PICICA: "Se o domínio
do fato foi forçado às raias da irresponsabilidade pelo STF, o
judiciário paulista, sistematicamente, responde com sua não utilização
contra o ex-governador paulista. Se os policiais em questão cometeram
algum crime, foi o de obedecerem cegamente a uma ordem insana. Sem a
ordem -- e o comando da polícia militar é político e civil desde 1988 --
não seria nem mesmo o caso de puni-los."
Julgamento do Carandiru: Do Domínio do Fato ao Fato do Domínio
André Dahmer, indispensável como sempre |
O julgamento de 26 policiais que participaram do massacre do Carandiru, ocorrido em 1992 no presídio homônimo da capital paulista, terminou com a condenação de 23 deles à pena máxima. Trata-se do julgamento do primeiro bloco de réus, os quais totalizam 84. O governador paulista à época dos fatos, Luiz Antônio Fleury Filho, sequer sentou no banco dos réus, figurando apenas entre o rol de "testemunhas".
O referido
massacre foi o ponto limite do processo de colapso do então maior
presídio do país: tratou-se da resposta sangrenta dada pelas forças de
segurança estaduais à mega-rebelião promovida pelos presos. Na ocasião,
além da superlotação, inúmeras epidemias devoravam a população
carcerária local, inclusive de AIDS. Largados para morrer, os presos se
amotinaram.
Do
morticínio de 111 presos, decorreu uma fabulosa reação entre toda a
população carcerária paulista, o que resultou na fundação do PCC,
poderosa organização para-estatal, que hoje exerce domínio territorial
em quase todos os presídios e territorialidades do estado.
O estado
bandeirante deu mostras, na ocasião, que a prática de atos de exceção
desconstituintes transcendem o binarismo democracia/autoritarismo: em
plena vigência regular das instituições democráticas, praticou-se a mais
brutal atuação das forças de segurança paulistas em tempos. Mais
grandiloquente e pública do que, até mesmo, qualquer uma de suas
controversas ações nos tempos da ditadura militar.
Não é o caso
de alimentar a defesa de uma punição penal de quem que seja como meio
de responder a um problema dessa ordem. No entanto, pela dogmática do
direito penal vigente, a punição dos policiais, por terem matado civis
desarmados em massa -- no cumprimento de ordem manifestamente ilegal
-- não é equivocada -- a premissa talvez sim. Causa curiosidade, no
entanto, como o governador passou incólume nesse processo todo.
Ironicamente,
depois do julgamento do Mensalão, no qual alguns réus daquele caso
foram condenados pelo STF sob os auspícios da "teoria do domínio do
fato" -- ou de uma aplicação particular sua, sequer avalizada por um de
seus principais idealizadores -- vemos que, conforme a figura política
posta em questão, o domínio do fato é outro.
O ex-ministro Bresser-Pereira indagou há pouco:
será que a teoria do domínio do fato passaria a ser aplicada pelo
judiciário brasileiro, a partir do julgamento do mensalão, também contra
dirigentes de corporações envolvidas em casos de corrupção?
Dificilmente. Se nem Fleury o foi, mesmo como ele admitindo sua "responsabilidade política" pelo massacre, quem dirá CEO's de organizações envolvidas, por exemplo, em meros crimes financeiros.
E a nossa questão aqui não é defender a universalidade da punição penal, mas de apontar como, na realidade concreta, todo punitivismo é essencialmente seletivista, salvo no caso de sadismo suicidário -- isto é, numa situação cômica como a da charge que ilustra este post.
Se o domínio
do fato foi forçado às raias da irresponsabilidade pelo STF, o
judiciário paulista, sistematicamente, responde com sua não utilização
contra o ex-governador paulista. Se os policiais em questão cometeram
algum crime, foi o de obedecerem cegamente a uma ordem insana. Sem a
ordem -- e o comando da polícia militar é político e civil desde 1988 --
não seria nem mesmo o caso de puni-los.
Para além de
um debate abstrato sobre aplicação e cabimento da teoria do domínio do
fato, a concretude das relações materiais nos empurra para outra
direção: nunca há domínio do fato, mas o puro, simples e pungente fato do domínio -- seja de um governador, procurador/promotor de justiça, juiz ou soberano de um momento.
Fonte: O Descurvo
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