a diversidade de pensamento, a liberdade religiosa e constituíam verdadeiras ditaduras. Um procedimento de contra-reforma em defesa de direitos reconhecidos em tratados internacionais, paralelo ao questionamento da Comissão da Verdade, que, fundada em decisão da Corte Interamericana, pode destacar que a tortura, longe de ser um componente da ditadura militar, é uma prática cotidiana do momento atual, eliminando, fundamentalmente, homens negros com idade inferior a 25 anos.
Não se trata, portanto, de negar a importância dos direitos humanos, mas sim de combater “visões de baixa intensidade”, de reforçar mecanismos de proteção, de proceder à crítica interna e de produzir (e articular) cosmologias que reinventem esta gramática , a partir de contra-memórias de outras genealogias, histórias, sujeitos, experiências e modos de poder excluídos, ignorados e silenciados.
(*) Mestre em Direito (ULBRA/RS),
doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª
Região desde 1989,é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade
cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).
Fonte: Carta Maior
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