abril 18, 2013

"A hora do mau selvagem", por Bruno Cava

PICICA: "Poucas ações podem ser mais democráticas do que a ocupação ontem do plenário da Câmara por centenas de indígenas. Numa democracia, as lutas assumem a tarefa de regenerar as instituições. Especialmente em tempos em que estejam engessadas. Democracia sem conflito e dissenso não prospera. É o que Thomas Jefferson chamava de “rebeliãozinhas de vez em quando”, indispensáveis ao regime democrático, para continuamente lembrar aos representantes quem manda. Na concepção do presidente americano, os governantes e autoridades é que devem temer o povo. O inverso seria um regime tendente ao despotismo, em que o poder do estado inflaciona e termina por bloquear o exercício dos direitos." 

A hora do mau selvagem


Poucas ações podem ser mais democráticas do que a ocupação ontem do plenário da Câmara por centenas de indígenas. Numa democracia, as lutas assumem a tarefa de regenerar as instituições. Especialmente em tempos em que estejam engessadas. Democracia sem conflito e dissenso não prospera. É o que Thomas Jefferson chamava de “rebeliãozinhas de vez em quando”, indispensáveis ao regime democrático, para continuamente lembrar aos representantes quem manda. Na concepção do presidente americano, os governantes e autoridades é que devem temer o povo. O inverso seria um regime tendente ao despotismo, em que o poder do estado inflaciona e termina por bloquear o exercício dos direitos.

A democracia dos índios não é essa que se organiza em bancadas ultraconservadoras, corrompendo o poder constituído “desde cima”, num emaranhado de interesses de latifundiários, velhos coronéis, agronegociantes e empreiteiras. Com cerca de cem parlamentares, a bancada ruralista manobra as peças para transferir a competência de demarcar terras indígenas do governo para o parlamento. Daí não pode vir coisa boa, como perceberam há muito os índios. No Brasil hoje, vivemos uma situação curiosa, onde o bloqueio dos direitos pelo congresso é tão acintoso que é preferível manter as fichas no poder executivo federal. Isto é, no governo Dilma (!).

A grande imprensa destilou o racismo usual, em nome dos altos valores da República. Os opinólogos mais à direita acusaram-nos de invasão, agressão à lei e ordem, de servirem a interesses alienígenas. Um jornalista lamentou que os índios teriam manchado uma obra de Di Cavalcanti com urucum. Os mais à esquerda pontuaram que houve excesso, como sempre, concordariam no conteúdo, não na forma do protesto. Para os primeiros, abertamente conservadores, movimento social igual baderna e deve ser criminalizado quando toca o poder, tratando-se de uma das maiores barreiras para o desenvolvimento nacional. Para os últimos, liberais e veladamente conservadores, o movimento social deve se limitar a reunir grupos de interesse para formular demandas aos “legítimos representantes”, sob a sua liderança, jamais partir para organizações autônomas e ações diretas. Os movimentos devem assumir um caráter, no máximo, reivindicatório, dirigindo-se a quem de direito, nunca um caráter constituinte. Imagine se isso se alastra? seria o fim da base de qualquer democracia: a ordem pública e as instituições representativas.

Este vídeo particularmente vale a pena: um deputado fala ao microfone que está com medo, logo antes da alegre chegança indígena. Até Jefferson, que não era nenhum comunista, aprovaria a situação. Para mim, a ocupação de ontem foi de lavar a alma. Levando em conta que, há menos de um mês, a Aldeia Maracanã fora arrastada na onda de remoções, higienizações e supervalorizações, sustentada pelo “urbanismo de choque” no Rio. Essas ocupações indígenas afastam qualquer nostalgia de um bom selvagem que nunca existiu. Afasta qualquer culturalismo enviesadamente racista, em que os índios seriam como crianças: inocentes, saudáveis, harmônicos, pré-pecado originário, “incapazes” de maldade. O que no final das contas acaba sobrando é justamente o “incapazes”; e não foi outra a justificativa para, sob a tutela da FUNAI, serem conduzidos a precárias instalações a 50 km do Maracanã, para uma área mais “verde”. Ora, lugar de índio não é na floresta? Incapazes também para lutar por si próprios, e não por acaso acusam os índios de ser manipulados por ONG e países estrangeiros com olho gordo na Amazônia. O procedimento não muda muito: quando não dá certo simplesmente descaracterizá-los como índios (porque falam no celular seriam vagabundos quaisquer), tratam-nos como crianças, política e juridicamente. É a velha antropologia made in Brazil, em que o índio, reduzido a objeto, não tem escapatória nas garras da unidade nacional que o estado impõe.

É preciso contrapor os canibais ao “bom selvagem”, no alto canibalismo que transforma não só os índios, mas a sociedade, o poder e a esquerda. Indigeniza-as. Na aldeia Maracanã, algumas vezes tive a sensação de que alguns índios eram cínicos ao usar cocar, dançar, falar dialeto ou cultuar os deuses. Claro que essa conversa era tabu entre militantes e ativistas. Não era fácil sequer esboçá-la. O fato é que alguns estavam ansiosos, e até redimidos, em rapidamente atribuir ao índio a função de herói da resistência, os únicos que poderiam purificar as lutas das impurezas da esquerda, seus interesses e alianças, sua maldição de classe. Outros, mais “verdes”, viam no indígena a chance de restaurar alguma “essência perdida” e não por acaso valorizavam o que de mais folclórico se poderia pensar sobre os índios. Ambas as posições solicitavam um povo utópico, — seja o herói digno do realismo socialista, seja o comportado neopagão ecológico, — enquanto os índios reais sorriam marotamente. Disfarçavam-se, mudavam de tática, de postura, de sentimento — um arsenal infinito de modulações e tonalidades. Os índios se relacionavam com todos, tirando o máximo que podiam de cada relação. Uma lição de como atuar politicamente sem dogmatismo. Eles não vieram afinal para limpar nada, mas para sujar com as tintas da realidade.

Depois pensei, cínicos não seríamos todos ao vestir máscaras diante do estado? Diante da onça, não tenho o direito de usar o que está à mão, e enganar, e fugir, e guerrear? Por que o branco ocidental estaria no plano da estratégia e da encenação, enquanto os índios seriam mais sinceros, outro adjetivo para mais ingênuos?

Hoje eu acho o contrário: o que qualifica essa luta e essa transformação, — a única coisa que tem permitido que sobreviva à expropriação e ao extermínio que nunca terminam — só pode ser a esperteza, a manha, um cinismo de resistência. A capacidade de transmutar-se a partir da alteridade, uma alteridade generosa e constituinte: potente.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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