setembro 29, 2012

"Para criminalistas, STF aderiu ao direito penal máximo", por Rafael Baliardo e Rodrigo Haidar

PICICA: "Ainda não se sabe o quanto a releitura das regras penais afetará, doravante, a forma de aplicar Justiça no país. Mas a partir do momento em que a tipicidade de um delito deixa de ser rigorosamente exigida para a condenação, o STF fixa um novo paradigma regulatório. Mais: ao admitir o ato de ofício presumido e adotar o “domínio do fato” como responsabilidade objetiva, os ministros teriam se aproximado, perigosamente do direito penal de autor. Ou seja: admitir-se que alguém possa ser punido pelo que é, e não pelo que fez." 

Nova Doutrina

Para criminalistas, STF aderiu ao direito penal máximo


O Supremo Tribunal Federal mudou para julgar o mensalão ou o mensalão mudou o Supremo? Os ministros da corte negam, mas os advogados criminalistas não hesitam em afirmar: o tribunal mudou seus paradigmas para condenar os réus da Ação Penal 470, o processo do mensalão. Levados por irresistível corrente condenatória, afirmam os advogados, os ministros optaram por um retrocesso em que se atropelaram princípios constitucionais construídos ao longo dos últimos anos.

Para o procurador de Justiça Lenio Streck, em um primeiro momento, é possível reconhecer razão aos advogados que entendem haver um retrocesso em relação a posições consolidadas pela jurisprudência do STF, na medida em que há um endurecimento por parte do Tribunal no julgamento de determinadas condutas. Todavia, lembra o jurista que novos tempos podem exigir novas respostas por parte do Judiciário.

A grande questão que se coloca, então, é saber se esse endurecimento se mostra necessário em face do tipo de criminalidade que é objeto de julgamento. Nesse caso, a alteração de rota na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deve ser analisada no contexto da resposta que o Judiciário deve dar à sociedade. Parece estar havendo uma accountabillity do STF em face de uma certa demanda contra a impunidade. Se isso é bom ou ruim, é uma coisa que teremos que avaliar. Para o jurista "o grande problema é que a doutrina tem sido pouco ouvida. Talvez, por isso, esteja sendo pega de surpresa". Em arremate, indaga: "Não está na hora de a doutrina se tornar protagonista?".

Ainda não se sabe o quanto a releitura das regras penais afetará, doravante, a forma de aplicar Justiça no país. Mas a partir do momento em que a tipicidade de um delito deixa de ser rigorosamente exigida para a condenação, o STF fixa um novo paradigma regulatório. Mais: ao admitir o ato de ofício presumido e adotar o “domínio do fato” como responsabilidade objetiva, os ministros teriam se aproximado, perigosamente do direito penal de autor. Ou seja: admitir-se que alguém possa ser punido pelo que é, e não pelo que fez.

Críticas igualmente eloquentes são feitas à redefinição do que seja a lavagem de dinheiro — que para o ministro Joaquim Barbosa parece prescindir de crime antecedente. Ou, ainda, que qualquer uso que se dê a verbas de origem ilícita configure lavagem. Os mais pessimistas, em seu desapontamento com a doutrina que se insinua, anunciam o fim do garantismo, o rebaixamento do direito de defesa e o avanço da noção da presunção de culpa em vez de inocência.

Tristeza cívica

O ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil nacional e da seccional paulista José Roberto Batochio lamenta o movimento. "É tomado de tristeza cívica que assisto se perderem valores tão caros às liberdades no vórtice desse movimento punitivo sem limites que a tudo arrasta."

Um criminalista ouvido pela reportagem da revista Consultor Jurídico, mas que preferiu não ser identificado, afirma que o problema legal trazido pelo julgamento do mensalão é "objetivamente a questão do acavalamento de delitos". O maior problema, diz, não está nem dentro da Ação Penal 470 , mas no futuro. "No curso dessa ação penal, é observada uma sobreposição de crimes em relação a um mesmíssimo fato. O grande dilema e herança negativa do julgamento talvez venha a ser a ausência de definição dos elementos nucleares em cada um dos crimes. Onde acaba a corrupção e onde começa a lavagem?", questiona. Para o criminalista, não se nega a possibilidade de que os crimes tenham sido cometidos simultaneamente, "mas é necessário mostrar como eles se distinguem".

O advogado afirmou também que, com a sobreposição de imputações, é colocada em dúvida a própria "identidade" do crime de lavagem de dinheiro. "Quem se corrompeu e recebeu dinheiro tem que ir para a cadeia porque é corrupto, e não por ter lavado dinheiro. O ladrão que rouba um banco, leva a quantia para casa e a dissipa não está lavando dinheiro", disse o criminalista.

Lavagem culposa

Para o advogado, a forma como os ministros passaram a interpretar as imputações por lavagem pode dar margem para se acusar de lavagem de dinheiro qualquer crime em que valores ilícitos não sejam declarados ao fisco. "Quando não se distinguem elementos nucleares de cada ação humana, corre-se o risco de entender que aquilo que deveria ser apenas um crime de sonegação fiscal, praticado no âmbito da empresa, pode se tornar facilmente uma espécie de 'três em um'. Isto é, com a ampliação interpretativa de organizações criminosas, sendo a sonegação fiscal – o caixa dois – o antecedente de lavagem, é muito provável que tenhamos todas as três imputações presentes: sonegação, formação de quadrilha e lavagem", observou.

Essa "nova interpretação", no entendimento do advogado Luciano Feldens, professor de Direito Penal da PUC-RS e advogado de Duda Mendonça, forçaria um acusado de corrupção a declarar o dinheiro ilícito."Sob uma perspectiva teórica e transcendente a qualquer caso específico, há uma questão fundamental que não pode passar despercebida no debate sobre o delito de lavagem de capitais: "gastar" dinheiro sujo não equilave a "lavar" dinheiro. A lavagem, enquanto delito, exige, por imposição do tipo penal, um processo de ocultação e dissimulação da origem do dinheiro ilicitamente havido, em ordem não apenas a recolocá-lo no sistema econômico-financeiro, mas a recolocá-lo em tal ambiente com nítida aparência de haver sido licitamente auferido. Do contrário — ou seja, se compreendermos a simples utilização (gasto) do dinheiro como conduta abraçada pelo tipo penal —, só não haveria o delito de lavagem de dinheiro quando o agente, em paradoxal atitude, declarasse ao Estado o dinheiro oriundo do crime antecedente (corrupção, sonegação, roubo, sequestro, etc)".

Ele avalia também que a eventual influência da ampliação do entendimento do que é crime de lavagem pode se estender à fase de investigações. "Fica muito fácil, pelo menos no inquérito policial, afirmar que se está investigando sonegação fiscal e também quadrilha, porque o corpo diretivo da empresa é composto por mais de três pessoas, e também lavagem, porque a quantia foi ocultada", aponta.
Outros criminalistas ouvidos pela ConJur concordam com a avaliação de mudança de interpretação do STF na distinção do dolo entre imputações distintas nos crimes de corrupção. "O próprio ministro Ricardo Lewandowski [revisor do julgamento] afirmou que não concebia dolo eventual no crime de lavagem de dinheiro, que é um crime doloso, como já havia reiterado o ministro Cezar Peluso em seu derradeiro voto ao se despedir da corte”, disse um deles. Um outro criminalista observa que, deste modo, os ministros “estão criando a figura da lavagem culposa ao aplicar a teoria da cegueira deliberada sem que se observe limites ou restrições”.

Os advogados ouvidos pela reportagem consideram ainda que o STF estaria indo além de decidir que o fato de ocultar a origem do dinheiro caracteriza por si crime de lavagem. “Ao não depositar a quantia em conta de sua titularidade, o réu já estaria procedendo com a ocultação. Isto é, a ausência de consignação que indique que o dinheiro pertence ao réu, além de mostrar que o valor é ilícito, constitui também lavagem”, aponta um dos advogados. “Em outras palavras, a confissão está se tornando obrigatória”.
Como resumiu o criminalista Celso Vilardi, "a lavagem firmada no STF é lavagem jabuticaba: só existe no Brasil". "A era Pertence, prestigiada mesmo depois de sua aposentadoria pelos inúmeros precedentes incentivados pelo ministro Gilmar Mendes, acabou", lamentou.

Segundo Marcelo Leonardo, advogado do publicitário Marcos Valério e professor de Direito Processual Penal da UFMG, "é lamentável o STF abrir mão das garantias constitucionais do devido processo legal e do contraditório para se submeter ao "Direito Penal da mídia", que não se preocupa com os princípios da reserva legal e da taxatividade tão relevantes para o Direito Penal e o garantismo, conquistas do estado democrático de direito".

Inovação da matéria de fato

O exemplo da condenação do ex-vice-presidente do Banco Rural Vinícius Samarane talvez seja o mais ilustrativo da questão do risco de se incorrer em responsabilidade penal objetiva em relação a alguns dos acusados na numerosa relação de réus da Ação Penal 470. Citada pelos advogados durante a fase de sustentação oral e repudiada em Plenário pelos ministros durante a atual fase do julgamento, a matéria voltou a ser trazida à discussão pelo ministro Ricardo Lewandowski, ao votar pela absolvição de alguns dos réus ligados ao Partido Popular (PP) e ao antigo Partido Liberal (PL).

Antes, no julgamento do item anterior, apenas Lewandowski e o ministro Marco Aurélio votaram pela absolvição de Vinícius Samarane. Citaram, justamente, o argumento do risco de se incorrer em responsabilidade penal objetiva. Samarane era diretor estatutário do Banco Rural na época dos acontecimentos descritos pela denúncia e, fora os depoimentos do ex-superintendente do banco Carlos Godinho, que falou que pareceres técnicos em desfavor à concessão dos empréstimos "morriam" na direção estatutária, não há provas diretas de que o réu tenha participado da concessão de empréstimos fraudulentos.

Por dispor, em tese, do chamado “domínio funcional do fato”, decorrente da função que exercia, cabia a Samarane, na visão dos ministros que votaram por sua condenação, ter conhecimento das ilegalidades e até mesmo impedi-las. Na perspectiva da teoria do domínio do fato, cabe avaliar se os crimes ocorreriam independente da presença do réu. Se a resposta for positiva, o réu poderia ser considerado inocente. É o caso, para alguns ministros, da gerente financeira da SMP&B Propaganda Geiza Dias, absolvida por maioria.

"É a teoria do domínio funcional do fato levado além do extremo. Algo que até os mais radicais funcionalistas ficariam supresos com seu alcance nessas condenações lavradas na essência do domínio do fato", disse outro criminalista ouvido pela ConJur na condição de anonimato. "Samarane foi condenado por não ter evitado o fato quando, na condição de diretor, devia e podia tê-lo feito. Mas a denúncia, em nenhum momento, atribui ao réu a conduta de comportamento omissivo", observa. "Isso representaria uma expressiva e inconcebível inovação da matéria de fato. Seria necessário apontar a responsabilidade penal por omissão."

Em artigo publicado na revista Consultor Jurídico, Lenio Streck já havia alertado sobre o problema de se transformar a teoria do domínio do fato em "ponderação", ou "em uma espécie de 'argumento de proporcionalidade ou de razoabilidade', como se fosse uma cláusula aberta, volátil, dúctil".
Para Streck, "há algo de novo no ar" com o julgamento do mensalão. "A parcela da doutrina 'mais advocatícia' do Direito, por assim dizer, está sofrendo um revés", observa. "Não significa que o STF esteja necessariamente inovando, mas o que ocorre é que, ao mudar uma postura, a corte pega a comunidade de surpresa. Os advogados parecem que confiavam em um ‘padrão’ de apreciação e não contaram com um conjunto de circunstâncias que circundaram e que circundam esse case."

Contrapartida desvinculada

O criminalista e professor Luiz Flavio Gomes avalia ainda que a visibilidade do julgamento e a pressão da opinião pública contribuem para que a Ação Penal 470 assuma caráter "heterodoxo"."Teses antigas, consagradas na jurisprudência, estão sendo abandonadas." Pondera que "isso decorre, em grande parte, da pressão midiática. Mas não siginifica que as condenações, até aqui, sejam injustas, que tudo o que o tribunal decidiu até este ponto seja absurdo. Porém, naqueles momentos de zona cinzenta, em que se pode ir para um lado ou outro, o Supremo passou a ir pela pressão pública, acolhendo teses que antes não aceitava".

LFG, como é conhecido, acredita que ainda é cedo para concluir, e que só depois do julgamento da parte política da AP 470 é que será possível fazê-lo.

Ato de ofício

Na questão específica do ato de ofício, observadores do julgamento ouvidos pela ConJur disseram que o entendimento de que cabe dispensar a comprovação do ato de ofício não é uma inovação em si. O tribunal, no julgamento do mensalão, na opinião dos especialistas, dá margem para a interpretação de que não é necessário sequer apontar a vinculação causal entre a vantagem indevida e o ato de ofício. "É uma distorção e transfiguração que se imprime ao tipo penal de corrupção ao dispensar mesmo a simples menção ao ato de ofício", disse um deles.

"Não se trata simplesmente de exigir a comprovação da prática concreta do ato de ofício na esfera de atribuições do agente corrompido. No entanto, o Supremo tem acelerado tanto esse julgamento, a ponto de afirmarem que é presincidível, desnecessário, que a denúncia mencione o objeto da barganha da função pública, que motivou a aceitação de uma vantagem indevida", avalia o criminalista. "A vinculação causal, ainda que potencial, entre a vantagem indevida e um ato de ofício é a essência do espírito da norma incriminadora. O que foi dito com todas as letras no Caso Collor, está sendo desdito no atual julgamento", opina.

Mas, na visão do advogado, isso não quer dizer que o Supremo criou uma nova interpretação doutrinária. A tendência, diz, é que o próprio STF rejeite decisões de instâncias inferiores que sigam a linha hoje defendida no julgamento do mensalão. "O próprio Supremo tende a rejeitar, amanhã ou depois, a doutrina que criou para esse caso. Será a confissão sublime e formal que se tratou de um julgamento de exceção. Porém, muitos dos atuais ministros não estarão mais na corte, será um novo tribunal , como uma nova cara e feição."

O advogado Sérgio Renault, ex-secretário da Reforma do Judiciário, trata a mesma dúvida com uma outra ótica: “A questão mais importante a se verificar após o julgamento da Ação Penal 470 é se o novo entendimento do STF se constituirá em nova jurisprudência que será seguida daí por diante ou é um caso pontual, isolado. Se for um caso isolado e se constituir numa exceção, vejo a situação como mais preocupante pois não se deve conceber que o julgamento da mais alta corte do país se dê neste contexto. Se o caso tornar-se uma referência para julgamentos futuros menos mal. Assim, por mais que discordemos, estaremos diante de uma evolução da jurisprudência ou, se quiserem, de um retrocesso mas de qualquer forma de uma processo normal de construção de uma nova jurisprudência”.

Para o advogado Gustavo Teixeira, membro da comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados Brasileiros, é preciso fazer uma distinção entre os ministros do Supremo e o tribunal como um todo. "O viés eminentemente teórico dos processos normalmente julgados pela corte em grau de recurso se contrapõe à análise fática que esse julgamento originário exige e com isso as divergências entre ministros ficam mais evidentes. A unanimidade no reconhecimento de teses é muito mais fácil de ser alcançada do que o consenso na admissão de fatos", explica.

"Casos difíceis geram péssimas jurisprudências", pontua Teixeira, torcendo para que os ministros tenham em mente a peculiaridade do presente processo. "A equivocada interpretação de que não há necessidade de crime antecedente para se configurar a lavagem de capitais certamente não irá prevalecer como corrente dominante, sob pena de sepultarmos princípios caros ao nosso Direito Penal."

Nas palavras do advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira "o Poder Judiciário deverá manter íntegro o princípio da responsabilidade penal subjetiva, pois, do contrário, estará instalada a insegurança jurídica, que alcançará a sociedade, cuja expectativa, hoje, é sempre pela culpa e não pela inocência, esquecendo-se que qualquer de seus membros poderá sentar-se no banco dos réus e que não se faz Justiça apenas quando se condena, mas também quando se absolve".

Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 27 de setembro de 2012

Fonte: Consultor Jurídico

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