PICICA: "Para não dizer que meu texto é um grande não,
finalizo pontuando o que vejo ser uma postura pública do sistema único
de saúde para com os dependentes químicos: a possibilidade de se
construir serviços de escuta, acolhimento e de seguimento continuados,
com a oferta de períodos breves de internação em hospitais gerais como
uma das etapas negociáveis do tratamento, para os casos mais graves e
refratários às abordagens ambulatoriais já desenvolvidas. Ou seja, nesta
aposta pelo cuidado e pela vida dos outros, não consigo apostar mais
nos procedimentos do que nos sujeitos. Cabe à sociedade compreender que a
dependência química é um problema complexo, uma doença crônica, em que a
internação é só mais uma ferramenta, não a pedra-angular do tratamento.
Ou então, sejamos francos e passemos a acreditar
mais uma vez na força das correntes, agora, não mais apenas
enferrujadas, frias e metálicas, capazes de sufocar os punhos, mas bem
leves, neuroquímicas, a entorpecer nossa visão do cuidado de si e dos
outros."
Uma resposta compulsória ao (des)cuidado: uma crítica às Internações Compulsórias para o tratamento de dependentes químicos em Campinas.
abril 10, 2013 em Destaques por Violeta Campolina
Fabrício
Donizete da Costa – Médico-residente em psiquiatria do Hospital de
Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas (HC-FCM-UNICMAP)
É com uma sensação de desnorteio que me esforço
para expressar de forma organizada e indignada minha resposta frente a
notícia veiculada pelo portal G1 na manhã desta terça-feira, dia 9 de
abril, intitulada “Combate ao crack em Campinas terá internação compulsória para viciados”.
Não me traz espanto defrontar-me com a tonalidade
fúnebre e pandêmica, corriqueira nos meios jornalísticos, quando se
trata da abordagem da temática das drogas, sobretudo da dependência
química.
Não me espanta também a facilidade das conclusões
concretas e fatídicas veiculadas pela notícia, que partem do princípio
de que nada se tem feito com relação a esta demanda em saúde da
população de Campinas.
Não me assusta também a inexistência de
contraposições a esta postura ética e política, reforçadora da visão
belicista de combate às drogas, como se a própria fosse consensual aos
profissionais da área e mesmo que os referenciais da “redução de danos”
não passassem de “letra morta”.
Não me arrebata o habitual ver em letras garrafais
uma postura que francamente age de forma limitada perante a capacidade
de se pensar a complexa rede de determinantes que levam um ser vivo a
utilizar-se de substâncias psicoativas.
Tudo isto já é construído e tende a povoar o
discurso do “mal-estar” vigente em nosso país que agora assola a saúde
pública na busca das soluções milagrosas, que apelido carinhosamente de
soluções-tampão que já lança seus braços à atenção primária e agora
devora a saúde mental.
Contudo, o que me encabula, que faz minhas mãos
tremerem durante a seleção de palavras para redigir estas críticas, é o
fato de se tomar o Programa Estadual de Enfrentamento ao Crack como a
principal política voltada para o cuidado dos dependentes químicos já
criada na face iluminada dos planetas desta galáxia.
Tal reforço solapa anos de resistências neste campo
do cuidado que nunca fora priorizado de forma organizada, haja vista a
desproporcional disposição dos CAPSad (Centros de Atendimento
Psicossocial – Álcool e outras drogas) no montante dos CAPS instalados.
Fica a impressão de que, antes desta política do governo em atuação, os
CAPSad não passavam de meros enfeites na Rede municipal de saúde em
vigência. Tal fato deixa-nos cegos e esconde as já latentes dificuldades
deste serviço, que tradicionalmente tem se digladiado há tempos com as
sutilezas do cuidado de dependentes químicos numa perspectiva de
políticas de saúde subfinanciadas.
É abominável ver um apostador público jogar todas
as suas fichas nas internações. Dirão que sou alarmista, que ignorei,
seletivamente, a parte das ditas iniciativas voltadas à geração de
renda, reinserção social e trabalhista explicitadas com grande riqueza
de detalhes e apontamentos claros de seus desdobramentos na notícia com a
qual dialogo, sobretudo no título da reportagem, já que este é o
PRINCIPAL OBJETIVO! Compreendo e vejo o quão bem-sucedidas foram tais
descrições! Só não posso deixar de realçar diversas anomalias contidas
nestas informações.
Se o interesse fosse realmente o cuidado dos
dependentes químicos em situação de rua, não seria importante reforçar
as iniciativas já vigentes nos diversos CAPSad operantes? Além disso,
não seria salutar dar mais impulso às atividades do Consultório na Rua,
que se enquadra como uma nova via de acessibilidade a esta população
historicamente alijada do acesso à saúde? O que já foi tentado, como
estratégia de saúde, aos dependentes químicos e, mais especificamente,
aos dependentes químicos em situação de rua? É sabida, além da
quantidade destes indivíduos, as rotas que desembocaram na vala comum do
uso de substâncias psicoativas? Afinal, conclui-se: muitas perguntas e
uma resposta surda: internação “pois não tem mais jeito”.
Se o cuidado fosse o mote destes versos entoados
pelos governistas, não se criaria apenas “um cartão recomeço”. Agiria-se
do começo, não invertendo-se os níveis de atenção para o atendimento
dos dependentes químicos da esfera ambulatorial para a
hospitalocêntrica. Não se pensaria em comunidades terapêuticas,
notadamente desligadas dos serviços públicos que passarão a receber
orçamento público. Desistiria-se dos remendos para dar vida a novas
formas de tecer e construir redes a estes usuários. Se a proposta mais
clara desta oferta consiste num reforço incondicional ao cuidado, não se
saltaria à conclusões tão causativas com os dados que levam a crer que
quase 2 de cada 3 moradores de rua teriam problemas com drogas.
Só concordo com uma coisa (só uma) nesta abominável
notícia: o cuidado de um dependente químico não se parece em nada com
uma retirada cirúrgica de um apêndice sob processo inflamatório.
Mas esta concordância me faz enxergar que embora a
dependência química não seja um problema cirúrgico, extirpável com
margens livres e de forma asséptica, é esta imagem que vislumbro quando
se calçam luvas e se extirpam cidadãos já fragilizados e carentes de
todos os serviços públicos (saúde, segurança, educação, emprego,
segurança alimentar…) como se estivessem nas ruas a drenar o pus
cotidiano do descaso histórico de nossos governantes e de nossa
desigualdade social.
Para não dizer que meu texto é um grande não,
finalizo pontuando o que vejo ser uma postura pública do sistema único
de saúde para com os dependentes químicos: a possibilidade de se
construir serviços de escuta, acolhimento e de seguimento continuados,
com a oferta de períodos breves de internação em hospitais gerais como
uma das etapas negociáveis do tratamento, para os casos mais graves e
refratários às abordagens ambulatoriais já desenvolvidas. Ou seja, nesta
aposta pelo cuidado e pela vida dos outros, não consigo apostar mais
nos procedimentos do que nos sujeitos. Cabe à sociedade compreender que a
dependência química é um problema complexo, uma doença crônica, em que a
internação é só mais uma ferramenta, não a pedra-angular do tratamento.
Ou então, sejamos francos e passemos a acreditar
mais uma vez na força das correntes, agora, não mais apenas
enferrujadas, frias e metálicas, capazes de sufocar os punhos, mas bem
leves, neuroquímicas, a entorpecer nossa visão do cuidado de si e dos
outros.
http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2013/04/combate-ao-crack-em-campinas-tera-internacao-compulsoria-para-viciados.html
Fonte: Blog Sáude Brasil
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