PICICA: "O sentido distópico no livro é
justamente o da plena realização da escolarização da sociedade, o que
garante a criação de uma ordem eterna aceita por todos, na qual tudo
permanece harmonioso e nada acontece, como uma grande rotina escolar.
Por sinal, a leitura do livro provoca um grande estranhamento na medida
em que a expectativa do leitor de que um acontecimento dramático rompa a
placidez da narrativa é sempre frustrada. Muitas vezes parece que
nenhum conflito efetivamente se desenvolve nas páginas do livro, todos
os personagens (exceto os protagonistas) recusam todo tipo de conflito."
O romance mais recente do escritor sul-africano J. M. Coetzee, A infância de Jesus,
constrói uma distopia muito singular. Trata-se de Novilla, uma terra de
apetites satisfeitos e regulados, na qual os indivíduos vivem
existências desprovidas de paixões e perturbações da alma. Nesse lugar,
todo tipo de afeto encontra-se anulado, seja o desejo sexual, o apetite
por comidas saborosas ou mesmo a ambição por riquezas materiais ou
distinções sociais. Nada é capaz de perturbar o plácido comportamento
dos indivíduos que lá residem.
Para atingir esse estado de serenidade,
todo recém-chegado precisa abandonar sua vida anterior, suas memórias e
seu próprio nome. Os preparativos dessa nova vida são realizados numa
espécie de campo de transição (ou seria um campo de concentração?), na
qual os refugiados, que desistiram da vida desregrada e tumultuada que
levavam, se desprendem de seus velhos hábitos. Após a chegada em
Novilla, todos recebem um auxílio para se instalar e procurar algum tipo
de emprego. As habitações são sorteadas e as ocupações disponíveis não
são muito variadas, pouco importa a profissão, afinal todos acabam
levando uma vida bastante parecida.
A alimentação é quase inteiramente
limitada à pão e cereais. Não existem muitos sabores, tampouco bens
disponíveis para o consumo exagerado. A moderação é absoluta. No tempo
livre, os moradores podem acompanhar algumas partidas de futebol, mas a
atividade mais praticada é o estudo, no interior de um imenso centro
universitário que oferece os mais variados cursos. Assim, a rotina em
Novilla é muito simples, e como tudo, regrada. O trabalho e o estudo,
com poucas exceções, ocupam quase todo o tempo de seus moradores.
Pode-se dizer, assim, que essa sociedade
seria a concretização de um ideal muito recorrente no pensamento
ocidental de disciplina e ordem, na qual todos os cidadãos se ocupam
exclusivamente de seus afazeres e estudos, garantindo a manutenção de
uma sociedade em contínua harmonia e serenidade. É interessante observar
que esse ideal homeostático de sociedade é o correlato de uma ética da
apatia que teve sua formulação mais nítida na antiguidade tardia.
Como se sabe, no interior do rico
pensamento helenístico surgiu inúmeras correntes filosóficas que
entendiam as paixões como a fonte de todos os males da existência
humana. Viver sob a influência das paixões era viver sem controle sobre o
próprio comportamento e sobre sua existência. Incapaz de se controlar, o
indivíduo apaixonado era aquele que era conduzido pelas influências
externas, por isso nunca alcançaria o caminho da razão e do controle de
si próprio.
Contra essa existência errática, temos a
figura do sábio, aquele que alcança um estado de harmonia interior
capaz de protegê-lo da força das paixões. Nessa perspectiva, mais do que
uma simples moderação das paixões (tema central, por exemplo, na ética
da Antiguidade clássica), o caminho da razão deveria buscar a absoluta
anulação de todo tipo de paixão. Ainda que este ideal não pudesse ser
plenamente atingido, o ponto de fuga da existência ética seria a busca
de um estado de apatheia, ou seja, uma negação da paixão. Esse caminho conduziria a uma existência tranqüila, feliz, capaz de produzir o ideal da ataraxia: a ausência de perturbações e desequilíbrios, a materialização mesma de um ideal racional pleno e moderado.
Esse ideal de condução da existência
individual da antiguidade tardia não se limitou apenas à filosofia
helenística, mas influenciou também a própria concepção de conduta moral
do cristianismo, que se formava no período. A moral cristã de contenção
dos desejos da carne não deixa de ser uma reformulação dessa ética
apática. De qualquer modo, em todos os casos, o comportamento apático
não é natural e nem facilmente alcançado. Existe um percurso educativo
necessário para o aprendizado desse controle das paixões. Vale mencionar
que, na modernidade, esse ideal educativo de controle de si mesmo, de
anulação das paixões desregradas, dessa ética estóico-cristã de negação
da mundanidade (o pensamento estóico não foi o único na antiguidade
tardia que propôs essa anulação das paixões, mas é talvez o mais
associado no senso comum com esse ideal), reaparece como um dos
elementos essenciais para a conformação do campo pedagógico da ação
escolar. A escola não seria nada mais do que o local de interiorização
da razão e do justo comportamento regrado, não-passional.
Nesse sentido, o ingresso dos indivíduos
na comunidade de Novilla funciona como a passagem da mundanidade das
paixões para uma ética da razão e da serenidade bem nos moldes desse
pensamento estóico-cristã. É contra essa ordem apática que os dois
protagonistas da trama – Simón, um homem que começa a envelhecer, e
David, uma criança ainda pequena – precisarão lutar quando chegam na
comunidade. Não sabemos muito bem o que levou os dois ao local, sabemos
apenas que estão em busca de uma nova vida e que Simón deseja encontrar a
mãe do pequeno garoto. Os dois se encontraram no transporte que conduz
até Novilla e não tinham nenhuma relação de parentesco ou de
proximidade. O fato do garoto estar sozinho e sem ninguém para guiá-lo
comoveu o homem, que decidiu encontrar uma forma de ajudá-lo a encontrar
um novo lar.
Porém, logo que chegam à Novilla, a
ordem do local incomoda e perturba os dois. Simón percebe rapidamente as
implicações do comportamento contido e regrado dos moradores locais. A
frieza das mulheres em relação às suas investidas sexuais o deixa
perplexo. O prazer sexual é visto como um ato inútil e até mesmo
incivilizado. Mas não é apenas a falta de desejo sexual que perturba
Simón. Ele também não compreende como as pessoas podem se satisfazer com
refeições e hábitos tão frugais. O esforço incessante dos estivadores
no porto, que se recusam a utilizar qualquer meio tecnológico para
acelerar o trabalho e diminuir a necessidade de esforço físico, também
espanta Simón. Ele não compreende como uma sociedade pode recusar tão
obstinadamente qualquer ação para o seu “progresso” e desenvolvimento
material. E quando tenta debater, o homem é sempre envolvido por debates
filosóficos insuperáveis e precisa se conformar com interlocutores
completamente convencidos com a justeza do modo de vida local.
Ainda que estranhe tanto a forma de vida
de Novilla, não é ele quem mais sofre para se adaptar. Aos poucos,
Simón começa a se resignar e desiste de mudar as crenças que vigoram
sobre o que seria a postura adequada das pessoas. É garoto quem
enfrentará mais diretamente as conseqüências de sua inadequação à ordem
local. Se o homem oferece uma resistência afetiva, insistindo na
importância das paixões para a vida humana, pode-se dizer que o garoto
apresenta uma resistência de ordem ainda mais radical: ele questiona a
própria universalidade da razão que deve presidir os comportamentos
humanos. Enquanto a crítica de Simón é perfeitamente assimilável, sendo
visto pelos demais apenas como um indivíduo especialmente teimoso e que
ainda não aceitou abandonar os hábitos de sua antiga vida, a postura do
garoto é inaceitável.
Ele se mostra ingovernável e intratável.
As manifestações desse comportamento irascível começam quando David é
posto sob os cuidados de Inês, a mulher que Simón acredita ser a mãe do
garoto (ainda que não exista nenhuma evidência sólida para sustentar
essa crença e o próprio garoto insista que nem ela, nem o homem sejam
seus pais verdadeiros). A partir desse momento, David começa a se
comportar de forma excessivamente questionadora e teimosa. Seu olhar
infantil é incapaz de aceitar a ordem das coisas. Ele questiona desde
fatos corriqueiros até as maiores obrigações sociais, como a necessidade
de trabalhar para receber um salário.
No início, é apenas Simón que estranha e
se perturba com o comportamento do menino. Porém, as coisas mudam de
figura quando ele tenta ensinar o garoto a ler e escrever, preparando-o
para a escola. Com uma versão ilustrada de Dom Quixote, Simón se esforça
para ensinar o significado das palavras e das silabas para David, mas
este se recusa a ler tal qual está escrito. Ele prefere inventar novos
sentidos, construir uma nova linguagem, uma linguagem inteiramente
imaginativa e incompreensível para qualquer outro. É como se a ordem da
razão, expressa na materialidade do texto, não bastasse para organizar a
imaginação e o comportamento do garoto. E não são apenas as regras da
linguagem gramatical que são torcidas pelo garoto. A matemática também
não resiste ao seu poder imaginativo. Ele se recusa a entender os
números segundo uma lógica clássica, para ele não faz sentido a
suposição de que dois mais dois resultaria em quatro. O mundo, para ele,
é um lugar de mistérios singulares, no qual as regras bem ordenadas e
estáveis não encontram lugar.
Simón se irrita e se exaspera, afinal
ele não compreende como o garoto pode resistir às evidências lógicas do
senso comum. Ainda assim, ele continua cuidando pacientemente da
formação do menino, tentando introduzir nele alguns princípios que podem
lhe ajudar a conviver socialmente. É quando o menino entra na escola
que essa imaginação ilimitada começa a revelar inteiramente seu caráter
ameaçador. Após poucos dias estudando com outros garotos, o professor de
David convoca Simón e Inês para relatar as dificuldades do garoto.
Segundo o professor, o comportamento errático e questionador do garoto
ameaçam a ordem e a tranqüilidade das demais crianças. O fato dele não
aprender corretamente impede a interiorização das regras do bom governo
em David, impedindo também a condução de todas as demais crianças. Sua
potência imaginativa corrói o ideal apático que deveria organizar a
comunidade. A forma-de-vida expressa no comportamento de David não é a
das regras abstratas e universais da razão, mas uma existência passional
e caótica própria de um ser que abraça inteiramente a sua mundanidade.
Por isso, a única opção para reprimir
essa potência tão passional é interná-lo num colégio interno, onde ele
poderia finalmente ser conduzido rumo à razão. É muito significativo que
o jogo entre razão e desrazão, entre harmonia e caos, entre um
comportamento ataráxico e um comportamento perturbado, funcione em torno
de uma definição de leitura. O que espanta a todos é a insistência do
garoto em ler à sua própria maneira, criando sentidos e ideias que
escapam inteiramente do controle gramatical do texto.
Na prática, o garoto inventa um novo
meio de leitura, no qual o texto é descartado e no seu lugar ocorre uma
leitura poética, que está para-além das palavras. É como se a essência
da razão fosse o ordenamento regrado produzido por um sentido único do
texto, enquanto a desrazão emanasse da impossibilidade mesma de reduzir o
pensamento e o comportamento ao caminho contido desse sentido único. E o
espaço adequado para a interiorização dessa ordem racional, o caminho
para o comportamento ataráxico, é a instituição escolar. A ação
educativa, assim, é por onde se introduz a noção de contenção e
regramento que preside a existência apática dos moradores de Novilla.
Não é por acaso que a organização do tempo dos habitantes de Novilla
funcione em torno do binômio trabalho/educação. A escola não é apenas um
espaço destinado aos infantes, mas um projeto para toda a vida. A regra
que emana do estudo deve conduzir os adultos e as crianças rumo à razão
apática que garante a harmonia no interior da sociedade.
O sentido distópico no livro é
justamente o da plena realização da escolarização da sociedade, o que
garante a criação de uma ordem eterna aceita por todos, na qual tudo
permanece harmonioso e nada acontece, como uma grande rotina escolar.
Por sinal, a leitura do livro provoca um grande estranhamento na medida
em que a expectativa do leitor de que um acontecimento dramático rompa a
placidez da narrativa é sempre frustrada. Muitas vezes parece que
nenhum conflito efetivamente se desenvolve nas páginas do livro, todos
os personagens (exceto os protagonistas) recusam todo tipo de conflito. A
harmonia é a tônica do comportamento de todos em Novilla. E o
comportamento de David representa um curto-circuito dessa lógica, por
isso ele precisa ser institucionalizado e afastado do convívio com
outras crianças “normais”.
Ele ameaça a ordem da razão e do governo
que estrutura e garante a existência da sociedade totalitária de
Novilla. Por isso, pode-se dizer que essa ordem totalitária nada mais é
do que a plena realização do ideal de sociedade escolarizada que marca
nossa modernidade. Afinal, o que seria a utopia educativa senão a
criação de uma sociedade na qual todos são autoeducáveis e capazes de
conduzir seus comportamentos segundo princípios universais e abstratos
(a hospitalidade e a boa vontade que todos os moradores de Novilla
defendem), buscando o contínuo aperfeiçoamento e a formação ilimitada? A
escolarização como um projeto para toda vida é o elemento basilar do
governo de nossos comportamentos e afetos e a figura mestra para a
consecução de inúmeros projetos utópicos e de bem-estar social em nosso
tempo.
Nesse caso, se o livro começa com o
movimento dos protagonistas em busca de uma vida nova, a parte final do
livro é a retomada dessa busca. Incapazes de se adaptar ao mundo
escolarizado e apático de Novilla, Simón, David e Inês precisam fugir,
levando consigo um sonho de uma vida nova, não escolarizada, na qual a
existência não precise se conformar com uma apatia generalizada das
regras e dos ordenamentos. Uma vida vinculada ao estar-no-mundo, na
mundanidade do corpo e de seus afetos.
Fonte: Ensaios Ababelados
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