PICICA: "O filme começa
com uma montagem de alguns minutos de imagens que registram situações
reais de violências contra crianças. São imagens de guerras e situações
de exceção, nas quais as crianças sofrem e são massacradas pela loucura
dos adultos. Essa inserção documental, que poderia muito bem ter sido
deixada de lado, serve apenas para reforçar um nexo explicativo claro
para a trama: a revolta infantil não é contra esse ou aquele adulto, mas
sim contra o próprio mundo adulto, no qual é possível que milhares e
milhares de criança morram de fome, de ataques, guerras, doenças, etc.
Enfim, é uma revolta contra um mundo incapaz de olhar para as crianças,
de garantir-lhes um espaço, uma zona de proteção."
O filme espanhol ¿Quién puede matar a un niño? (algo como Quem pode matar uma criança?)
é uma interessante variação do gênero de terror apocalíptico. A trama
começa com a viagem de um casal de turistas, Tom e Evelyn, que pretendem
passar alguns dias descansando numa pequena e tranqüila ilha espanhola.
Tom esteve na ilha durante sua infância e pretende aproveitar a parte
final da gravidez de sua esposa para passar algum tempo sossegado num
lugar que não atrai a agitação comum dos turistas. Porém, algo estranho
está ocorrendo no local. As primeiras evidências são as de corpos de
adultos que apareceram mortos numa localidade vizinha. Ninguém sabe de
onde aqueles corpos saíram. Ainda assim, os dois decidem seguir a viagem
e alugam uma pequena embarcação. Quando chegam ao local, o mistério vai
apenas aumentando. A ilha parece completamente abandonada de todos os
adultos, o casal encontra apenas algumas crianças que os encaram com
desconfiança e nervosismo. É como se todos os adultos tivessem partido,
ou sumido. Diante desse cenário estranho e misterioso, o casal busca
abrigo no único hotel da cidade. Lá também não encontram nenhum adulto.
Deparam apenas com mais sinais desconcertantes: a comida do dia anterior
se encontra abandonada no restaurante do hotel, como se alguém tivesse
fugido com urgência, sem poder arrumar nada. A partir de então, o
mistério revela um cenário catastrófico. Eles encontram primeiro o corpo
de um homem morto, em seguida vêem uma menina espancando um homem
idoso, finalmente descobrem a existência de um número cada vez maior de
mortos, todos adultos, todos violentamente assassinados. Quando
encontram o único adulto vivo, um pescador que vive na ilha, ele explica
que algo aconteceu com as crianças, estas parecem terem sido tomadas
por uma loucura coletiva, ou alguma forma de transe violento e passaram a
atacar todos os adultos. O estado das crianças parece ser contagioso:
quando elas se aproximam das crianças ainda dóceis, estas passam a agir
com a mesma violência. Desconcertados com tal relato inverossímil, como
acreditar que inocentes crianças podem ser tomadas por uma fúria
assassina e tentar matar todos os adultos, o casal tenta
desesperadamente entender o que está acontecendo. Mas mesmo o pescador
que presenciou o massacre parece incapaz de acreditar no que viu. Tanto é
que quando sua filha o chama, dizendo que precisa de ajuda, ele logo
acredita e tem o mesmo destino dos demais habitantes da região, é
assassinado pelas crianças. Nesse sentido, o filme opera com o contraste
entre uma representação da infância como um tempo de inocência e pureza
e a possibilidade mesma das crianças exercerem um gesto de completa (e
violenta) destruição da ordem adulta. O desconcerto de Tom e Evelyn, mas
também dos moradores da ilha, não é provocado apenas pela violência dos
assassinatos que foram cometidos, mas principalmente pelo fato dos
agressores serem apenas crianças. Como a infância pode se revoltar e
tentar destruir o mundo adulto? O sentido apocalíptico do filme nasce
justamente da impossibilidade de compreender tal possibilidade. A
violência infantil implica numa ameaça direta à própria continuidade do
mundo. A loucura das crianças aparece simplesmente como uma espécie de
revolta vingativa contra a ordem mesma que os adultos carregam consigo.
Nesse sentido, o filme utiliza um recurso bem pouco sutil para
explicitar sua tese (o que constitui também o principal problema do
filme, a falta de sutiliza na construção de sua tese). O filme começa
com uma montagem de alguns minutos de imagens que registram situações
reais de violências contra crianças. São imagens de guerras e situações
de exceção, nas quais as crianças sofrem e são massacradas pela loucura
dos adultos. Essa inserção documental, que poderia muito bem ter sido
deixada de lado, serve apenas para reforçar um nexo explicativo claro
para a trama: a revolta infantil não é contra esse ou aquele adulto, mas
sim contra o próprio mundo adulto, no qual é possível que milhares e
milhares de criança morram de fome, de ataques, guerras, doenças, etc.
Enfim, é uma revolta contra um mundo incapaz de olhar para as crianças,
de garantir-lhes um espaço, uma zona de proteção. É por isso que as
crianças querem não apenas destruir fisicamente os adultos, mas
desmoronar o mundo que estes construíram e mantêm. E diante dessa
potência negativa, não existe remédio ou resposta: deixar as crianças
agirem implica na destruição completa, mas detê-las também resultaria no
mesmo. Afinal, são estas que estão encarregadas de garantir a
continuidade mesma do mundo, na medida em que se tornarão adultas
eventualmente. É por isso que o filme ganha interesse. A proposta
apocalíptica de crianças que se levantam contra a sociedade é muito mais
ameaçadora do que, por exemplo, uma horda de zumbis que se levantam
contra os vivos. Estes são elementos essencialmente externos à
sociedade: podem invadi-la, destruí-la, mas em última instância é
possível se proteger deles, mantendo de alguma maneira os resquícios de
ordem necessário para a manutenção do tecido social (em grande medida,
podemos entender os filmes de George Romero como uma reflexão sobre
isso, sobre o que sobra da sociedade diante da ameaça dos mortos). Na
medida em que as crianças são tomadas por uma loucura vingativa, não
resta nenhuma proteção ou possibilidade de manter a estrutura mesma da
sociedade adulta. O mundo se encontra fadado a terminar, ou pelo menos o
mundo que é conhecido e está estabelecido. A revolta infantil se torna,
assim, uma espécie de negativo, ou melhor, de uma desconstrução de uma
tópica central da modernidade, qual seja, a do governo da infância. De
maneira muito simples, é a ideia de que a infância é um momento de
docilidade, na qual nos deparamos com seres que podem ser moldados e
conduzidos de acordo com propósitos definidos e claros. Esse processo de
condução das crianças é o que chamamos de educação e é aquilo que
garante a continuidade do mundo, na medida em que as crianças são
introduzidas numa ordem que lhes é anterior e que deverão abraçar no
futuro. É isso que torna compreensível, por exemplo, uma afirmação como
esta: a “educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o
bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto,
salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda
dos novos e dos jovens”. O amor ao mundo seria a transmissão dessa ordem
existente para o infante, garantindo o movimento de renovação e
perpetuação do mundo. A revolta infantil é a recusa desse movimento e de
sua vontade educativa, desse governo da infância que acompanha nossa
modernidade. Por isso, ela traz um sentido ambivalente, ao mesmo tempo é
um gesto de ruína, de vontade de arruinar esse mundo, mas também traz
consigo uma abertura para a recriação do mundo. Uma recriação infantil
do mundo. A cena final é muito clara, as crianças tomaram controle da
ilha e agora pretendem espalhar sua revolta para o resto do mundo. Ou
como uma delas diz, “brincar com outras crianças”.
Fonte: Ensaios Ababelados
¿Quién puede matar a un niño? de Narciso Ibáñez Serrador