outubro 09, 2014

"Em Flávio de Carvalho, arte ligada à vida", por Rui Moreira Leite

PICICA: "Criador múltiplo, estudioso da Psicanálise e Antropologia, ele enriqueceu Modernismo com eventos de rua, encontros com tribos nativas, intervenções midiáticas, cultura popular, ciência e rituais como Carnaval"

Em Flávio de Carvalho, arte ligada à vida


Estudo de Flávio para a "Experiência nº 3"
Estudo de Flávio para a “Experiência #3″

Criador múltiplo, estudioso da Psicanálise e Antropologia, ele enriqueceu Modernismo com eventos de rua, encontros com tribos nativas, intervenções midiáticas, cultura popular, ciência e rituais como Carnaval

Por Rui Moreira Leite, na seção especial Oswald 60


Este texto foi publicado originalmente na revista
Leonardo Reviews [aqui]. A partir da versão em inglês, elaborada por Izabel Murat Burbridge e Eduardo Kac, foi novamente traduzido para o português por Anna Carolina Iunes. 

Observamos que o presente artigo dialoga intensamente com um outro do mesmo autor, publicado em Outras Palavras [aqui], dentro da série Oswald 60.


Este artigo tem como função apresentar o trabalho do moderno artista brasileiro Flávio de Carvalho (1899-1973), reinterpretando-o a partir de um ponto de vista contemporâneo. Assim temos, no início de sua carreira como arquiteto, de 1927 a 1929, quando defende a imprensa como um fórum de discussão de projetos, e entra em uma competição oficial; em seguida, três instâncias subsequentes, as quais, sob o comando de sua pesquisa, executa projetos que favorecem a sua experimentação pessoal na criação de objetos de arte. Em sua Experiência No. 2, Carvalho confronta os peregrinos da procissão de Corpus Christi tendo como objetivo testar reações. Dessa maneira, veste uma provocativa vestimenta masculina de verão, nas ruas do centro de São Paulo (1956). Além disso, junta-se a uma expedição destinada a fazer um primeiro contato com nativos indígenas brasileiros de tribos do alto do Rio Negro (1958). Em todas essas instâncias, os eventos se tornaram independentes de sua origem investigativa. Consciente da mídia como espaço de divulgação de ações públicas, o artista solicita uma extensiva e garantida cobertura da imprensa para suas criações. De fato, quase uma década antes do aparecimento de vídeos de arte, a exibição de Carvalho em sua indumentária de verão excêntrica teve cobertura ao vivo na televisão. Um entendimento próprio desses aspectos do trabalho do artista requer uma descrição preliminar de sua carreira e do contexto em que esta funcionava. i

A tendência Modernista no Brasil, cujas primeiras manifestações datam da segunda metade da década de 10, afirma-se durante os anos 20. Esse período combativo inicial, que começa em São Paulo com a Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922, termina com o Movimento Antropofágico, em 1928, idealizado por Oswald de Andrade (1890-1954) e Raul Bopp (1898-1984). Estes incorporam a cultura europeia ao cenário brasileiro (fazendo uso, então, do termo “antropofagia”, sinônimo de canibalismo) dentro de um âmbito em especial, a mitologia e tradição indígena.

Após obter um diploma de engenheiro civil, em 1922, pela Universidade de Durham, em Newcastle upon Tyne, Inglaterra, onde também cursou a escola de artes, Flávio de Carvalho retomou ao Brasil na secunda metade do mesmo ano. Em São Paulo, onde se instala, Carvalho permanece inicialmente separado do grupo de artistas e escritores modernistas da cidade. Somente no ano de 1928, quando começa sua carreira como arquiteto com um projeto de design do Palácio do Governo, estreita suas relações com o círculo dos modernistas. Carvalho ingressa no Movimento Antropofágico, em 1928, quando entra na competição internacional de design do Memorial Farol de Colombo, na República Dominicana. O design do artista é combinado com seu estilo futurístico de prédios monumentais rodeados de grandes esculturas iluminadas e decorado em seus interiores com inspiração pré-cultura e civilização colombianas. Carvalho compareceu ao IV Congresso Pan-Americano de Arquitetos, realizado no Rio, em 1930, representando a delegação do Movimento Antropofágico. No evento, manteve o título da conferência como “A Cidade do Homem Nu”, na qual propôs a Utopia urbana: a cidade se transforma em um imenso lar onde cada autoridade privilegiada, nomeada como um centro de pesquisa, seria caracterizada por diretrizes individuais e de vida comunitária. O título da conferência endossou a idéia de indivíduos se libertando de tabus impostos pelo Cristianismo, que era um dos dogmas da Antropofagia.


A arte de Flávio de Carvalho leva ao seu reconhecimento como pintor, com um tom expressionista, quase que exclusivamente de retratos e nus artísticos. Além da contribuição ao Movimento Modernista brasileiro, Flávio de Carvalho destaca-se, sobretudo na década de 30, como o mais famoso produtor cultural em São Paulo. Foi secretário do Clube dos Artistas Modernos, organizando recitais, leituras e animadas exibições de debates, mantidos até 1933. No final deste ano, ele anuncia a renovação da sua fase de atuação com a performance de seu Teatro da Experiência. Finalmente, como organizador e colaborador de May Salon em 1938 e 1939, esteve entre os primeiros a mostrar obras de artistas contemporâneos europeus e norte-americanos no Brasil.

Em 1938, a visão arquitetônica de Flávio de Carvalho foi realizada pela primeira e última vez: um grupo de 17 casas construídas em uma área residencial de classe média em São Paulo e na casa de sua família na Fazenda da Capuava, chácara perto de Valinhos, também no estado de São Paulo. Seu design de casas urbanas combinadas com penetrantes interiores volumosos com sua própria versão de expressionismo – em duas casas, a decoração fez suas fachadas parecerem faces humanas. Na chácara, o salão central, de formato trapezoidal e o teto de mais de 7 metros trazem à mente o monumental estilo das décadas anteriores. Na casa, contudo, a decoração interior e a iluminação desempenham um papel fundamental, criando uma atmosfera única. A arte cinética pioneira de Abraham Palatnik traz a memória da noite que passou na fazenda em 1951 – enquanto acontecia a primeira Bienal de São Paulo – junto com o crítico de arte Mario Pedrosa (1900-1981) e Flávio Carvalho. Na sala de jantar, a iluminação sobre o tampo de cristal da mesa lançava sombras nas faces dos convidados, deixando seus pratos na escuridão: uma verdadeira “festa diabólica”, nas palavras de Palatnikii. No salão central, aparatos espirravam água na cobertura de alumínio da lareira, produzindo uma nuvem de fumaça que era colorida por luzes especiais. Para o teto, Carvalho desenvolveu uma enorme superfície de alumínio, colorido com lâmpadas que deveriam deslizar por debaixo da clarabóia, permitindo ver a luz do dia ou as estrelas da noite.

Como consequência da crise econômica de 1929, a reestruturação do governo brasileiro trazida pela Revolução de 1930 abre espaço para a participação de políticos dissidentes. No campo da cultura, os intelectuais de São Paulo introduziram uma série de projetos de reforma e reorganização, incluindo a fundação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, e, no ano seguinte, a criação do departamento de Cultura da administração da cidade de São Paulo. Durante essa década, quando questões sociais e políticas substituíram a pesquisa formal que marcou os anos 20, Flávio de Carvalho permanece no centro das atividades no papel de organizador. No entanto, seu trabalho foi contra a tendência predominante no Brasil, que ganhou maior engajamento social. Do mesmo modo, em 1950, quando várias tendências abstracionistas chegaram ao seu ápice, o trabalho de Carvalho manteve-se numa linha individual fundada em seus inquéritos pessoais de antropologia e psicanálise.

No começo de 1940, Carvalho publicou uma série de artigos em jornais de São Paulo manifestando sua visão pessoal e seus interesses. Porém suas criações não eram restritas à escrita. Assim, a sua investigação artística, dentro do reino das convenções da moda, levou-o a lançar a controversa roupa masculina de verão que usou no centro da cidade, e seu interesse por antropologia fez com que se engajasse numa expedição para estabelecer contato com povos indígenas na Amazônia.

Arquitetura de mídia

Flávio de Carvalho começou sua carreira profissional no Brasil em 1922, quando foi trabalhar no setor de desenho estrutural de uma empresa de engenharia paulista. Naqueles dias, as ideias que informavam o Modernismo na literatura e artes plásticas ainda não tinham influenciado a arquitetura. Quando da exposição dos projetos para o Palácio do Governo de São Paulo, em janeiro de 1928, contudo, a situação começou a mudar. A primeira casa de estilo moderno em São Paulo, desenhada pelo russo Gregori Warchavchik (1896-1971), foi então construída. Warchavchik e seu colega descendente de italianos, Rino Levi (1901-1965), publicaram textos que defendiam o novo estilo.

Flávio de Carvalho usou a competição oficial para apresentar à imprensa sua interpretação pessoal do movimento Modernista em seu projeto. Várias características, tanto no projeto como em sua apresentação, tinham a qualidade de um manifesto: Carvalho concebeu o Palácio como uma fortaleza de concreto reforçado, equipado com pistas aéreas, abrigo nuclear, armamento defensivo e poderosos holofotes. Embora sua proposta única demandasse explicações mais detalhadas, Carvalho não tinha condições de oferecer nenhuma elucidação direta, porque tinha colocado seu projeto sob pseudônimo. Explicar significaria expor a real identidade do projeto. Assim, na medida em que somente parte da descrição do projeto foi publicada, ele apresentou esclarecimentos, atribuindo-os a um engenheiro fictício. O seu projeto figurou na primeira página do jornal Diário da Noiteiii, acompanhado de um esboço reproduzindo a noite vista do Palácio, com grandiosos holofotes (Fig. 1b) e um mural de descrições propostas para os halls do prédio.

Outra competição de projetos na qual o arquiteto apresenta o seu trabalho, sempre sob o pseudônimo “Efficácia”, compreende a embaixada da Argentina no Rio de Janeiro, em março de 1928; a Universidade de Minas Gerais em Belo Horizonte, em novembro de 1928; e a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em fevereiro de 1929. Todos os seus projetos possuíam detalhes construtivos únicos em prédios monumentais. Em que pese o júri ter excluído seu projeto da Embaixada da Argentina, Flávio de Carvalho fez uma ilustração da visão de frente e do lado de seus projetos, publicado em jornal carioca. No entanto, ele não garantiu espaço para discutir o projeto. Para seu projeto da Universidade de Minas Gerais, uma ilustração mostrando as visões das partes da frente e do lado de seu desenho arquitetônico foi publicada em O Cruzeiro sob o mesmo pseudônimo. Claramente, Carvalho fez com que a mídia, ativamente, publicasse e disseminasse suas ideias de arquitetura.iv

O design arquitetônico de Flávio de Carvalho bate de frente com as tendências conservadoras existentes nos próprios concursos públicos. Daí o caráter de manifesto do seu estilo e a tentativa do arquiteto de manter todos os projetos sob o pseudônimo comum. No caso do projeto do Palácio do Governo, a ideia de uma fortaleza equipada com pesados armamentos salienta a excentricidade e ilustra a tenacidade e senso de humor do artista.

A ideia da imprensa como o principal espaço para publicar os projetos de Carvalho estava expressa nas placas em que estava desenhado o projeto, as quais tinham sempre um fundo preto para facilitar o processo de reprodução. No projeto do Palácio do Governo, o artista produziu uma segunda placa mostrando a fachada do prédio – uma visão noturna com holofotes – já que o original da fachada não era adequado para reprodução em jornal (i.e. não tinha fundo preto).

Experiência #2 Arte como experiência e psicologia de massa

Em 1931, Flávio de Carvalho cuidava da Experiência #2, na qual desafiou os participantes religiosos de uma procissão. Este evento foi apenas o primeiro de uma série de trabalhos experimentais afirmados em sua nova proposta de criação, que revelava a tensão entre o individual e a sociedade.

Tudo isso aconteceu em uma manhã ensolarada de junho. Enquanto acompanhava a procissão de Corpus Christi que se movia ao longo das ruas do centro de São Paulo, Flávio concebeu a ideia de conduzir uma investigação no campo da psicologia de massa. Voltou para casa, colou um boné verde, que trouxe de seus tempos de faculdade na Inglaterra, e voltou para a procissão, a qual proibia cabeças cobertas para homens. Imediatamente, um de seus pares o alertou sobre sua provocação deliberada. Sem se abalar, Flávio de Carvalho adentrou o cortejo, porém movendo-se no sentido contrário ao fluxo da procissão, aproximou-se de mulheres jovens sem chamar atenção. Logo no início, tímidas vozes de protestos, junto a gritos de objeção e avisos para ele descobrir a cabeça. Gradualmente, tais reações aumentaram insistentemente, a ponto de um menino tirar o boné de sua cabeça. Na mesma hora, contudo, o menino devolveu o boné a Carvalho, desafiando-o a colocá-lo de volta. Assim que o artista iniciou um desafio verbal com as pessoas a sua volta, um clamor de linchamento começou. Nesse momento, o artista foi forçado a sair rapidamente da cena, levado por atendentes do evento. Finalmente, ele pegou um atalho pelo telhado de uma loja de laticínios, da qual foi resgatado pela polícia, sob insultos de passantes. Flávio de Carvalho foi levado à delegacia mais próxima para um interrogatório. Foi liberado depois de explicar quem era e em que consistia o seu experimento de psicologia de massav.

Mais tarde, em 1931, Carvalho publicou um livro, também chamado de Experiência #2, contendo diversos episódios e suas interpretações dos resultados baseados em concepções extraídas de textos de Freud e do etnógrafo James Frazer. De acordo com o artista, sua atitude desafiadora o transformou diante dos olhos dos fiéis em uma extensão do Santo Deus Pai. Portanto, apenas seu assassinato poderia apaziguar o totemismo da multidão, assim como os jovens de grupos primitivos, cujos instintos sexuais eram reprimidos, matavam seus pais. A melhor parte de seu livro são as páginas em que o autor oferece uma descrição viva de seu experimento, ilustrada com seus desenhos originais. Embora todos os jornais de São Paulo tenham relatado a experiência de Flávio, eles detiveram-se no depoimento dado pelo artista na delegacia de polícia.

Experiência #3 O lançamento da roupa de verão

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Em 1956, Carvalho conduziu sua Experiência #3, a qual consistia em andar pelas ruas de São Paulo vestido em uma provocativa roupa de verão que ele mesmo desenhou. O conjunto, apresentado como uma roupa masculina, consistia em um shorts-saia, uma blusa e sandálias para serem usadas ou não com meias de rede. Carvalho, que começou a estudar a evolução do vestuário no começo dos anos 30, apresentou o conceito inovador de design, pela primeira vez, em uma entrevista com o jornalista e crítico de arte Luis Martins (1907-1982), em 1952vi. Ele disse que era preciso levar em conta as necessidades do corpo que precisava ser ventilado para prevenir o suor em excesso. Sua intenção era promover a rápida evaporação do suor de sua pele e, consequentemente, reduzir a sensação de calorvii. Os estudos do artista sobre a evolução do vestuário, que ele lançou na mídia no mesmo ano, foi um fator decisivo na sua concepção de roupa de verãoviii.

Finalmente, Flávio anunciou o lançamento de uma quarta vestimenta, produzida por Maria Ferreira, diretora do estúdio de costura do Ballet do IV Centenário.

Apesar do anúncio feito no final de julho de 1956, foi somente em 18 de outubro que Flávio de Carvalho lançou seu novo design nas ruas do centro da cidade de São Paulo, onde seu estúdio era localizado. Na ocasião, este grande homem de mais de 1m80cm de altura, imperturbável, desfilava com o novo estilo e impressionava os transeuntes. Ele discutiu as vantagens no controle da transpiração oferecidas por sua nova roupa e as qualidades específicas de fábrica. Para facilitar o trabalho dos jornalistas que o seguiam em sua caminhada, Flávio de Carvalho visitou uma redação do complexo midiático Diário Associados, onde colocou sobre uma mesa, para exibição, as fotografias de seus projetos inovadores. Solicitado por repórteres, voltou para a rua e consegiu até mesmo entrar num cinema, obviamente violando o código de vestimenta do local, que requeria terno e gravata para homensix. As notícias sobre a roupa de verão do artista saíram em diversos jornais brasileiros, assim como em duas revistas semanais de distribuição nacional da época, O Cruzeiro e Manchete. Em seguida, antes do caso desaparecer da mídia, Flávio de Carvalho foi para Roma, onde mostrou suas pinturas.

Após retornar ao Brasil no início de 1957, Carvalho surgiu num talk show vespertino apresentado pelo ator Paulo Autranx. Para o programa, de transmissão ao vivo do estúdio de Carvalhoxi, o artista usou sua roupa de verão. Na ocasião, comentou o progresso de sua pesquisa de tal forma que mostrava seu senso de humor único. Em 1958, o artista desenhou e produziu um cartão impresso com esboços e diagramas de sua roupa. O cartão foi desenhado para disseminar o conceito do vestuário, que ele observou não ter sido inteiramente compreendido. Diante da ampla repercussão de seus esforços, em 1963 Carvalho revelou a intenção de escrever um livro compilando suas análises de provocação e reação. “Um dia pretendo escrever um livro sobre a minha experiência com moda, incluindo o impacto emocional causado na nação brasileira, apoiado nos recortes de jornais que tenho; pretendo classificá-los e escrever um livro chamado Experiência #3xii.

Experiência #4: A Expedição amazônica

Em 1958, Flávio de Carvalho juntou-se a uma expedição à Amazônia, que pretendia estabelecer o primeiro contato com nativos brasileiros do Alto do Rio Negro. Ao referir-se a esse evento, a mídia o chamava de Experiência #4. O interesse do artista aumentou com a ideia de uma futura investigação sobre a evolução humana e social, conforme noticiado pela mídia. Mais à frente, Carvalho ficou obsessivo com a idéia de desvendar as origens da humanidade no continente americano, como indicou em diversos textosxiii. De fato, ele já havia participado de uma primeira expedição organizada, em 1952, para as filmagens de O Grande Desconhecido, do produtor Mário Civelli (1923-1995). Na ocasião, a equipe esteve em contato próximo com a tribo Karajá, na Ilha do Bananal. Quando Flávio de Carvalho, nu, juntou-se à dança tribal, ele reclamou para um membro da expedição, o explorador Francisco Brasileiro (1906-1989), sobre outros membros da expedição que entraram na dança todos vestidos: “Você acha que eu vim de tão longe assim para dançar com cristãos?”xiv.

Na época do lançamento da roupa de verão, Flávio de Carvalho anunciou que a expedição avançava bem. A primeira referência feita à jornada foi em entrevista que o artista concedeu depois de retornar de uma viagem ao Norte e Nordeste do Brasil. Durante sua visita a Manaus, Carvalho juntou-se ao Serviço de Proteção aos Índios, o SPI, para tornar-se membro da primeira expedição de contato com a tribo Xiriana. A jornada foi marcada para maio de 1958. Porém, sucessivos atrasos e a época de chuvas acabaram por adiar a partida do grupo. Nesse meio tempo, Flávio de Carvalho publicou seus planos de filmagem na floresta. Esta produção audiovisual seria um diário de viagem documentado e, depois, usado para um longa-metragem sobre a saga de uma menina branca sequestrada por índios e consagrada por eles como deusa durante 20 anos, antes de retornar à civilizaçãoxv. Depois do anúncio, o artista manteve-se ocupado por atividades como selecionar atriz para o papel principal e arrecadar equipamentos para as filmagens e expedição.

Em seguida à ampla cobertura midiática dos preparativos – baseada em informações fornecidas pelo próprio artista –, finalmente a equipe partiu. Durante a fase inicial, Flávio de Carvalho contribuiu com relatórios que eram publicados em jornais de São Paulo. O evento acabou chamando tanta atenção que os jornais chegaram ao ponto de noticiar que havia absoluta falta de notícias sobre o grupo. A jornada teve fim depois de obter sucesso em manter contato com os Xiriana. Contudo, o artista retornou sem ter feito todas as filmagens previstasxvi [16].

Os relatórios de Flávio de Carvalho e as filmagens de Raymond Frajmund (1927 –) permitiram a reconstrução da história do contato com as tribos Waimiri-Atroari, Paquidare e Xiriana. Entre outras ações, o artista manejou filmar os Waimiri-Atroari no rio Camanau e os Paquidare no rio Demini, onde acontece o ritual de cremação. No entanto, o mais interessante relatório é sobre a tribo Xiriana, situada perto da fonte do rio Orinoco, na fronteira entre Brasil e Venezuela. Depois de vários dias de viagem a pé, os membros da expedição viram -se de repente cercados por 200 a 300 índios. Algumas horas depois, os nativos deixaram o grupo entrar em sua tribo e deram a eles comida. A expedição também participou de um ritual que começava com os guerreiros cheirando um pó marrom. Quanto mais eles cheiravam, mais agitados e sem maneiras ficavam. Finalmente eles se reuniram em pares, como relatado na descrição feita por Carvalhoxvii.

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Conclusão: “A arte prevê os feitos futuros dos seres sociais”

Em última análise, as intervenções de Flávio de Carvalho revelam, por um lado, a promoção da experiência vivida à elaboração da arte e, por outro, a consciência de que a mídia destaca-se como arena de performances públicas e intervenções sociais. Daí o interesse do artista em comunicar seu trabalho através da mídia de massa. O esforço de Carvalho para manter um espaço seguro em que se discutissem seus projetos arquitetônicos foi seguido de novas reportagens sobre sua Experiência #2. O artista fez uma avaliação sobre a importância da mídia apenas quando iniciou seus cuidadosos preparativos para a indumentária de verão e, mais tarde , nos sucessivos estágios da expedição amazônica. Seu interesse na expedição foi instigado pela possibilidade de fazer contato com os Xiriana, e o filme concebido como forma de garantir publicidade ao evento. Esta dedução foi feita com base no fato de Carvalho não ter produzido nem um rascunho do roteiro do filme, o que na prática evitava a conexão do real (um diário filmado da expedição) e o imaginário (apresentação da figura de uma deusa branca no filme de longa-metragem).

A matéria do trabalho de Flávio de Carvalho é muito rica e merece ser estudada com maior profundidade. Vários de seus projetos indicam possibilidades que seriam perseguidas somente mais tarde por outros artistas. Seus pouco conhecidos selos postais, criados em 1932, estão entre os primeiros exemplos da arte postal. Em 1951, ele criou um vestuário cinético-luminoso que sua amiga Zilda Vergueiro usou ao fantasiar-se de pérola no Carnaval da Bola, organizado pelo Clube dos Artistas e Amigos das Artes em São Paulo. Como parte do aparato, um interruptor manual fazia piscar luzes salpicadas por toda a roupa. É também digna de nota a série de trabalhos criados com tinta fluorescente em 1970, e exibida em São Paulo e Santos no mesmo ano.

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A identificação de aspectos de seus trabalhos com as artes cênicas dos anos 60 solicitam a reinterpretação da Experiência #2 (sua confrontação com os fieis da procissão religiosa) e da sua Experiência #3 (o lançamento de seu vestuário) como um prenúncio de happenings e performances. Atualmente, a contribuição de Flávio de Carvalho na arte com base em mídia eletrônica pode ser vista na sua primeira série de projetos arquitetônicos (discutidos e apresentados em espaço jornalístico) e em suas experiências (caracterizadas pela importância atribuída ao evento em si mesmo) com a mídia impressa e televisiva. De relevância particular, a ênfase na experiência e no envolvimento em situações interativas nas quais negociava o fluxo de eventos em tempo real.

Os experimentos de Flávio de Carvalho eram nutridos por seu interesse em psicanálise e etnologia, dado que estas ciências representam, de acordo com Foucault “um princípio perpétuo de inquietação, dúvida e interrogação”xviii em relação ao conhecimento adquirido. Elas são o que o artista chamou de “uma fonte da turbulência mental”, que Flávio de Carvalho reconheceu como sendo crucial à criação artística. Para ele, a renovação artística, que supostamente desenvolve-se em ciclos, depende de como o artista apreende as forças criativas primordiais. Como ele afirmou (em entrevista intitulada “A arte prevê os feitos futuros dos seres sociais”), “Temos de recuperar nossa plasticidade primitiva para compor um mundo novo”.xix

Carvalho rejeitou manifestações artísticas que permaneceram estagnadas em suas formas repetitivas e estereotipadas. Encontrou soluções em eventos de rua, encontros com tribos nativas, intervenções na mídia, cultura popular, ciência, rituais não-religiosos como o Carnaval e muitas outras abordagens não-convencionais. A trajetória de Carvalho revela uma vida inteira comprometida com a integração entre a arte e a vida.

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Reconhecimentos

Editor do projeto Eduardo Kac agradece a Carlos Fadon e Niura Ribeiro por sua assistência em produzir as fotos para este artigo.

Referências e Notas

i Para artista e seu trabalho, ver artigo “Flávio de Carvalho: Modernismo e a Vanguarda em São Paulo, 1927-1939”, A Vanguarda Literária no Brasi, uma bibliografia e antologia crítica editada por K. David Jackson [Frankfurt, Germany, and Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 1998] pp. 309–322). O catálogo do trabalho de Flávio de Carvalho e a compreensiva bibliografia pode ser encontrada no segundo volume da minha tese de Ph.D, Flávio de Carvalho entre a experiencia e a experimentação (São Paulo: Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 1994). Para a biografia do artista com biliografia extensive, ver J. Toledo, Flávio de Carvalho, o comedor de emoções (São Paulo: Fundação Bienal, 1983), o catálogo de uma exibição restrospectiva feita sob minha curadoria e de Walter Zanini, com o apoio dos textos de Newton Freitas, Sérgio Millet, Nicanor Miranda e Sangrirardi Jr.

ii Abraham Palatnik, declaração ao autor, 10 de junho de 1997.

iii O Futuro Palácio do Governo Paulista”, Diário da Noite, 30 January 1928; “O Novo Palácio do Governo e o Projecto Modernista”, Diário da Noite, São Paulo, 4 February 1928; “Ainda o Atordoante Projecto ‘Efficácia’”, Diário da Noite, São Paulo, 6 February 1928.

iv Nota do editor: a implacável busca de carvalho por um espaço na mídia para promulgar no mundo a força de suas idéias deve, da perspectiva da arte midiática contemporânea, ser diferenciada das coberturas jornalísticas usuais. A chave da diferença está no fato de, enquanto a cobertura representa uma iniciativa de repórteres que interpretam os acontecimentos segundo sua linha de noticiário, o trabalho de carvalho é de autoria, intervenção midiática artística designada para disseminar sua visão vanguardista da arte e da não-arte como na audiência. O trabalho midiático de Carvalho não reportou fatos externos; era, por si só, de fato, um significado original. – Eduardo Kac

v Narrativa baseada na descrição dada por Flávio de Carvalho em seu livro Experiência #2, realizada sobre uma procissão de Corpus Christi (São Paulo: Irmãos Ferraz, 1931).

vi Nesta entrevista, Flávio de Carvalho sugeriu três roupas que poderiam se encaixar no clima de São Paulo; roupas para o outono ou primavera, e inverno. Ver Luis Martins, “Flávio de Carvalho homem telúrico: O agricultor é o trouxa da nação!” Comício , 22 de maio de 1952.

vii Flávio de R. Carvalho, “Nova moda para o novo homem – moda de verão para a cidade”, Diário de S. Paulo, 24 de junho de 1956.

viii A Moda e o Novo Homem I–XXXIX”, Diário de S. Paulo, 4 March–21 October 1956.

ix Experiência Social número 3: Flávio de Carvalho surpreende a cidade ao apresentar a indumentária do futuro” Diário de S. Paulo, 19 de outubro de 1956. O artigo anunciou que o artista estava para apresentar uma prévia de sua roupa para a televisão no mesmo dia. 

x Paulo Autran declarou para o autor, Setembro 1977. É possível que Flávio de carvalhotenha apresentado sua criação na televisão 1 ano antes. Na época, ele anunciou a chegada de sua nova roupa no centro de São Paulo, a mídia reportou uma prévia na TV agendada para o décimo nono dia de outubro de 1956. Consultar [9] para a transmissão anterior.

xi Nota do Editor: a intervenção de Carvalho no espaço eletrônico da Televisão é uma primeira tentativa, marcando uma das primeiras manifestações da vanguarda artística no contexto televisivo e audiovisual. Vendo de uma perspectiva histórica, sua performance eletrônica é precedida somente pela trasmissão espacialista de Lucio Fontana em 1952, realizada em Milão. Porém, a fita de vídeo só veio a ser comercializada em 1956 e foi somente em 1959 que foi usada pela primeira vez no Brasil (na TV Continental, no Rio de Janeiro). Não há nenhum registro em vídeo da performance de Carvalho. – Eduardo Kac

xii “Flávio de Carvalho por ele mesmo VIII”, Folha de S. Paulo, 21 de Setembro de 1975.

xiii A primeira referência de peso feita no artigo de Carvalho “Rumo ao Paraguai III”, Diário de S. Paulo, 15 de Setembro de 1943. Sua investigação na evolução humana e social continuou durante a comprida série “Notas para a Reconstrução de um Mundo Perdido I–LXV”, Diário de S. Paulo, 6 de Janeiro de 1957 – 21 de Setembro de 1958.

xiv Francisco Brasileiro, declaração para J. Toledo [1] p. 462.

xv Não está claro se a história é baseada em fatos reais, mesmo em parte ou integral. Checar Norberto Esteves, “Esta é a Deusa Branca autêntica que Flávio Carvalho não encontrou”, Última Hora, 19 Dezembro de 1958. Em seu artigo, o fotógrafo Norberto Esteves pediu para achar a verdadeira Umbelina Valéria, mas, de novo, não foi possível atender a seu pedido.

xvi A reconstrução de eventos da expedição tem base no depoimento de três diferentes fontes: Flávio de Carvalho; o fotógrafo Norberto Esteves do jornal Última Hora e Raymond Frajmond, que se juntou ao artista como cameraman. Todos depoimentos registram uma inimizade entre Flávio de Carvalho e Tuval Viana, quem encabeçou a expedição SPI. No estágio final da mesma, depois de diversas discussões, o artista disse que ia buscar abrigo em um barco e desafiou Viana a um duelo de pistola. Um relato da expedição foi publicado narevista Time: “Playboy no trabalho”, Time, Latino Americana edição 72, No. 14 (22 Dezembro 1958) p. 17.

xvii Flávio de Carvalho, A Origem Animal de Deus e o Bailado do Deus Morto (São Paulo: Difel, 1973) p. 55.

xviii Michel Foucault, Les mots et les choses, une archeologie des sciences humaines (Paris: Gallimard, 1966) p. 385.

xix Ver a entrevista do artista com Daniel de “A arte prevê aquilo que o homem social faz, Para Todos No. 12 (1–15 Novembro de 1956) p. 5.

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