PICICA: "Mais
recentemente, a perversidade da política de “pacificação” do Rio de
Janeiro vai se explicitando até mesmo para muitos dos que, nos primeiros
dias, haviam entusiasticamente abraçado a iniciativa governamental. Os
chamados especialistas em segurança pública
debatem se a política de pacificação se constituiria ou não em uma
“política pública”, se ela teria ou não uma alcance nacional e se seu
modelo de policiamento seria ou não replicável para outras situações.
Muitos desses especialistas a vangloriam por ser, no mínimo, uma
“prática de policiamento de proximidade”, isto é, “aquilo pelo que
lutamos muito” (lutamos quem?). Enquanto isso, no cruento cotidiano dos
setores populares, a estratégia da “pacificação” vai revelando sua
natureza, vai se tornando o que ela é. Sua perversidade vai se evidenciando de diversas formas..."
Pacificação sem paz no Rio de Janeiro
10/04/2013
Por Fernanda Pradal
Por Fernanda Pradal | Mestranda em direito – PUC-RJ
Mais
recentemente, a perversidade da política de “pacificação” do Rio de
Janeiro vai se explicitando até mesmo para muitos dos que, nos primeiros
dias, haviam entusiasticamente abraçado a iniciativa governamental. Os
chamados especialistas em segurança pública
debatem se a política de pacificação se constituiria ou não em uma
“política pública”, se ela teria ou não uma alcance nacional e se seu
modelo de policiamento seria ou não replicável para outras situações.
Muitos desses especialistas a vangloriam por ser, no mínimo, uma
“prática de policiamento de proximidade”, isto é, “aquilo pelo que
lutamos muito” (lutamos quem?). Enquanto isso, no cruento cotidiano dos
setores populares, a estratégia da “pacificação” vai revelando sua
natureza, vai se tornando o que ela é. Sua perversidade vai se evidenciando de diversas formas:
a)
O chamado “policiamento de aproximação”, implementado por novos
policiais formados com “aulas de direitos humanos e não pelos capangas
da ditadura militar”, mostra que também mata. Sua letalidade é, hoje, um
fato irretorquível até mesmo para os apologetas da doutrina da “paz”.
Num simples ato, rápido e emudecedor, um policial atira e tira a vida de
uma pessoa (que – não custa frisar – não tentava lhe tirar a vida no
mesmo instante). Já foram algumas as mortes conhecidas por meio das
mídias e das denúncias de lideranças locais e familiares. As mortes
desconhecidas, as dos “bandidos”, as “em confronto”, as dos “cracudos”,
nunca as conheceremos. Só os valões cheios de lixo e esgoto a céu aberto
tão facilmente encontrados nas “comunidades” ou “territórios” que
“necessitam de pacificação” sabem dessa contagem.
b)
Nos vídeos divulgados pela imprensa alternativa fica também explícita a
falsidade da premissa do “controle de territórios” por uma “nova”
polícia. Não há diálogo com os moradores, há enfrentamento e,
possivelmente, medo. Medo? A “polícia de aproximação”, a “polícia
comunitária”, como chamam os nossos já referidos especialistas, tem medo
da reação popular às suas arbitrariedades, não dialoga, não faz
mediação de conflitos (!), e nem mesmo prende (!): simplesmente atira, e
às vezes atira para matar. A confusão pelas ruelas de iluminação
precária rapidamente leva policiais a se refugiarem de um lado, em
oposição aos moradores revoltados com o assassinato ocorrido, e atiram,
sabe-se lá para onde. Na melhor hipótese, para cima. Devem ter aprendido
em seus cursos que a lei da gravidade (assim como outras tantas) não se
aplica às favelas, e que, portanto, a bala que sobe não cai e, assim,
não mata nem fere pessoas. Caso, entretanto, isso venha a acontecer, não
entrará no computo das “balas perdidas” (perdidas de onde, convém
indagar?). Outras inúmeras situações de conflito já foram noticiadas,
como o rapaz que levou um tiro na mão no Complexo do Alemão há poucos
dias, e os diversos conflitos em torno das proibições autoritárias dos
comandantes. Como em verdadeiro estado de sítio, quem toma as decisões
sobre as regras de convivência, a permissão ou a proibição de festas
particulares, aniversários, casamentos, natal, páscoa, bailes funk,
rodas de rap etc. é o comandante. O perfil do comandante é o que dita o
grau de liberdades das “comunidades pacificadas”. Esses comandantes
também participam, em geral, das reuniões das associações de moradores,
dos encontros com os representantes da “UPP social”. Realmente, é
incrível a liberdade trazida pelo Estado a essas áreas(!). Além disso,
essa é a mesma polícia que dá aulas de dança de salão, lutas marciais,
promove corridas festivas das ocupações/invasões, muitas vezes com o
auxílio do hollywoodiano BOPE, os caveiras
sempre a postos para qualquer “operação” em favelas do Rio de Janeiro. A
militarização vai, assim, se enraizando, penetrando na possibilidade de
vida e na forma de vida dessa população.
c)
Perversidade é a palavra porque esses moradores, trabalhadores pobres
em sua enorme maioria, apostam e creem que este de fato é um
policiamento diferente, que está ali para expulsar o tráfico armado
violento e manter a chamada “ordem pública” também nas favelas.
Acreditam que a possibilidade de se ocupar as ruas da favela veio para
ficar – “Agora as crianças podem voltar a brincar nas ruas!”. Claro, um
ganho fundamental! Sob quais condições? E, logo, uma das mais perversas
perguntas retóricas: “Você preferia o tráfico violento?”. Além disso,
essa “retomada do território” e o novo policiamento eram “o que faltava
para a urbanização”, isto é, a chagada ou melhoria do saneamento básico,
da escola, do posto de saúde, da quadra de esportes, do parque das
crianças, do serviço de assistência social para os viciados em crack (o
mais novo e lucrativo vicio) e, naturalmente, o fim dos valões onde são
depositados os cadáveres “inexistentes”. E de onde os moradores tiraram
essas promessas? Diretamente das falas e das verdades construídas pelo
governador, pelo secretário de segurança, pela imprensa e – não podemos
esquecer-nos deles – os nossos especialistas em segurança pública.
Desde a invasão do Complexo do Alemão – vale lembrar – a cobertura
televisiva da Rede Globo, as inúmeras reportagens do RJTV e as inúmeras
matérias do Jornal O Globo vem enaltecendo a política de pacificação e
reproduzindo o discurso oficial. Certamente isso já era de se esperar.
d)
É perversa porque a principal preocupação de muitos moradores e da
classe média (em geral, por motivos elitistas e racistas) é a de se a
pacificação vai durar para sempre, se permanecerá depois dos grandes
eventos internacionais que a cidade sediará. Esses eventos que geram
lucros imensos e concentrados ao capital nacional e internacional
(construtoras, gestoras de equipamentos públicos – de esporte, de saúde,
de entretenimento etc.). A resposta começa com o fato de que a chamada
“UPP social” – o programa de articulação de secretarias e suas
políticas, sem nenhum orçamento próprio – praticamente acabou! Entre
disputas de partidos do grande arco de alianças das gestões de Paes e
Cabral, “sob nova direção” e totalmente em crise, a UPP Social tenta
sobreviver. Afinal, em 2014 tem mais uma eleição!
e)
Esse processo é também perverso pelas transformações, essas sim,
líquidas e certas, que tem imposto à vida das pessoas nessas áreas. É o
que vem sendo chamado de “remoção branca”, em diferenciação a outro
processo perverso e violento em curso na cidade maravilhosa – o processo
de remoções de diversas moradias de áreas empobrecidas e de
transformações urbanas igualmente autoritárias e caras aos cofres
públicos em que o capital aliado é sempre, curiosamente, o mais
preparado e competente concorrente das licitações. Esse processo de
“remoção branca” é a outra face perversa da ocupação militarizada dessas
áreas da cidade uma vez que, pelo encarecimento não planejado, abrupto e
absolutamente incompatível com os salários ou ganhos mensais desses
moradores, além de uma série de arbitrariedades, diversas pessoas estão
deixando esses locais de moradia, geralmente áreas na zona sul da
cidade, e mudando para áreas mais distantes de seus laços e de seu
trabalho. Esse processo tem beneficiado empresas como a Light e a Net,
entre outras que, mesmo antes de qualquer secretaria de Estado “chegar”
para trazer a tão prometida e esperada “inclusão social”, já estavam lá.
Afinal, todos os cidadãos devem pagar pelos serviços que consomem!
Essas áreas, como o morro Santa Marta, tem se tornado o destino de
estrangeiros e da classe média. No ritmo desse processo de gentrificação (aburguesamento)
da cidade, a ocupação militarizada dessas áreas e modos de vida foi
compreendida como a estratégia. Não à toa, é do grande empreendedor
brasileiro do sec. XXI, Mr. Eike Batista, a contribuição privada mais
robusta à Secretaria de segurança publica do Estado para as UPPs, além
claro, da contribuição da FIRJAN, FECOMERCIO, Coca-Cola, Souza Cruz,
Bradesco Seguros, CBF… A especialista para “ações integradas no
território” resume, sem rodeios: “a iniciativa das empresas é ‘um
investimento no futuro, capitalista, mas com sensibilidade social’”.1
f)
A política de pacificação é perversa, por fim, porque no grande jogo do
lucro do capital, do controle elitista e racista sobre os
subalternizados trabalhadores moradores das áreas de pobreza da cidade,
vidas são consumidas diretamente, como a de Aliélson Nogueira e de
outros tantos, os modos de vida dessas pessoas são literalmente moldados
e as subjetividades, por essa prática securitária e autoritária, são
produzidas. Mas são nessas engrenagens, sob o ritmo diário da disciplina
da exploração do trabalho formal ou informal, doméstico ou não, que
formas de resistência precisam ser construídas por aqueles/as que,
ainda, vivem. É o que a mobilização dos moradores do Jacarezinho mostrou
na última semana.
—
Divulgue na rede
Fonte: Rede Universidade Nômade
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