PICICA: "[...] se de fato sua obra inventou ou “modificou a infância e a juventude de muitos brasileiros”,
podemos indagar se nesse percurso escritural, Lobato não teria deixado
vazar, por assim dizer, suas vergonhosas posições racistas, inventando
ou colaborando, por sua vez, para moldar o caráter de um adulto
reprodutor desse “preconceito civilizado”, amistoso, que, segundo
muitos, seria vantajoso relativamente à rudeza da ideologia de um apartheid
emblematizado, por exemplo, na história dos conflitos étnicos
sulafricano e norte-americano. Críticos disfêmicos argumentam que como
contraveneno ou compensação ao racismo ingerido inadvertidamente “crianças
e jovens que lerem Lobato terão um contágio de outra natureza: se
tornarão adultos mais imaginativos com um interesse infinito por
folclore e mitologia”. Se o crítico, com maldosa ingenuidade, aventa
essa possibilidade por que não levar em consideração a possibilidade
dessa mesma obra fazer com que crianças e jovens se tornem cidadãos
anódinos com relação ao racismo velado e covarde de nossa formação? A
obra de arte, concordando com a lógica do comentarista, graças a um
engenhoso mecanismo de filtros, só nos concederia, então, benefícios?
Quem garante que o texto promoverá tal reversão de sentido? Ah, o
sentido! Fico com Jacques Derrida, que, expropriando Benjamin, escreve: “Mas
o que ‘diz’ uma obra literária (Dichtung)? O que ela comunica? Muito
pouco a quem a compreende. O que ela tem de essencial não é comunicação,
não é enunciação.” Para além dessa observação, que pode ser útil
tanto para um lado como para o outro, o que importa é como a obra será
lida, e quem estabelece os novos parâmetros de leitura."
Dá licença, meu branco!
Irene
preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o
riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da
morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir
licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez
Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa
anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de
branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No
além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa
de tolerância ad eternum, e sem margens, feita por um santo
branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a
derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta
mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de
sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter
assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica
ressabiado. Na passagem desta para melhor não temos à mão uma borracha
que apague os arquivos do vivido. Quem sabe a ideia lhe pareça
intolerável. Ao fim e ao cabo, continua negra, ou seja, naïf,
burrinha; as luzes do seu espírito não são intensas a ponto de isentá-la
da pecha de “faísca atrasada”. Irene ainda persiste, para a frustração
do estafeta do juízo final, como uma negra da alma negra.
Não
por acaso os personagens negros de Monteiro Lobato estão confinados
dentro de lógica idêntica. Pretos e pretas solícitos, velhos e mansos,
ou, no extremo, diabólicos e traiçoeiros, como o Saci, cachimbo no beiço
e barretinho vermelho, compósito de Vulcano e Ossanha, rapazola
deformado, sobre uma perna só e/ou coxo. Condição que talvez lhe faculte
um pouco da tolerância do senhor, da capatazia social para com suas
oscilações de ânimo advindas do duplo “estigma” físico. Seu caráter
fantástico de espírito malévolo e respondão é relevado pelo déficit que
ostenta relativamente à “boa aparência” dos senhores. Já Tia Nastácia,
irmã siamesa de Irene, está fadada à humilhação doméstica, no livro As caçadas de Pedrinho
é comparada a uma “macaca de carvão”. Só para avivar a humana
emotividade dos devotos de Monteiro Lobato, registro aqui a existência
do substantivo anastácio, de
onde deriva o nome da personagem, e cuja acepção indica os significados
de “simples e ingênuo: tolo, palerma”. Também o Tio Barnabé, esse
natural pretendente à mão da Tia Nastácia, recebe um nome-condenação: barnabé, substantivo masculino que designa “funcionário público, especialmente o de baixo nível hierárquico”.
Essa espécie de recall a
que vem sendo submetida contemporaneamente a obra de Monteiro Lobato
tem como motivação suas ideias racistas e que se revelam abertamente em
seus livros, e esse recall teve há pouco outro desdobramento. A revista Bravo!, cujos leitores são mimados por sua publicidade como gente cult, cool e pop,
e cujo cinismo irônico e meritocrático de sua editoria está sempre a
postos para tachar de bom-mocismo a crítica – vá lá! – mais à esquerda,
pois essa revista de viés elitizante, há pouco publicou e repudiou o
conteúdo de cartas onde Monteiro Lobato defende o racismo eugênico. Mas o
assunto de capa parece ter causado um mal-estar no diretor de redação.
Tanto é que escreve uma “carta do editor” tentando esclarecer – como
assim? – os seus inteligentes leitores que o logotipo da revista,
estampado no alto da capa, e que de hábito soa como uma interjeição de
aplauso, não aplaudia em nenhuma instância a frase escrita por Monteiro
Lobato, que de maneira atípica, na edição em causa, substitui a
tradicional imagem de uma celebridade do meio artístico que por razões
diversas é homenageada com esse espaço nobre. A frase diz: “País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Ku Klux Klan, é país perdido”.
Há algo de cômico no fato, já que o editor dispara uma espécie de “não
erramos” visando a colocar a publicação ao lado de uma maioria que está
longe de ser cult ou cool.
Um movimento kafkiano, um calafrio culposo arrepia esse acanhado
editorial que tenta inutilmente forjar acepções menos efusivas ao
logotipo de mão única que, por várias razões, se limita com a opção
“curtir” da comunidade dos facefriends. Isto é, a negatividade crítica precisa dar explicações, precisa inventar sua relevância perante os fast thinkers, mas de modo a não corar a pudicícia da mulher de César. Quem repudia mais alto? Agora que a porta foi arrombada, compartilhar o bônus e mostrar indignação é moleza. A “interjeição de aplauso”, afinal, sempre fora uma contrafação.
“Sinceramente não sei o que este tipo de reportagem pode trazer de benefício”,
alguns leitores-seguidores, devotos da figura de Lobato expressam assim
sua perplexidade. Afinal de contas, segundo esses depoimentos
emocionados, suas histórias ajudaram a salvar uns e outros de uma
infância miseravelmente infeliz e solitária; este, aprendeu a ser
perspicaz; aquela, tornou-se estudiosa e a ter esperança.
Todavia, se de fato sua obra inventou ou “modificou a infância e a juventude de muitos brasileiros”,
podemos indagar se nesse percurso escritural, Lobato não teria deixado
vazar, por assim dizer, suas vergonhosas posições racistas, inventando
ou colaborando, por sua vez, para moldar o caráter de um adulto
reprodutor desse “preconceito civilizado”, amistoso, que, segundo
muitos, seria vantajoso relativamente à rudeza da ideologia de um apartheid
emblematizado, por exemplo, na história dos conflitos étnicos
sulafricano e norte-americano. Críticos disfêmicos argumentam que como
contraveneno ou compensação ao racismo ingerido inadvertidamente “crianças
e jovens que lerem Lobato terão um contágio de outra natureza: se
tornarão adultos mais imaginativos com um interesse infinito por
folclore e mitologia”. Se o crítico, com maldosa ingenuidade, aventa
essa possibilidade por que não levar em consideração a possibilidade
dessa mesma obra fazer com que crianças e jovens se tornem cidadãos
anódinos com relação ao racismo velado e covarde de nossa formação? A
obra de arte, concordando com a lógica do comentarista, graças a um
engenhoso mecanismo de filtros, só nos concederia, então, benefícios?
Quem garante que o texto promoverá tal reversão de sentido? Ah, o
sentido! Fico com Jacques Derrida, que, expropriando Benjamin, escreve: “Mas
o que ‘diz’ uma obra literária (Dichtung)? O que ela comunica? Muito
pouco a quem a compreende. O que ela tem de essencial não é comunicação,
não é enunciação.” Para além dessa observação, que pode ser útil
tanto para um lado como para o outro, o que importa é como a obra será
lida, e quem estabelece os novos parâmetros de leitura.
Volto
à ideia-feita do “preconceito civilizado” de que o texto de Lobato
seria paradigmático, e de que em comparação a outras formas mais rudes
de ideologia segregacionista, a que ele esposa seria menos deletéria
para o ânimo da “nossa juventude”. Entretanto, a questão não é escolher
entre duas, aquela alternativa que se nos afigure menos ruim, mas, sim,
debater de uma vez por todas, com franqueza e para além dos limites do
anedotário, esse tema de fundo da formação brasileira, cuja
dramaticidade fica desfocada graças ao estatuto da cordialidade de que
nos servimos na tentativa de não nos tornarmos o que de fato somos.
Outro ponto diz respeito ao suposto verismo documental do autor, pois de acordo com essa visada “não há nenhuma passagem em Lobato que informe um jovem com uma mensagem racista de natureza diferente do mundo que a cerca”. Tudo bem, o racismo não está tão-só na
prosa de Lobato, seu nascedouro não se dá aí, mas sim no tecido mesmo
das relações socio-afetivas do brasileiro imerso no pesadelo da
história, isto é, a arte de Monteiro Lobato “denunciaria” sem esforço
essa conformação ao preconceito naturalizado a que o senso comum e o
autor não escapam. Pelo contrário, o autor do Sítio do Picapau Amarelo
inclusive o reforça. Para essa leitura leniente, temos a chapa: “Até
onde se sabe, vivemos no Brasil, não é mesmo?”. Sim, sim, então é normal
que de tal modo se passem as coisas; que concordemos com esse Brasil
retrógrado apenas transliterado desinteressadamente para o núcleo da
obra de Monteiro Lobato. Lavação de mãos brancas.
Pedrinho e Narizinho, por sua vez, são a versão edulcorada do preconceito naturalizado no interior de um ethos dos
“panos quentes”, que é típico de um país onde a mestiçagem é fruto do
estupro escravista, e que, a um só tempo, se ufana e se envergonha de
tal desenho étnico; o menino e a menina sempre em férias (com os quais
todos se identificam) se encaixam na versão “tesouro da juventude” do
filho do senhor de engenho em cuja famosa ilustração para o clássico Casa-Grande & Senzala
figura montado num moleque negro o qual, na “brincadeira”, serve como
besta de carga. Essa invariante romanesca do sinhozinho perverso montado
no negrinho, que também fundamenta a visão de mundo do peralta Brás
Cubas, atravessa a linha de fronteira entre o vivido e o imaginado. No
capítulo XI, “O menino é o pai do homem”, de Memórias póstumas de Brás Cubas,
Machado de Assis plasma a tópica do nhonhô “menino diabo” e seu
comportamento de mando. Brás Cubas rememora suas façanhas do idílio
infante herdadas ao contexto familiar da escravidão: “(...) Prudêncio,
um moleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no
chão, recebia um cordel nos queixos à guisa de freio, eu trepava-lhe ao
dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro
lado, e ele obedecia – mas obedecia sem dizer palavra ou, quando muito,
um ‘ai, nhonhô!’, ao que eu retorquia: ‘Cala a boca, besta!’ – (...)”.
Esse Prudêncio ubíquo reaparece em diversos registros. No filme Joanna Francesa (1973,
direção de Cacá Diegues), ele será o robusto negro Gismundo (Eliezer
Gomes), não mais escravo, e que conquista uma pequena ascensão
tornando-se agregado, mas que permanece a besta de carga de sempre, pois
na cena final cabe-lhe carregar na cacunda, no lombo, a dona de
prostíbulo Joanna (Jeanne Moreau) que abandona seu negócio em São Paulo e
vai para Alagoas, pois se apaixona por um cliente, um decadente senhor
de engenho. A história se passa nos anos 30.
De
outra parte nas memórias do pintor Iberê Camargo, naquilo que lhe tocou
viver, seja como complexo, seja como desejo recalcado, o brasão dos
Cubas imprime sua marca. O guri da campanha, feito um personagem de um
sonho borgiano, se depara maltratando o meio-irmão “de cor”. Destaco um
breve trecho do texto “Ai, minhas feridas!” (Gaveta dos guardados, 2009), onde o pintor rememora um episódio da manhã de sua infância: “ –
Ai, minhas feridas! – gritava o negrinho Naná, a pular num pé só, como o
Saci, e segurando a canela com as duas mãos. Eu, guri estouvado, o
havia machucado, brincando de guerra. (...) Eu corria atrás dele e
procurava reconduzi-lo ao campo de batalha. Prometia não machucar mais.
Naná não se deixava convencer. Era birrento. Emburrava. Empacava, pior
que mula. Cansado de rogar, de agradar para que voltasse às boas, perdia
a paciência. Aí, então, passava a maltratá-lo. Dava-lhe empurrões,
socos e o escorraçava a pedradas”. Pobre Iberê Camargo, que teve de
partilhar sua mãe-preta aparentemente sem nome civil. Note-se, em mais
esse fragmento das memórias do pintor, o patético do seu drama: “Das minhas raras alegrias, uma me vem à mente: criança, aguardo ansioso a chegada do trem que traz a Bua”.
A mãe noturna, mãe da hora-extra, mãe de leite do menino branco. Talvez
por ciúme, o sinhozinho Iberê maltratava o moleque, pois esse, sim,
deveria ser o filho de sangue da ama de leite, e não ele, sugador de
empréstimo. Juliana Burn, a Bua, sua ama de leite cujo nome e sobrenome
só nos é revelado em uma parca nota de rodapé. Esse ser que a custo é
enquadrado nas fotografias das histórias privadas legadas à posteridade.
O continuísmo simbólico do universo do Sítio do Picapau Amarelo,
seu sucesso reeditado há muitas gerações, vai a par da perpetuação do
preconceito disfêmico, doce, macunaímico, que não ofende o jeito de
corpo do Brasil. Preconceito que se resolve em anedotário. E a anedota
mais torpe a respeito é a seguinte. Ninguém é racista ou preconceituoso,
mas todos conhecem e identificam pessoas de sua relação, parentes
inclusive, que o são. Corolário: cada brasileiro se apresenta então como
uma ilha de tolerância étnica cercada por um mar encapelado de reaças
eugênicos, nostálgicos de um tempo onde as coisas estavam no seu lugar;
onde o negro estava em seu lugar.
A
literatura de Monteiro Lobato no quesito “representação do negro” não
é, entretanto, um caso isolado dentro das contradições que envolvem uma
tradição de representação do outro dentro da literatura. Com efeito, trata-se de um absurdo, mas em nossa sociedade o negro ainda é o outro. Adaptando a boutade
de Duchamp ao tema em questão podemos dizer que de ordinário quem paga a
conta é o negro. As imposturas que acompanham inadvertidamente as “boas
intenções” de Lobato são verificáveis — e similares àquelas encontradas
— também em outros textos conhecidos e elogiados por todos nós. Cito
alguns exemplos: os poemas negros de Urucungo
de Raul Bopp; “Irene no céu” de Manuel Bandeira (já referido no início
desse texto); “Essa Negra Fulô” de Jorge de Lima, etc. Tais obras,
segundo o poeta Oliveira Silveira (1941-2009) são poemas que atendem a
uma temática “negrista”, isto é, experimentos eventuais de linguagem no
percurso textual desses autores que, a rigor, não passam de forasteiros
simpatizantes-antipatizantes do “assunto”. Em outras palavras: brancos
escrevendo sobre negros com vistas à ampliação do repertório e do seu
discurso de poder.
Nessas
obras esteticamente bem-sucedidas, de homens cultivados num safári
através da selva áspera e forte, subjaz um “problema do negro” que à
força de tanta reiteração (ardis de séculos e simbologias duvidosas) nos
faz ratificar sua existência: aprendemos a temer infantilmente a
África-tipo, feérica, selvagem e bela, bárbara e canibal — estupro de
donzelas brancas enfeitiçadas por Mumbo-Jumbo (nonsense) ou Pai João.
E sequer suspeitamos de que nossos irretorquíveis autores, graças ao
seu engenho, acabaram inventando um “problema” na tentativa de fazer um
outro invisível aos olhos de todos. Ou seja, o que sempre tivemos e
ainda temos, mesmo, deixando de lado superciliosos eufemismos, é um
imenso “problema do branco”.
O
problema do branco é para o Brasil mais dramático do que a questão das
saúvas que o sarcasmo macunaímico colocou na ordem do dia. Monteiro
Lobato, esse branco paradigmático e vertical (seja lá que fantasia
imperial isso suporte), que pretende inventar a infância, a economia e a
pureza étnica brasileiras, se sente acuado pela bodarrada que,
provavelmente, e como acontece com todos aqui, lhe informa o ser.
Faço referência à “Bodarrada”, o conhecido poema do livro Trovas Burlescas
(1859) onde, segundo Haroldo de Campos, Luís Gama “arrasa com a
prosápia dos nobres, dos brancos”. Mas, ao contrário de Lobato (que não
se põe em relação com o outro),
o poeta, graças a uma consciência luciferina, também se vê implicado na
arenga com que desfaz os poderosos, pois em troca e na mesma moeda
baixa, eles hão de chamá-lo “tarelo,/ Bode, negro, Mongibelo;/ Porém - prossegue Gama - eu
que não me abalo,/ Vou tangendo o meu badalo/ (...) / Se negro sou, ou
sou bode/ Pouco importa. O que isto pode?/ Bodes há de toda casta,/
(...) / Bodes negros, bodes brancos...”.
Luís Gama é um poeta cuja linhagem remonta a Gregório de Matos e a
François Villon, representantes do “duro” em contraste com o “suave” na
arte da poesia. Mas, o difícil é apontar essa dureza e a impertinência
do riso sarcástico contra si mesmo. Felizmente, quanto a este quesito,
Luís Gama também não deve nada aos seus parceiros e precursores, pois
ele, a plenos pulmões, desconta e canta: “Aqui, nesta boa terra/ Marram todos, tudo berra/ (...) / Em todos há meus parentes/ (...) / Folgue e brinque a bodaria;/ Cesse pois a matinada,/ Porque tudo é bodarrada”.
O
sistema literário não quer que esqueçamos de que Lobato nos legou um
bem inestimável: uma literatura infantil de altíssimo nível, e “as eventuais alusões racistas a personagens como a Tia Nastácia não tiram a prazer da leitura...”.
Não tiram de quem, cara pálida? Talvez só não tirem o prazer da leitura
àquele que jamais se dispôs a imaginar como deve ser passar “um dia de
negro” no Brasil. Ora, a expressão “alusões racistas” trata-se de uma
contradição entre termos. Chamar Tia Nastácia de “macaca de carvão” se
não é um insulto racista, o que mais então seria?
A pertinência da obra de Lobato estaria assegurada, segundo alguns analistas que fazem sua apologia, graças ao fato de que ela “carrega os conflitos de seu tempo, os nós sociais do contexto e da circunstância com que foi escrita”, assim, sua obra arrastaria o presente de volta ao passado “potencializando o futuro”. Não consigo relevar o
triunfalismo dessa leitura. Aliás, não vejo como – a contrapelo dos que
consideram Lobato como um dos escritores mais talentosos de sua geração
–, não vejo como esse escritor mediano, no máximo um beletrista do
entretenimento, jeca-sentimental, exalando por todos os poros seu
preconceito contra o negro e a condição mestiça brasileira (leiam
trechos de suas cartas publicadas na revista supracitada), pode
“desvelar” ao presente a possibilidade de um futuro marcado pelo
aprofundamento dos nossos dramáticos processos culturais.
Para
os exegetas desse Lobato condenado a ser um escritor potencialmente
transgressivo, a revelia de seu asqueroso racismo, o preconceito, quando
identificado em sua literatura, se reverte em algo positivo.
Entretanto, não se trata de ser positivo ou negativo, pois se estivermos
diante de literatura de nível, esse preconceito, não obstante deva ser
criticado, será secundário. Tratar-se-á de um conteúdo não essencial, de
acordo com Walter Benjamin. Neste sentido a obra de Lobato fica nos
devendo algo, porque a ela não interessam problemas do objeto, afinal o
autor é prémodernista, e por isso mesmo jamais entendeu que a grande
conquista da literatura da virada século 19 para o século 20 foi a sua
autonomia ficcional e estética. Por não ser capaz de perceber a
relevância dos problemas do objeto como o interesse principal tanto da
arte, como da literatura, é que Lobato, a partir de critérios menos
clássicos do que nazistas, diagnosticou sintomas de paranóia e
mistificação na conhecida exposição individual de 1917, onde Anita
Malfatti apresenta suas obras pictóricas inspiradas nos movimentos
estéticos da vanguarda europeia.
Mas
ainda há aqueles que o defendem dizendo que pelo menos a leitura dessas
passagens “controversas” gera “conflitos e questionamentos” ao
contrário do que pretende a literatura politicamente correta de hoje,
que aposta em algo que simplesmente seja palatável operando uma
tolerância indiscriminada em torno do seu raio de motivação. Mas o ponto
é que a literatura de Lobato, por si mesma, não pretende gerar
“conflitos e questionamentos” acerca, por exemplo, dos problemas do
racismo e do preconceito, nós é que, hoje, e a custa de muito eforço,
conquistamos a opção de lê-la desse modo. A rigor, sua literatura é um
espaço mantenedor das estruturas conservadoras, ou melhor, um lugar onde
a desumanização e a subalternidade do negro mais do que preservadas são
elogiadas. Lugar de nostalgia e de saudade de um mundo idealizado onde o
sinhozinho branco faz travessuras e liberta o imaginário em seu sítio
encantado.
Lobato
escreve e inventa um tipo de obra que é “palatável”, sim, mas apenas
para os defensores da meritocracia de fachada, para os retranqueiros da
branquitude ameaçada em seus privilégios, pois seu mundo mitológico e
folclórico é o mundo perdido do menino branco que se vinga no filho da
mucama batendo nele, já que o moleque (eterno negrinho do pastoreio com a
boca cheia de formigas), esse, sim, saiu das entranhas dela, e ele,
nhozinho de calças curtas, é um parasita cuja mãe se negou a amamentar
impondo o fardo à negra mais próxima. O Lobato criançola ama e odeia o
mundo impuro situado além das cercas de suas férias de verão onde essa
mãe, cujos seios ele babujou com seu afeto mais íntimo, é considerada,
com todo carinho, como uma macaca de carvão.
Fonte: Poesia-pau
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