abril 22, 2013

"Julgamento do Carandiru: Do Domínio do Fato ao Fato do Domínio", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Se o domínio do fato foi forçado às raias da irresponsabilidade pelo STF, o judiciário paulista, sistematicamente, responde com sua não utilização contra o ex-governador paulista. Se os policiais em questão cometeram algum crime, foi o de obedecerem cegamente a uma ordem insana. Sem a ordem -- e o comando da polícia militar é político e civil desde 1988 -- não seria nem mesmo o caso de puni-los.

Julgamento do Carandiru: Do Domínio do Fato ao Fato do Domínio

André Dahmer, indispensável como sempre
O julgamento de 26 policiais que participaram do massacre do Carandiru, ocorrido em 1992 no presídio homônimo da capital paulista, terminou com a condenação de 23 deles à pena máxima. Trata-se do julgamento do primeiro bloco de réus, os quais totalizam 84. O governador paulista à época dos fatos, Luiz Antônio Fleury Filho, sequer sentou no banco dos réus, figurando apenas entre o rol de "testemunhas". 

O referido massacre foi o ponto limite do processo de colapso do então maior presídio do país: tratou-se da resposta sangrenta dada pelas forças de segurança estaduais à mega-rebelião promovida pelos presos. Na ocasião, além da superlotação, inúmeras epidemias devoravam a população carcerária local, inclusive de AIDS. Largados para morrer, os presos se amotinaram.

Do morticínio de 111 presos, decorreu uma fabulosa reação entre toda a população carcerária paulista, o que resultou na fundação do PCC, poderosa organização para-estatal, que hoje exerce domínio territorial em quase todos os presídios e territorialidades do estado.

O estado bandeirante deu mostras, na ocasião, que a prática de atos de exceção desconstituintes transcendem o binarismo democracia/autoritarismo: em plena vigência regular das instituições democráticas, praticou-se a mais brutal atuação das forças de segurança paulistas em tempos. Mais grandiloquente e pública do que, até mesmo, qualquer uma de suas controversas ações nos tempos da ditadura militar.

Não é o caso de alimentar a defesa de uma punição penal de quem que seja como meio de responder a um problema dessa ordem. No entanto, pela dogmática do direito penal vigente, a punição dos policiais, por terem matado civis desarmados em massa -- no cumprimento de ordem manifestamente ilegal -- não é equivocada -- a premissa talvez sim. Causa curiosidade, no entanto, como o governador passou incólume nesse processo todo.

Ironicamente, depois do julgamento do Mensalão, no qual alguns réus daquele caso foram condenados pelo STF sob os auspícios da "teoria do domínio do fato" -- ou de uma aplicação particular sua, sequer avalizada por um de seus principais idealizadores -- vemos que, conforme a figura política posta em questão, o domínio do fato é outro.

O ex-ministro Bresser-Pereira indagou há pouco: será que a teoria do domínio do fato passaria a ser aplicada pelo judiciário brasileiro, a partir do julgamento do mensalão, também contra dirigentes de corporações envolvidas em casos de corrupção? Dificilmente. Se nem Fleury o foi, mesmo como ele admitindo sua "responsabilidade política" pelo massacre, quem dirá CEO's de organizações envolvidas, por exemplo, em meros crimes financeiros.

E a nossa questão aqui não é defender a universalidade da punição penal, mas de apontar como, na realidade concreta, todo punitivismo é essencialmente seletivista, salvo no caso de sadismo suicidário -- isto é, numa situação cômica como a da charge que ilustra este post. 

Se o domínio do fato foi forçado às raias da irresponsabilidade pelo STF, o judiciário paulista, sistematicamente, responde com sua não utilização contra o ex-governador paulista. Se os policiais em questão cometeram algum crime, foi o de obedecerem cegamente a uma ordem insana. Sem a ordem -- e o comando da polícia militar é político e civil desde 1988 -- não seria nem mesmo o caso de puni-los.

Para além de um debate abstrato sobre aplicação e cabimento da teoria do domínio do fato, a concretude das relações materiais nos empurra para outra direção: nunca há domínio do fato, mas o puro, simples e pungente fato do domínio -- seja de um governador, procurador/promotor de justiça, juiz ou soberano de um momento. 
Fonte: O Descurvo

Nenhum comentário: