PICICA: "Nós, povos indígenas, não vamos permitir que uma minoria da sociedade
brasileira - esses ruralistas e grandes empresários - seja maior do que
nossos territórios. Vamos lutar até o fim" - Sônia Guajajara
CARTA À DILMA ANUNCIA O DESCOBRIMENTO DE BRASÍLIA
José Ribamar Bessa Freire
21/04/2013 - Diário do Amazonas
À Dilma Rousseff, Presidenta da República
Senhora,
Posto
que os caciques e outros dos nossos não encontraram Vossa Excelência no
Palácio do Planalto quando ali foram pessoalmente dar-lhe notícia do
achamento desta terra nova, não deixarei eu de contar-lhe como melhor
puder, ainda que para o bem contar e falar seja eu o pior de todos
indicado. Tome, porém, minha ignorância por boa vontade e creia por
certo que, para aformosear ou afear, não escreverei aqui mais do que
aquilo que me pareceu e o que vi nos telejornais, na mídia e nas redes
sociais.
Senhora,
há cinco séculos, o escrivão da frota Pero Vaz de Caminha, em carta ao
rei de Portugal, D. Manuel, o Venturoso, noticiou que portugueses,
navegando em caravelas, "descobriram" o Brasil em 22 de abril de 1500 e "foram recebidos com muito prazer e festa" pelos habitantes locais, "muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros". O escrivão descreveu como viviam os nativos, sua aparência física e os adornos que portavam.
Cinco séculos depois, autonomeado que fui escrivão dos povos originários, escrevo na primeira pessoa do plural para informar-lhe
que nós, 600 índios de 73 etnias, transportados por ônibus,
desembarcamos na Câmara dos Deputados, em 16 de abril de 2013 e
"descobrimos" Brasília, uma terra em que se mamando, tudo dá.
Não
recebemos, porém, tratamento festivo, embora buscássemos contato
pacífico com a tribo local dos deputados, formada exclusivamente por
caciques que não caçam, não pescam, não plantam, mas comem em excesso.
Glutões, seus hábitos alimentares e sua ociosidade fazem com que
acumulem gordura no abdômen. São gordos, roliços e enxundiosos, com
barriga flácida e proeminente. Apesar do intenso calor, cobrem suas
vergonhas com tecidos quase sempre escuros, usam tira de pano apertada
no pescoço e escondem o chulé dentro de mini-canoa de couro, uma em cada
pé.
Brado retumbante
Eles
acham que tal aparência lhes dá respeitabilidade. Têm a cabeça raspada
até por cima das orelhas. Quem não é careca usa nos cabelos tintura
castanho-avermelhada de acaju ou tinta preta como as penas do jacamim, o
que lhes dá um brilho metálico e, aos nossos olhos, uma aparência
decrépita. Acontece que um deles, Francisco Escórcio Lima (PMDB/MA vixe,
vixe) registrou nossa chegada não como "descobrimento", mas como
"invasão". As imagens da TV Câmara gravaram seu brado retumbante:
- "Os índios estão ali forçando para invadir o plenário. É uma situação em que todo mundo está com medo" - gritava da tribuna, ofegante, Chiquinho Escórcio, pálido, encagaçado, se borrando todo, semeando o pânico.
E
olhe, Senhora, que a situação devia estar mesmo periquitomena, pois
Chiquinho Escórcio, um empresário de 65 anos, ex-PFL e ex-PP (vixe²), é
um parlamentar aguerrido que não foge do pau. Ele está acostumado, no
pequeno expediente, a fazer discursos eloquentes sobre temas de
transcendental importância para os destinos do país, conforme as atas da
Câmara, que registram tudo com palavras desenhadas no papel, já que
aqueles oradores têm o pensamento cheio de esquecimento.
Consultamos
o penúltimo discurso (27/04/2013), quando Chiquinho demonstrou coragem
desassombrada e usou sua convincente oratória para anunciar ao Brasil e
quiçá ao mundo a presença naquele momento, no plenário, da prefeita do
município de Chapadinha (MA), Ducilene Belezinha. Foi um discurso
epistemologicamente inesquecível.
Mas
não ficou aí. Foi muito mais longe. O site da Câmara reproduz discurso
anterior (05/11/2012) no qual, sem medo à represália, Chiquinho
demonstra insatisfação com o desempenho do Vasco da Gama no Campeonato
Brasileiro de Futebol. Ele, que sempre jogou no campo dos louvaminheiros
de qualquer base governista, mostra que é capaz, se preciso for, de uma
postura abertamente oposicionista. Copiamos da página dele no site da
Câmara um breve trecho da sua fala esclarecedora e patriótica:
"O SR. FRANCISCO ESCÓRCIO (PMDB-MA. Sem revisão do orador): - O que está havendo com o
nosso Vasco da Gama, Deputado Onofre? Nós temos que ajeitar isso. Não é
possível! Temos que chamar Roberto Dinamite aqui e perguntar: "Roberto, o
que está acontecendo?" Depois que lhe fizemos aquela homenagem toda, o
Vasco da Gama caiu pelas tabelas. Vamos dar uma ajeitada naquele time,
porque é o time de coração de quase todos nós que somos brasileiros".
Senhora,
juramos que não estamos a inventar, queremos ver nossa mãe mortinha no
inferno se mentimos. Nem sabemos quem é Onofre, nem Ducilene Belezinha
no jogo do bicho. Sabemos que torcedores invejosos do Flamengo são
incapazes de avaliar a relevância de tal discurso, assim como não
dimensionam o valor de outra peça de oratória de Chiquinho em homenagem
ao Dia do Dentista (22/10/2012). A retórica dele mataria de inveja o
padre Antônio Vieira.
Vale
a pena pagar um salário de deputado ao Chiquinho, um puta orador, cujo
verbo inflamado está a serviço das grandes causas. São discursos
históricos que deveriam ser impressos em cartilhas e ensinados nas
escolas. Por isso, Chiquinho está cheio de comendas: medalhas da Câmara
Municipal de Chapadinha, da Ordem dos Timbiras e do Mérito Sarney "for important services rendered to the Brazilian people", conforme anunciou o The Chapadinha Times, que destaca a contribuição por ele dada ao conceito de heroicidade.
Se gritar pega deputado
Quando
nós, índios, entramos no plenário, o discurso de Chiquinho provocou
debandada geral, corre-corre, fuga em massa, como quando os apaches, nos
filmes americanos, atacam a cavalaria. Bastou gritar "pega deputado",
não ficou um, meu irmão! Foi um Deus-nos-acuda, um pega-pra-capar, um barata-voa, que não foi sequer dificultado pela pança untuosa e obscena dos fugitivos. As imagens da TV Câmara correram mundo e nos foram enviadas por uma amiga equatoriana lá de Quito, sugerindo que escrevêssemos esta carta.
Nós,
índios, que descobrimos Brasília, desarmados, portando apenas maracás,
queríamos tão somente solicitar ao presidente da Câmara, Henrique Alves
(PMDB/RN, vixe vixe) a não instalação da comissão que pretende travar,
no Congresso, a demarcação das terras indígenas através da proposta de
emenda constitucional. Temos consciência de que não podemos disputar com
temas de vital importância como a crise do Vasco da Gama ou o desfile
heróico da Ducilene Belezinha.
No
entanto, como não existe nenhum índio deputado, nós fomos lá exercer
democraticamente um direito de pressão. Com um cocar azul, uma das
nossas, Sônia Guajajara, exigiu a revogação da proposta de emenda
constitucional:
-
"Nós, povos indígenas, não vamos permitir que uma minoria da sociedade
brasileira - esses ruralistas e grandes empresários - seja maior do que
nossos territórios. Vamos lutar até o fim" - disse Sônia.
Com
o auxílio de um tradutor, Raoni Metuktire, líder caiapó, soltou o
verbo: "Nunca vou aceitar desmatamento nas terras indígena, nunca vou
aceitar a construção de usina na área indígena, nunca vou aceitar
mineração dentro de nossas terras".
Obtivemos êxito momentâneo: a medida foi suspensa por seis meses. Resta perguntar: de quem fugiam os deputados?
-
"Na correria, alguns parlamentares tinham mais medo de suas
consciências do que dos manifestantes "armados" com penas e maracás" -
escreveu a nossa ex-senadora Marina Silva, que presenciou as "cenas
cômicas e tristes" e a reação à "invasão" indígena. Depois que os
trabalhos foram suspensos, o deputado Alberto Lupion (DEM/PR - vixe²),
agropecuarista e empresário, denunciou à TV Câmara:
- Nunca vi um desrespeito à democracia como vi hoje.
Embora
tenha 61 anos, o deputado Lupion parece não ter visto o golpe militar
de 1964, nem tomado conhecimento das torturas e assassinatos cometidos
durante vinte anos no Brasil. Fundador e presidente da UDR no Paraná, em
1987, condecorado pelas Polícias Militares de vários estados como
Alagoas, Rio de Janeiro e Brasília, Lupion encara como legítimo o lobby
do agronegócio, mas considera "desrespeito à democracia" pressões
pacíficas de índios e trabalhadores rurais. Ignora que - a frase não é
nossa - "todos brasileiros têm sangue índio. Os pobres, nas veias; os
ricos, nas mãos".
Senhora,
posto que a Certidão de Nascimento do Brasil, que foi a carta de
Caminha, termina solicitando a transferência do genro do autor da Ilha
de São Tomé, queremos reafirmar esse lado sarney do caráter nacional.
Assim, comunicamos que um sobrinho nosso conhecido pela alcunha de Pão Molhado trabalha como analista do Seguro Social na Agência da Previdência Social de Maués (AM). O filho dele, de três aninhos, o Biscoitinho Molhado, vive em Manaus, longe do pai, de cuja atenção carece. Peço, portanto, a V. Exa., que desloque o Pão Molhado para Manaus.
E se alonguei essa carta, me perdoe, porque o desejo que tinha de vos dizer tudo, me fez por assim pelo miúdo.
Embora
o Governo Dilma tenha sido implacável com os índios, engavetando
processos de demarcação para agradar a bancada ruralista, beijamos as
mãos de Vossa Excelência na esperança de que elas assinem documentos que
garantam o usufruto de nossas terras como manda a Constituição. Do
contrário, advertimos que já descobrimos Brasília e o Palácio do
Planalto. O referido é verdade e dou fé. Assinado: Taquiprati Vais No
Caminho, autonomeado escrivão dos índios.
P.S. - O link das imagens gravadas pela TV Câmara, enviado do Equador por Gabriela Bernal: http://www.facebook.com/photo.php?v=477768542289401&set=vb.272904466109144&type=2&theater
Fonte: TAQUIPRATI
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