outubro 06, 2014

"A quem pertence Kafka?", por Judith Butler.

PICICA: "“Como neste mundo alguém chegou à idéia de que pessoas podem se comunicar umas com as outras através de cartas! Sobre uma pessoa distante pode-se pensar, e a uma pessoa que está próxima pode-se agarrar – tudo o mais vai além da força humana. Escrever cartas, entretanto, significa desnudar-se diante de fantasmas, algo pelo qual eles aguardam avidamente. Beijos escritos não alcançam seu destino, mas são bebidos em seu caminho pelos fantasmas. É nesta nutrição abundante que eles se multiplicam tão enormemente. A humanidade pressente e luta contra isto e, para eliminar o máximo possível o elemento fantasmal entre as pessoas e para criar uma comunicação natural, a paz das almas, ela inventou a ferrovia, o carro motorizado, o avião. Mas já não adianta, estas são invenção criadas evidentemente já no momento do estrondo. O lado opositor é tão mais calmo e forte; depois do serviço postal ele inventou o telégrafo, o telefone, o radiografo. Os fantasmas não passarão fome, mas perecerão”."


A quem pertence Kafka? – Judith Butler


A quem pertence Kafka?
Judith Butler.*

Um processo em andamento em Tel Aviv foi estabelecido para determinar quem será o gestor das muitas caixas de escritos de Kafka, incluindo os primeiros rascunhos de suas obras publicadas, atualmente armazenadas em Zurique e em Tel Aviv. Como é sabido, Kafka deixou sua obra, publicada e não publicada, para Max Brod, junto com instruções explícitas de que o trabalho fosse destruído na morte de Kafka. De fato, o próprio Kafka aparentemente já havia queimado muito do seu trabalho. Brod recusou-se a honrar o pedido, embora não tenha publicado tudo o que lhe foi legado. Ele publicou os romances O processo, O castelo e Amerika entre 1925 e 1927. Em 1935, publicou as obras escolhidas, mas então guardou o restante em malas, talvez honrando o desejo de Kafka de não publicá-lo, mas certamente recusando o desejo de tê-la destruída. O compromisso de Brod consigo mesmo acabou por ter conseqüências e, em algum sentido, nós agora estamos vivendo as consequências da não resolução do legado de Kafka.

Brod fugiu da Europa para a Palestina em 1939, e, apesar de muitos dos manuscritos em sua custódia terem terminado na Bodleian Library em Oxford, ele manteve-se com um número substancial deles até sua morte em 1968. Foi para sua secretária Esther Hoffe, com quem ele aparentemente teve um relacionamento amoroso, que Brod legou os manuscritos, e ela manteve a maior parte deles até sua morte em 2007 com a idade de 101 anos. No geral, Esther fez como Max, mantendo as várias caixas, armazenando-as em cofres, mas em 1988 ela vendeu o manuscrito de O processo por $2 milhões, quando se tornou então claro que era possível obter um grande lucro a partir de Kafka. O que ninguém poderia ter previsto, no entanto, é que um processo ocorreria depois da morte de Esther, no qual suas filhas, Eva e Ruth, reivindicariam que ninguém precisa inventariar os materiais e que o valor dos manuscritos deveria ser determinado por seu peso – literalmente pelo quanto eles pesassem. Como um dos advogados representando o patrimônio de Hoffe explicou: “Se nós conseguirmos fechar um acordo, o material será oferecido para venda como uma entidade única, em um pacote. Ele será vendido por peso… Eles dirão: ‘Tem um quilo de papéis aqui, o licitante mais alto poderá se aproximar e ver o que há dentro’. A Biblioteca Nacional [de Israel] pode entrar na fila e fazer uma oferta também”.

Como Kafka se tornou uma mercadoria – na realidade um novo padrão ouro – é uma questão importante, e para a qual eu retornarei. Nós todos estamos muito familiarizados com a maneira com a qual o valor de um trabalho literário e acadêmico vem atualmente sendo estabelecido através de meios quantitativos, mas eu não tenho certeza se alguém já propôs que nós simplesmente pesemos nosso trabalho em balanças. Mas para começar, consideremos quais são as partes do processo e as várias alegações que elas fazem. Primeiro, há a Biblioteca Nacional de Israel, que alega que o testamento de Esther Hoffe deveria ser posto de lado, já que Kafka não pertence a estas mulheres, mas ao ‘bem comum’ ou então ao povo judeu, às vezes parecendo estes ser os mesmos. David Blumberg, presidente do conselho dos diretores da Biblioteca Nacional, coloca o caso da seguinte maneira: “A biblioteca não pretende desistir dos ativos pertencentes ao povo judeu… Pois como não se trata de uma instituição comercial e os itens mantidos lá são acessíveis a todos sem custo, a biblioteca continuará com seus esforços em obter a transferência dos manuscritos que foram encontrados”. É interessante considerar como os escritos de Kafka podem de uma só vez constituir um “ativo” do povo judeu e ao mesmo tempo não ter nada a ver com atividades comerciais. Oren Weinberg, o diretor executivo da Biblioteca Nacional, fez uma observação semelhante mais recentemente: “A biblioteca olha com preocupação a nova posição expressa pelos executores, que querem misturar considerações financeiras com a decisão sobre para quem o patrimônio será dado. Revelar os tesouros, que tem estado escondidos em cofres por décadas, servirá ao interesse público, mas a posição dos executores é passível de minar esta medida, por razões que não irão beneficiar nem Israel, nem o mundo”.

Então parece que deveríamos compreender a obra de Kafka como um “ativo” do povo judeu, embora não exclusivamente financeiro. Se Kafka é reivindicado primeiramente como um escritor judeu, ele vem a pertencer primeiramente ao povo judeu, e sua escrita aos ativos culturais do povo judeu. Esta alegação, já controversa (pois ela afeta outros modos de pertencimento ou, mais, não-pertencimento), torna-se assim ainda mais quando percebemos que o caso legal parte do pressuposto de que é o estado de Israel que representa o povo judeu. Esta pode parecer uma alegação meramente descritiva, mas ela carrega consigo extraordinárias e contraditórias consequências. Primeiro, a alegação ultrapassa a distinção entre judeus que são sionistas e judeus que não são, por exemplo, judeus na diáspora para quem a terra natal não é um lugar de retorno inevitável ou uma destinação final. Segundo, a alegação de que é Israel que representa o povo judeu tem também consequências domésticas. De fato, o problema de Israel sobre como melhor alcançar e manter uma maioria demográfica sobre sua população não judia, agora estimada em mais de vinte por cento da população dentro de suas fronteiras existentes, predica no fato de que Israel não é um estado estritamente judeu e que, se é para representar sua população de maneira justa ou igualitária, ele precisa representar ambos cidadãos judeus e não judeus. A afirmação de que Israel representa o povo judeu nega assim o vasto número de judeus fora de Israel que não são representados por ele, tanto legal, quanto politicamente, mas também os palestinos e outros cidadãos não judeus do estado. A posição da Biblioteca Nacional parte de uma concepção da nação de Israel que lança a população judaica fora de seu território como vivendo no Galut, em um estado de exílio e desalento que deveria ser revertido, e pode ser revertido apenas através de um retorno a Israel. A compreensão implícita é a de que todos os judeus e ativos culturais judaicos – seja lá o que isto possa significar – fora de Israel pertencem devidamente a Israel em algum momento, já que Israel representa não apenas todos os judeus, mas toda a significante produção cultural judaica. Eu observarei simplesmente que existe uma grande quantidade de comentários interessantes no problema do Galut por acadêmicos como Amnon Raz-Krakotzkin, que em seu extraordinário trabalho sobre exílio e soberania, argumenta que o exílico é característico do Judaísmo e até da judaicidade, e que o Sionismo erra ao pensar que o exílio precisa ser superado através da evocação da Lei do Retorno, ou, na verdade, a noção popular de “direito de nascimento”. O exílio pode ser, na verdade, um ponto de partida para pensar sobre coabitação e para trazer valores diaspóricos de volta para aquela região. Isto foi também, sem dúvida, o argumento de Edward Said quando, em Freud e o não-europeu, ele invocou as histórias exílicas ambos de judeus e palestinos para servir de base para um novo regime na Palestina.

O Galut não é, portanto, um reino caído que necessita de redenção, muito embora seja precisamente o que as formas culturais e estatais do Sionismo procurem ultrapassar através da extensão dos direitos de retorno a todos aqueles nascidos de mães judias – a agora através da reivindicação de que trabalhos significativos daqueles que por acaso são judeus são capital cultural judaico que, como tais, pertencem por direito ao estado israelense. De fato, se o argumento da Biblioteca Nacional for bem sucedido, então a reivindicação representativa do estado de Israel seria grandemente expandida. Como Antony Lerman colocou no Guardian, “se a Biblioteca Nacional reivindica o legado de Kafka para o estado judaico, ela, e as instituições como ela em Israel, podem passar a reivindicar praticamente qualquer sinagoga, obra de arte, manuscrito ou objeto ritual valioso pré-Holocausto existentes na Europa. Mas nem Israel como um estado, nem qualquer estado ou instituição pública tem este direito. (E embora seja verdade que Kafka é uma figura chave do passado cultural judaico, como um dos autores mais significativos do mundo, do qual os temas encontram ecos em muitos países e culturas, a atitude patrimonial de Israel está certamente fora de lugar)”.

Embora Lerman lamente a “subserviência implícita de comunidades judaicas européias a Israel”, o problema tem implicações globais mais amplas: se a diáspora é concebida como o reino caído, não redimido, então toda a produção cultural por aqueles que são discutivelmente judeus de acordo com as leis rabínicas que governam a Lei do Retorno estarão sujeitas a apropriação legal póstuma, já que o trabalho é considerado como um “ativo”. E isto me leva ao meu terceiro ponto, a saber, que onde há ativos, há também passivos. Então, não é suficiente que uma pessoa ou uma obra sejam judaicas; elas precisam ser judaicas em uma maneira que possam ser capitalizadas pelo estado de Israel enquanto ele luta correntemente em muitas frentes contra a deslegitimação cultural. Um ativo, imagina-se, é algo que amplia a reputação mundial de Israel, que muitos concordariam, precisa de reparos: a aposta é que a reputação mundial de Kafka irá se tornar a reputação mundial de Israel. Mas um passivo, e um passivo judaico, é alguém de quem a pessoa ou o trabalho, discutivelmente judaico, constitui um déficit de alguma maneira; considere, por exemplo, os esforços recentes para perseguir organizações de direitos humanos israelenses, como B’tselem, por documentar publicamente o número de casualidades civis na guerra contra Gaza. Talvez Kafka possa ser instrumentalizado para superar a perda de posição que Israel sofreu em virtude de sua contínua ocupação ilegal da terra palestina. Importa que Israel tenha posse da obra, mas também que a obra seja alojada dentro do território estabelecido do estado, de forma que ninguém que queira ver ou estudar a obra precise cruzar a fronteira de Israel e se lidar com suas instituições culturais. E isto também é problemático, não apenas porque cidadãos de muitos países e não cidadãos dentro dos Territórios Ocupados não têm permissão de cruzar aquela fronteira, mas também porque muitos artistas, performers e intelectuais estão atualmente honrando um boicote cultural e acadêmico, se recusando a comparecer em Israel a menos que as instituições que os convidam se pronunciem de maneira forte e sustentada em oposição à ocupação. O processo de Kafka não apenas acontece com este pano de fundo, mas intervém ativamente em sua reconfiguração: se a Biblioteca Nacional de Jerusalém ganhar seu caso, alguém que queira ter acesso aos materiais não publicados e não vistos de Franz Kafka terá de desafiar o boicote e terá de reconhecer implicitamente o direito do estado de Israel de se apropriar de bens culturais, dos quais o alto valor assume-se que se converterá contagiosamente em alto valor do próprio estado de Israel. Os pobres ombros de Kafka conseguem suportar tal fardo? Ele pode mesmo ajudar o estado israelense a superar a má fama da ocupação?

É estranho que Israel esteja confiando nos restos frágeis de Franz Kafka para estabelecer sua reivindicação cultural dos trabalhos que são produzidos por aquela classe de pessoas que nós poderíamos chamar de “discutivelmente judeus”. E provavelmente também interessa que os adversários aqui são as filhas da então amante de Max Brod, um sionista dedicado, de quem os próprios interesses políticos parecem estar vastamente ofuscados pela perspectiva de ganho financeiro. A busca delas por uma saída lucrativa parece não conhecer fronteiras nacionais e nem honrar nenhuma alegação especificamente nacional de pertencimento – como o próprio Capitalismo. Na verdade, o Arquivo Literário Alemão provavelmente estaria em melhor posição para pagar as somas imaginadas por estas irmãs. Em um movimento desesperado, o conselho israelense da Biblioteca Nacional solicitou a derrubada das alegações de posse das irmãs lançando mão de uma carta de Brod acusando sua parceira de desrespeitá-lo, e insistindo que ele preferiria deixar estes materiais para alguém que o considerasse uma pessoa de importância. Já que a carta não nomeia tal pessoa, deve ser difícil sustentar a alegação de que ela sobrepõe a estipulação explícita do testamento. Nós veremos se este documento de uma querela entre amantes se sustenta na corte.

O adversário mais poderoso da Biblioteca Nacional é o Arquivo Alemão de Literatura em Marbach, que, interessantemente, contratou advogados israelenses para os propósitos do processo. Presumivelmente, com aconselhamento jurídico israelense, isto não toma a aparência de uma luta alemã-israelense, e assim não faz lembrar aquele outro processo – o de Eichmann em 1961 – no qual o juiz subitamente irrompeu para fora do Hebraico dentro do Alemão para dirigir-se a Eichmann diretamente. Aquele momento causou uma controvérsia sobre a questão de qual língua pertence a uma corte jurídica israelense, e se Eichmann deveria ter recebido uma tal cortesia. Muitos acadêmicos alemães e jornais argumentaram recentemente que Marbach é o lar apropriado para os novos escritos descobertos de Kafka. Marbach, de acordo com eles, já possui a maior coleção de manuscritos de Kafka no mundo, incluindo o manuscrito de O processo, que comprou por 3,5 milhões de marcos alemães na Sotheby’s[1] em 1988. Estes acadêmicos argumentam contra uma maior fragmentação da obra, e apontam para a capacidade superior das instalações de Marbach de conservar estes materiais. Parece haver uma noção de que a Alemanha poderia ser, em todos os aspectos, uma localização mais segura. Mas é claro que outra parte do argumento é de que Kafka pertence à literatura alemã e, especificamente, à língua alemã. E embora não haja nenhuma tentativa de dizer que ele pertence à Alemanha como um dos seus cidadãos passados ou virtuais, parece que a germanidade aqui transcende a história da cidadania e gira em torno da questão das competências e realizações lingüísticas. O argumento do Arquivo Alemão de Literatura apaga a importância do multilinguismo para a formação de Kafka e para sua escrita. (De fato, teríamos as parábolas sobre Babel sem a pressuposição de um multilinguismo? A comunicação vacilaria tão insistentemente em suas obras sem o pano de fundo do tcheco, iídiche e alemão convergindo no mundo de Kafka?)

Focando apenas em como tão perfeitamente alemã é sua linguagem, o arquivo se junta a uma longa e curiosa tradição que preza o alemão “puro” de Kafka. George Steiner louvou “a translucidez do alemão de Kafka, sua quietude inoxidável”, observando que seu “vocabulário e sintaxe são aquelas da mais extrema abstenção ao desperdício”. John Updike referiu-se à “comovente pureza” da prosa de Kafka. Hannah Arendt, também, escreveu que sua obra “fala a mais pura prosa alemã do século”. Então, embora Kafka tenha certamente sido tcheco, parece que este fato é suplantado por sua escrita em alemão, que é aparentemente o mais puro – ou, deveríamos dizer, purificado? Dada a história da valorização da “pureza” no nacionalismo alemão, incluindo o Nacional Socialismo, é curioso que Kafka seja colocado diante desta rigorosa e exclusiva norma. De quais maneiras o multilinguismo de Kafka e suas origens tchecas tem de ser “purificadas” para que ele possa ser colocado como um alemão puro? Será o mais extraordinário ou admirável sobre ele que ele tenha purificado a si mesmo, exemplificando as capacidades de autopurificação do Ausländer?

É interessante que estes argumentos sobre o alemão de Kafka estejam recirculando agora, bem quando Angela Merkel anunciou o fracasso do multiculturalismo na Alemanha e somou, como evidencia adicional, a alegação de que os novos imigrantes, inclusive seus “filhos e netos”, fracassam em falar alemão corretamente. Ela advertiu publicamente estas comunidades a livrar-se de qualquer sotaque e a “integrar-se” nas normas da comunidade lingüística alemã (uma queixa rapidamente rebatida por Jürgen Habermas). Com certeza, Kafka poderia ser o modelo do imigrante bem-sucedido, embora ele tenha vivido apenas brevemente em Berlim e, claramente, não tenha se identificado nem mesmo com os judeus alemães. Se os novos trabalhos de Kafka forem recrutados para o arquivo em Marbach, então a Alemanha terá fortificado seu esforço de transferir seu nacionalismo para o nível da língua. A inclusão de Kafka acontece pela mesma razão que as imigrações menos bem faladas são denunciadas e vistas com resistência. É possível que o frágil Kafka possa se tornar norma de integração européia?

Nós encontramos na correspondência de Kafka com sua amante Felice Bauer, uma berlinense, que ela corrigia constantemente seu alemão, o que sugere que ele não está completamente em casa nesta segunda língua. E sua amante tardia, Milena Jesenská, que também foi a tradutora de suas obras para o tcheco, está constantemente ensinando para ele frases em tcheco que não sabe nem como escrever, nem como pronunciar, sugerindo que o tcheco também, é algo como uma segunda língua. Em 1911, ele vai para o teatro iídiche e entende o que é dito, mas iídiche não é uma língua que ele encontra muito frequentemente em sua família ou vida cotidiana. O iídiche permanece como uma importação do leste que é constrangedora e estranha. Então, existe aqui uma primeira língua? E, é possível argumentar que mesmo o alemão formal no qual Kafka escreve – que Arendt chamou de o alemão “mais puro” – carrega sinais de alguém que entra na língua pelo lado de fora? Este foi o argumento do ensaio de Deleuze e Guattari “Kafka: Por uma literatura menor”.

Realmente, esta questão parece ser antiga, uma questão que o próprio Kafka invoca em uma carta para Felice em Outubro de 1916 com referência aos ensaios de Max Brod sobre escritores judeus, “Nossos escritores e a comunidade”, publicado no Der Jude.

“E, aliás, você não me dirá o que eu realmente sou. Na última Neue Rundschau, a “Metamorfose” é mencionada e rejeitada com argumentos sensíveis, e então o escritor diz: ‘Há algo de fundamentalmente alemão sobre a arte narrativa de Kafka’. No artigo de Max Brod, por outro lado: ‘As histórias de K estão entre os documentos mais tipicamente judeus de nosso tempo’”.
“Um caso difícil”, escreve Kafka, “Serei eu um cavaleiro circense sobre dois cavalos? Ai, não sou nenhum cavaleiro, estou é prostrado no chão”.

Consideremos mais alguns escritos de Kafka – suas cartas, algumas entradas dos diários, duas parábolas e uma história – para iluminar a questão de seu pertencimento, seus pontos de vista sobre o Sionismo e seu jeito mais geral de pensar sobre alcançar (ou falhar em alcançar) um destino. Já que estamos preocupados em avaliar os direitos de propriedade reivindicados no processo, provavelmente não importa se Kafka era ou não sionista ou se ele planejou seriamente mudar-se para a Palestina. O fato é que Brod era sionista e trouxe a obra de Kafka com ele, embora Kafka ele mesmo nunca tenha ido e nunca realmente tenha planejado ir. Ele considerou a Palestina como um destino, mas referiu-se aos planos de ir para lá como “sonhos”. Não que ele não tinha a vontade, mas ele tinha uma ambivalência paralisadora em relação a todo o projeto. O que eu espero mostrar é que a poética da não-chegada permeia esta obra e afeta, isto se não afligir, suas cartas de amor, suas parábolas sobre jornadas, e suas reflexões explícitas sobre ambos o Sionismo e a língua alemã. Eu compreendo que alguns gostariam de olhar especificamente o que Kafka escreveu sobre processos para ver qual luz poderia ser lançada sobre o processo atual de seus escritos, mas há algumas diferenças que precisam ser observadas. Este processo presente é sobre propriedade e se apóia em parte em reivindicações de pertencimento nacional e lingüístico, mas a maior parte dos processos e procedimentos sobre os quais Kafka escreve envolvem alegações infundadas e culpa inominada. Agora o próprio Kafka tornou-se propriedade, senão mesmo bem móvel (literalmente, um item de propriedade tangível móvel ou imóvel não anexado a terra), e o debate sobre sua destinação final está acontecendo, ironicamente, em uma corte familiar. A própria questão sobre aonde pertence Kafka já é algo como um escândalo, dado o fato de que sua escrita traça as vicissitudes de não pertencer ou de pertencer demais. Lembremos: ele rompeu todos os noivados que teve, nunca possuiu um apartamento e pediu para seu executor literário que destruísse seus papéis, depois do que a relação contratual deveria ter terminado. Então, os acordos sobreviveram além dos seus propósitos originais e seu tempo de vida intencionado. Mesmo que o trabalho de Kafka tenha sido deliberar reivindicações administrativas de seguro e vincular contratos, sua vida pessoal foi curiosamente vazia deles, exceto por um ocasional contrato de publicação. Claro, eu estou pronta para aceitar que o gerenciamento legal de seus papéis requer uma decisão que leve em conta sua administração, e que este problema de pertencimento legal tem de ser resolvido de maneira que os papéis possam ser inventariados e tornados acessíveis. Mas se nós voltarmos à sua escrita para nos ajudar a ordenar esta bagunça, nós talvez possamos também descobrir que sua escrita é, ao invés, extremamente pertinente em nos ajudar a pensar através dos limites de pertencimento cultural, assim como das armadilhas de certas trajetórias nacionalistas que tem destinações territoriais específicas como seu objetivo.

Não há dúvida de que a judaicidade de Kafka foi importante, mas isto não implicou de maneira nenhuma em uma visão estática sobre o Sionismo. Ele estava imerso em judaicidade, mas também procurou sobreviver a suas demandas sociais às vezes prementes. Em 1911, ele foi ao teatro iídiche quase toda semana e descreveu em detalhe o que viu lá. Nos anos subseqüentes, ele leu – “avidamente”, como ele coloca – L’Histoire de la littérature Judéo-Allemande de Meyer Pines, que estava cheia de lendas hassídicas, seguido de Organismus des Judentums de Fromer, que detalha tradições talmúdicas rabínicas. Ele compareceu a eventos musicas na Sociedade Bar Kokhba, leu trechos da Cabala e os discutiu em seus diários, estudou Moses Mendelssohn e Sholem Aleichem, leu diversas revistas judaicas, assistiu palestras sobre o Sionismo e peças em iídiche, e ouviu histórias hebraicas em tradução. Aparentemente, em 25 de Fevereiro de 1912, Kafka deu uma palestra sobre o iídiche, embora eu não tenha conseguido encontrar uma cópia. Talvez ela esteja enfiada em uma caixa em Tel Aviv aguardando adjudicação legal.

Ao lado desta impressionante imersão em coisas judaicas – talvez nós pudéssemos chamar isto de uma maneira de ser envolto –, Kafka também manifestou ceticismo sobre esta maneira de pertencimento social. Hannah Arendt, cujo senso de pertencimento era vexado de maneira semelhante (e se tornou tema de discussão com Gerschom Scholem), tornou famosa uma das piadas de Kafka sobre o povo judeu: “Meu povo, supondo que eu tenha um”. Como Louis Begley recentemente deixou claro em um ensaio biográfico bastante cândido, Kafka não apenas permaneceu com duas opiniões sobre a judaicidade, mas permaneceu às vezes claramente dilacerado. “O que eu tenho em comum com os judeus?”, ele escreveu em uma entrada de diário em 1914. “Eu quase não tenho nada em comum comigo mesmo e deveria ficar quieto em um canto, feliz de poder respirar”. Às vezes suas próprias observações sobre os judeus eram ásperas, se não violentas, como quando, por exemplo, ele chama o povo judeu de “lagartos”. Em uma carta a Milena, uma não judia, ele vai além em uma fantasia genocida e suicida em que finalmente ninguém consegue mais respirar:

“Eu poderia reprová-la bastante por ter uma opinião boa de mais dos judeus que você conhece (incluindo eu mesmo) – há outros! – às vezes eu gostaria de abarrotar todos os judeus (incluindo eu mesmo) em uma gaveta do baú da lavanderia, e então esperar, aí abrir a gaveta só um pouco para ver se todos já haviam sufocado, se não, fechar a gaveta de novo e seguir assim até o fim”.

Judaicidade está associada repetidamente à possibilidade de respiração. O que eu tenho em comum com os judeus? Eu sou sortudo por poder respirar. Então, são os judeus que dificultam sua respiração ou é Kafka que se imagina privando os judeus de respiração?

As fantasias de sufocamento de Kafka reiteram uma vacilação fantasmática do tamanho que nós encontramos também, por exemplo, em O veredicto. Na fantasia, Kafka é impossivelmente grande, maior do que todos os judeus que ele imagina colocar na gaveta. E ainda sim, ele também está na gaveta, o que o torna insuportavelmente pequeno. Em O veredicto, o pai é alternadamente gigante e pequenino: em um momento o filho, Georg, observa que quando ereto, ele é tão grande que sua mão toca levemente o teto, mas em um momento anterior, o pai é reduzido ao tamanho de uma criança e Georg o carrega para cama. O filho sobrepõe o pai apenas pare ser sentenciado à morte pela força das palavras dele. Onde Kafka está localizado nesta fantasia de sufocamento, e onde está Georg? Eles estão sujeitos à vacilação perpétua na qual ninguém é finalmente mantido em uma escala manejável. Na fantasia do sufocamento, Kafka é ao mesmo tempo agente e vítima. Mas esta dualidade persistente permanece irreconhecível por aqueles que usaram a carta para chamá-lo de judeu que se odeia[2]. Tal conclusão não é mais garantida pelas vacilações em seu texto do que a alegação triunfante de que as observações ocasionais de admiração ao Sionismo de Kafka fazem dele um sionista. (Ela está, no fim das contas, flertando com alguma destas instâncias). A fantasia de sufocamento, escrita em 1920, talvez possa ser compreendida de maneira mais útil em relação a uma carta para Felice escrita quatro anos antes, depois da leitura da peça de Arnold Zweig, Assassinato ritual na Hungria (1916). A peça encena um drama de 1897 baseado no libelo de sangue contra judeus. Os judeus em um vilarejo húngaro foram acusados de usar uma faca de açougueiro para matar cristãos e usar seu sangue para fazer pão ázimo. Na peça, os acusados são trazidos à corte, onde as acusações são rejeitadas. Um tumulto antijudeu toma as ruas e a violência é dirigida às lojas e instituições religiosas judaicas. Depois de ler a peça de Zweig, Kafka escreveu a Felice: “Em um momento eu tive de parar de ler, sentei no sofá e chorei. Fazia anos que não chorava”. A faca do açougueiro, ou facas como essa, reaparece então em seus diários e cartas e até aparece muitas vezes em sua ficção publicada: em O processo, por exemplo, e de novo, mais vividamente, em “Um médico rural”. A peça nos dá alguma noção dos limites da lei, e até da estranha maneira com que a lei dá espaço a uma a-legalidade que ela não pode controlar.

O fato de que Kafka chorou por causa de uma história de falsas acusações – na verdade, poucos relatos o fizeram chorar como este – pode nos parecer surpreendente. O tom de O processo, afinal, é o de uma acusação falsa ou obscura contra K. que é transmitida nos termos mais neutros, sem afeto ressonante. Parece que a dor confessada nas cartas é precisamente o que é retirado da peça na escrita; e ainda sim a escrita transmite precisamente uma série de eventos que estão ligados entre si nem através de uma causa provável, nem de indução lógica. Então a escrita efetivamente abre uma disjunção entre claridade – nós poderíamos até dizer uma certa lucidez e pureza de prosa – e o horror que é normalizado precisamente como conseqüência daquela lucidez. Ninguém pode reprovar a gramática ou sintaxe da escrita de Kafka, e ninguém nunca encontrou excesso emocional no seu tom; mas precisamente por causa deste aparente modo de escrever objetivo e rigoroso, um certo horror abre espaço no meio do cotidiano, talvez também uma dor indizível. A sintaxe e o tema estão efetivamente em guerra, o que significa que nós talvez devamos pensar duas vezes antes de celebrar Kafka apenas por sua lucidez. Afinal, o lúcido só funciona como estilo na medida em que trai sua própria pretensão de autosuficiência. Algo obscuro, se não indizível, abre espaço dentro da sintaxe perfeita. Na realidade, se nós considerarmos que as acusações recorrentes e difamatórias espreitam no plano de fundo dos seus muitos tribunais, nós podemos ler a voz da narrativa como a neutralização de uma revolta, um empacotamento lingüístico da dor que paradoxalmente o traz para frente. Então os judeus são sua família, seu pequeno mundo, e ele já é de alguma maneira encurralado por aquele apartamento pequeno, por aquela comunidade implacável e, naquele sentido, sufocado. E, no entanto, ele estava atento às história e perigos presentes do antissemitismo que ele vivenciou diretamente em um tumulto que aconteceu em 1918 no qual ele se encontrou entre uma multidão “que nadava em ódio aos judeus”. Ele, então, olhou para o Sionismo como um caminho para fora desta ambivalência profunda: a necessidade de fugir das restrições da família e da comunidade acoplada com a necessidade de encontrar um lugar imaginado como livre de antissemitismo?

Consideremos a primeira carta que Kafka escreveu para Felice em Setembro de 1912. Na linha inicial, ele pede a ela que o imagine com ela na Palestina:

“Considerando a possibilidade de que você já não tenha a menor lembrança de mim, me apresento mais uma vez: meu nome é Franz Kafka, e eu sou a pessoa que te saudou pela primeira vez naquela noite na casa do Diretor Brod em Praga, aquele que em seguida te passou sobre a mesa, uma por uma, as fotografias de uma viagem a Thalia, e que, finalmente, com esta mesma mão que aperta as teclas, segurou sua mão, aquele que confirmou uma promessa de te acompanhar no próximo ano à Palestina”.

Ao desenrolar da correspondência nos próximos anos, Kafka a avisa repetidamente que não poderá realmente acompanhá-la, nem nesta viagem nem em outra, e com certeza não para a Palestina, pelo menos não nesta vida como a pessoa que ele é: a mão que aperta as teclas não segurará a mão dela. Além disso, ele tem suas dúvidas sobre o Sionismo e sobre algum dia chegar àquela destinação. Ele subseqüentemente chama de “sonho” e a repreende alguns anos depois por se entreter tão a sério com o Sionismo: “Você flertou com ele”, ele escreveu. Mas, na verdade, foi ele quem introduziu a Palestina como estrutura de flerte: venha comigo, pegue a minha mão rumo ao além. Na realidade, conforme o relacionamento afunda e se quebra durante os próximos poucos anos, ele deixa claro que não tem intenção de ir, e que ele acha que aqueles que vão estão perseguindo uma ilusão. A Palestina é um outro lugar figurativo para onde os amantes vão, um futuro aberto, o nome de uma destinação desconhecida.

Em Kafka vai ao cinema, Hanns Zischler argumenta que imagens fílmicas proporcionaram a Kafka um meio primário de acesso ao espaço da Palestina, e que a Palestina era uma imagem de filme para ele, um campo fantástico projetado. Zischler escreve que Kafka viu a terra amada em filme, como filme. Na realidade, a Palestina era imaginada como não povoada, o que foi habilidosamente confirmado pelo trabalho de Ilan Pappe no começo da fotografia sionista, na qual as habitações palestinas foram rapidamente renomeadas como parte da paisagem natural. A tese de Zischler é interessante, mas provavelmente não completamente verdadeira, já que os primeiros destes filmes não foram vistos até 1921 de acordo com os registros que nós temos, e Kafka estava avidamente participando de reuniões e lendo jornais, ganhando um senso de Palestina tanto a partir de histórias escritas quanto narradas em debates públicos. No decorrer destes debates e relatos, Kafka entendeu que havia conflitos emergindo na região. Na verdade, sua narrativa curta “Chacais e árabes”, publicada em Der Jude em 1917, registra um impasse no coração do Sionismo. Nesta narrativa, o narrador, que vagou inadvertidamente para o deserto, é saudado pelo chacais (die Schakale) uma referência discretamente disfarçada aos judeus. Depois de tratá-lo como uma figura messiânica por quem eles têm esperado por gerações, eles explicam que sua tarefa é assassinar os árabes com um par de tesouras (talvez uma piada sobre como os alfaiates da Europa oriental estavam mal equipados para o conflito). Eles não querem fazer isto eles mesmos, já que não seria “limpo”, mas o próprio Messias aparentemente não é limitado pelas restrições kosher. O narrador então fala com o líder árabe, que explica que “é sabido por todos que desde quando existem os árabes aquela tesoura vaga pelo deserto e vagará conosco até o fim dos nossos dias. A cada europeu ela é oferecida para a grande obra; cada europeu é justamente aquele Homem que o Destino escolheu para eles”.

A história foi escrita e publicada em 1917, o ano em que o relacionamento de Kafka com Felice chegou ao fim. Naquele mesmo ano, ele esclarece para ela em uma carta: “Eu não sou um sionista”. Pouco antes ele escreve sobre si mesmo para Grete Bloch que, por temperamento, ele é um homem “excluído de toda comunidade que alimente a alma por conta de seu judaísmo não praticante e não-sionista (eu admiro o sionismo e fico enjoado dele)”. Depois de participar de uma reunião de sionistas em março de 1915 com Max Brod, na qual judeus do leste e do oeste da Europa se encontraram para acertar suas diferenças, ele descreve os vários personagens, um com seu “paletozinho esfarrapado” e observa o “sorriso diabolicamente desagradável” de um pequeno companheiro descrito como um “argumento ambulante” com uma “voz de canário”. Esta sequência visual, finalmente, inclui ele mesmo: “Eu, como se feito de madeira, um armário empurrado para o meio da sala. E ainda assim, esperança”.

De onde exatamente emerge esta esperança? Aqui como em outros lugares, o problema da destinação toca a questão da emigração para a Palestina, mas também no problema, de forma mais geral, de mensagens conseguirem chegar e ordens poderem ser compreendidas corretamente. Não-chegada descreve o predicamento lingüístico da escrita em um contexto multilingual, explorando as regras sintáticas do alemão formal para produzir um efeito de estranhamento, mas também escrevendo em uma Babel contemporânea onde os tiros n’água da linguagem vem caracterizar a situação diária da fala, seja ela amorosa ou política. A questão que reemerge em parábolas como “Uma mensagem imperial” é se a mensagem pode ser enviada daqui para lá, ou se uma pessoa pode viajar daqui para lá, ou ainda para lá longe – se uma chegada esperada é realmente possível.

Eu gostaria de considerar brevemente duas parábolas que tocam neste problema da não-chegada, inclusive na estranha forma de esperança que pode emergir da sociabilidade quebrada e o impasse contra-messiânico que caracterizam a forma da parábola. “A partida” [Der Aufbruch] começa com o problema de uma ordem que não é entendida: “Eu ordenei que meu cavalo fosse tirado do estábulo. O servo não me entendeu”. A ordem é dada talvez em uma linguagem que o servo não entende, ou então alguma hierarquia pressuposta não está mais em funcionamento como se esperava. Segue mais confusão cognitiva ao prosseguir do narrador em primeira pessoa: “Ouvi na distância uma trombeta soar e perguntei a ele o que aquilo significava”. Desta vez, parece que o servo entende a questão, mas o narrador ainda não está vivendo em um mundo comum de som: “Ele não sabia de nada e não tinha ouvido nada”. Aparentemente o servo deu apenas sinais que indicavam isto, embora na próxima linha ele estabeleça sua competência lingüística: “No portão ele me parou e me perguntou: – Para onde o senhor cavalga?”, que é seguido por uma resposta imediata: “- Eu não sei – eu disse – apenas para-longe-daqui [Weg-von-hier] [3], apenas para-longe-daqui”. E então uma terceira vez: “Sempre adiante, para-longe-daqui, só assim eu posso alcançar meu objetivo”. O servo, que aparentemente não entendeu a primeira ordem, ou não entendeu que ela se referia a ele, agora parece ansioso para verificar o que o mestre realmente sabe sobre seu objetivo (das Ziel). Mas a resposta do mestre é confusa: “- Sim – eu respondi – eu já disse” e então oferece o nome de um lugar, o lugar hifenizado “para-longe-daqui” (que se torna um termo pelo qual Deleuze conecta Kafka com um projeto de desterritorialização). E ainda, o que significa dizer que “para-longe-daqui” é “meu objetivo” [4]? Qualquer lugar que não é aqui pode ser longe daqui, mas qualquer lugar que se torne um “aqui” não será longe daqui, mas apenas outro aqui. Há realmente algum caminho para longe daqui, ou “aqui” nos segue para onde quer que formos? O que significaria estar liberto das condições espaço-temporais do “aqui”? Nós não apenas teríamos que estar em algum outro lugar, mas este próprio outro lugar teria de transcender as condições espaço-temporais de qualquer lugar existente. Então, para onde quer que ele pretenda ir, lá não será um lugar como nós sabemos que um lugar é. Será isto uma parábola teológica, que figura um além inefável? É uma parábola sobre a Palestina, o lugar que na imaginação do europeu, de acordo com Kafka, não é um lugar povoado, um lugar que não pode ser povoado por ninguém?

Na verdade, ele parece estar indo para algum lugar em que o sustento do corpo humano se provará desnecessário. O servo ressalta: “- Você não está levando nenhuma provisão [Eßvorrat] de comida – ele disse. – Eu não preciso de nenhuma. – eu disse. – A viagem é tão longa que eu devo morrer de fome se não receber nada no meio do caminho. Nenhuma provisão pode me salvar [Kein Eßvorrat kann mich retten]”. E então vem a estranha sentença de conclusão: “Pois trata-se, felizmente, de uma viagem verdadeiramente imensa”. Em alemão, é “por sorte” (zum Glück eine wahrhaft ungeheure Reise). Esta palavra ungeheure significa “estranho“, “monstruoso“, até “insondável“. Então nós bem que podemos perguntar o que é esta jornada monstruosa e insondável para a qual não será necessária nenhuma comida. Nenhuma comida poderá salvá-lo desta sortuda ventura para dentro da zona estranha. Por sorte, parece que a viagem não lhe requerirá a inanição, mas falhará em salvá-lo, em mantê-lo em um lugar que é um lugar. Ele irá para um lugar que não é um lugar e onde não será necessária nenhuma comida. Se este lugar além do lugar é ele mesmo uma salvação, o que não é precisamente dito, então será uma de um tipo diferente daquela que a comida oferece a uma criatura viva. Nós poderíamos chamar isto de uma pulsão de morte em direção à Palestina, mas nós também poderíamos lê-lo como uma abertura para uma viagem infinita, ou uma viagem para dentro do infinito, que irá gesticular em direção a outro mundo. Eu digo “gesticular” porque é um termo que Benjamin e Adorno usam para falar destes momentos paralisados, estas emissões que não são exatamente ações, que congelam ou se solidificam em sua condição frustrada e incompleta. E isto parece ser o que acontece aqui: um gesto abre um horizonte como um objetivo, mas não há partida real e com certeza não há chegada real.

A poética da não-chegada pode ser encontrada novamente na parábola de Kafka “A vinda do Messias”, onde nós descobrimos, por uma voz aparentemente oficial, que o Messias “virá… quando não houver ninguém para destruir esta possibilidade e ninguém para sofrer sua destruição”. A parábola se refere a um “individualismo desenfreado da fé” que precisa primeiro tornar-se possível; o termo em alemão para “desenfreado” (zügellos) está mais próximo de “deixar solto” – um individualismo solto no mundo, até mesmo fora de controle. Aparentemente, ninguém fará isto acontecer, e parece que o Messias não tomará nenhuma forma antropomórfica: o Messias virá apenas quando não houver “ninguém” para destruir esta possibilidade ou para sofrer a destruição, o que significa que o Messias não virá enquanto houver alguém, apenas quando não houver ninguém, e isto também significa que o Messias não será alguém, não será um indivíduo. Isto deve ser resultado de um certo individualismo que destrói cada um dos indivíduos. Seguindo o livro de Mateus, a parábola afirma que “as covas se abrirão” e assim, novamente, nós somos levados a crer que elas não serão abertas por nenhum agenciamento humano. Quando o narrador afirma que isto “também é doutrina cristã”, ele retroativamente marca a abertura da parábola como judia, mas, na verdade, já existe uma Babel de religiões acontecendo: Judaísmo, Cristianismo, individualismo, e então, depois de uma explicação obtusa, parece que também existem pedaços de Hegel na descrição – de fato, nas partes mais ilegíveis. Na verdade, parece que nenhuma descrição coerente é possível, e nós somos trazidos aos limites do que pode ser pensado. “O Messias virá apenas quando não for mais necessário. Ele virá apenas no dia depois de sua chegada. Ele virá, não no último dia, mas no último dos últimos”. Parece que o Messias virá precisamente quando não houver ninguém aqui para sofrer a destruição do mundo como nós o conhecemos, quando não houver ninguém que possa destruir sua vinda. O messias não virá como um indivíduo e, certamente, não dentro de nenhuma sequência temporal que nós utilizamos para organizar nosso mundo de seres vivos. Se ele vier no último dos últimos dias, mas não no último, ele virá em um “dia” – agora hiperfigurativo – que está além de qualquer calendário de dias, e além da própria cronologia. A parábola postula uma temporalidade na qual ninguém sobreviverá. Chegada é um conceito que pertence ao calendário dos dias, mas vinda (das Kommen) aparentemente não. Ela não se dá em um momento no tempo, mas apenas depois de que a sequência de todos os momentos é completada.

Partida e chegada foram duas questões constantes para judeus europeus que estavam considerando deixar a Europa pela Palestina, mas também para outros locais de emigração. Em “A partida”, nós somos deixados com a questão de como é possível ir para longe daqui sem se mover de um aqui para outro? Uma partida e uma chegada assim não assumem uma trajetória temporal distinta através de um continuum espacial? O amálgama “Weg-von-hier” parece ser um nome de lugar apenas para confundir nossa própria noção de lugar. Realmente, apesar de “Weg-von-hier” ser um nome de lugar – ele mantém o nome de um lugar dentro de uma forma gramatical reconhecível – acontece que a gramática não apenas diverge da referencialidade clara neste caso, mas pode, claramente, operar de maneira estranha com qualquer realidade inteligível. Parece não haver nenhuma maneira clara de se mover de ponto a ponto dentro do esquema oferecido nesta parábola, e isto confunde nossas idéias de progressão temporal e continuidade espacial. Isto inclusive torna difícil de seguir as linhas na página, de começar a parábola e terminá-la. Se a parábola de Kafka de alguma maneira figura a partida de uma noção comum de lugar para uma noção de perpétua não-chegada, então ela não leva a um objetivo comum ou à realização progressiva de um objetivo social dentro de um lugar especifico.

Algo outro se abre, a distância monstruosa e infinita entre partida e chegada e o fora da ordem temporal na qual estes termos fazem sentido. Em “A vinda do Messias”, a visão de Kafka da não-chegada parte de fontes judaicas, começa de lá e para lá mesmo. O que se torna claro é que qualquer temporalidade que seja marcada pelo messiânico não é realizável dentro do espaço e tempo. É um momento contra-kantiano, talvez, ou uma maneira de interrogar o Judaísmo nos limites de uma noção kantiana de aparência e para além e contra uma noção progressiva de história cujo objetivo é ser realizada em um território povoado.

Kafka também reflete sobre formas de não-chegada em uma entrada dos diários escrita em 1922, menos de dois anos antes de morrer de tuberculose:

“Eu não mostrei a mínima firmeza de decisão na condução de minha vida. Foi como se, como para todos os outros, me tivesse sido dado um ponto a partir do qual prolongar-se-ia o raio do círculo, e, assim como para todos os outros, eu deveria descrever meu círculo perfeito ao redor deste ponto. Ao invés disto, eu estava para sempre começando meu raio apenas para ser constantemente forçado a quebrá-lo de uma vez. (Exemplos: piano, violino, línguas, Germanística, Anti-sionismo, Sionismo, Hebraico, jardinagem, carpintaria, escrever, tentativas de casar, um apartamento só meu)”.

Parece lamentável, mas então ele acrescenta: “Se em alguns momentos eu prolonguei o raio um pouco mais além do que o usual, no caso dos meus estudos de direito, digamos, ou relacionamentos, tudo se tornou pior ao invés de melhor só por causa desta pequena distância extra”. Então, isto significa que algo se tornou melhor devido à quebra do raio do círculo, resistindo àquele fechamento em particular? Kafka torna as implicações políticas de sua teologia oblíqua claras, ou quase claras, quando ele escreve em janeiro de 1922 sobre a “perseguição selvagem” que é sua escrita. Talvez não perseguição, ele conjectura; talvez sua escrita seja um “assalto à última fronteira terrestre” como “toda escrita deste tipo”. Ele então observa: “Se o Sionismo não tivesse intervindo, ela poderia ter facilmente se desenvolvido em uma nova doutrina secreta, uma Cabala. Há indícios disso”.
Eu tentei sugerir que nas parábolas de Kafka e em seus outros escritos nós encontramos pequenas meditações sobre a questão de ir a algum lugar, de passar sobre, da impossibilidade da chegada e da irrealizabilidade de um objetivo. Eu quero sugerir que muitas destas parábolas parecem alegorizar uma maneira de verificar o desejo de emigrar para a Palestina, abrindo ao invés uma distância infinita entre um lugar e o outro: constituindo assim um gesto teológico não-Sionista.

Nós podemos, finalmente, considerar esta poética da não-chegada como pertencente ao legado final do próprio Kafka. Como já deve estar claro, muitos dos trabalhos de Kafka são sobre mensagens escritas e enviadas onde a chegada é incerta ou impossível, sobre ordens dadas ou mal compreendidas e assim obedecidas em parte ou simplesmente não obedecidas. “Uma mensagem imperial” figura as viagens de um mensageiro através de diversas camadas de arquitetura, enquanto ele se encontra preso em uma malha densa e infinita de pessoas: uma barreira infinita emerge entre a mensagem e sua destinação. Então o que dizemos sobre o pedido que Kafka fez a Brod antes de morrer? “Meu caro Max, meu último pedido: tudo que eu deixo atrás de mim… para ser queimado sem ler”. A vontade-testamento de Kafka[5] é uma mensagem enviada, com certeza, mas ela não se torna a vontade-testamento de Brod; na verdade, a vontade-testamento de Brod, figurativa e literalmente, obedece e recusa a vontade-testamento de Kafka (alguns dos trabalhos permanecerão não lidos, mas nenhum deles será queimado, ao menos não por Brod).

Interessantemente, Kafka não pede de volta seus escritos para que ele os possa destruir pessoalmente. Pelo contrário, ele deixa Brod com a charada. Sua carta para Brod é uma maneira de dar todos os trabalhos para Brod e de pedir para Brod que ele seja o responsável por sua destruição. Há um paradoxo intransponível aqui, já que a carta torna-se parte dos escritos, e assim parte do próprio corpus ou da obra, como muitas das cartas que Kafka havia preservado meticulosamente através dos anos. E ainda assim a carta pede para que os escritos sejam destruídos, o que logicamente envolve a nulificação da própria carta, e assim nulifica a própria ordem que ela dá. Então, esta ordem é uma diretiva clara ou é um gesto no sentido que Benjamin e Adorno descreveram? Ele espera que esta mensagem chegue à sua destinação ou ele escreve a ordem sabendo que mensagens e ordens falham em alcançar aqueles para quem são endereçados, sabendo que eles estarão sujeitos à não-chegada sobre a qual ele escreveu? Lembremos que foi Kafka quem escreveu:

“Como neste mundo alguém chegou à idéia de que pessoas podem se comunicar umas com as outras através de cartas! Sobre uma pessoa distante pode-se pensar, e a uma pessoa que está próxima pode-se agarrar – tudo o mais vai além da força humana. Escrever cartas, entretanto, significa desnudar-se diante de fantasmas, algo pelo qual eles aguardam avidamente. Beijos escritos não alcançam seu destino, mas são bebidos em seu caminho pelos fantasmas. É nesta nutrição abundante que eles se multiplicam tão enormemente. A humanidade pressente e luta contra isto e, para eliminar o máximo possível o elemento fantasmal entre as pessoas e para criar uma comunicação natural, a paz das almas, ela inventou a ferrovia, o carro motorizado, o avião. Mas já não adianta, estas são invenção criadas evidentemente já no momento do estrondo. O lado opositor é tão mais calmo e forte; depois do serviço postal ele inventou o telégrafo, o telefone, o radiografo. Os fantasmas não passarão fome, mas perecerão”.

Tivessem os trabalhos sido destruídos, talvez os fantasmas não teriam sido alimentados – apesar de Kafka não poder ter antecipado o quão ilimitadamente parasíticas as forças do nacionalismo e do lucro seriam, mesmo sabendo que aquelas forças espectrais estavam esperando. Então no ato de morrer, Kafka escreve que ele quer sua obra destruída depois de sua morte. Isto é dizer que sua escrita está ligada à sua vida e que com seu falecimento, também deveria também passar ao falecimento sua obra? Quando morro, também deve deixar de existir minha obra. Uma fantasia, com certeza, que não irá sobreviver a ele, algo que ele acha muito doloroso. Me lembra da parábola “As preocupações de um pai de família”, que chamou a atenção de Adorno pela promessa de “salvação”. Há Odradek, um tipo de criatura, um carretel, uma estrela, cuja risada soa como o farfalhar de folhas, pairando sobre ou embaixo ou perto da escadaria da casa. Talvez ele seja o filho, ou o remanescente de um filho; de qualquer maneira, ele é parte objeto e parte eco de uma presença humana. É apenas no fim da parábola que parece que a voz rigorosamente neutra que descreve este Odradek tem uma relação geracional com ele. Este Odradek não vive exatamente no tempo, já que ele é descrito como caindo pelas escadas perpetuamente, ou seja, na perpetuidade. Desta maneira o narrador que parece estar na posição de um pai observa: “É quase doloroso que ele deva sobreviver a mim”. Podemos ler isto como uma alegoria não apenas para Kafka em sua casa paterna, mas da escrita de Kafka, as páginas farfalhantes, as maneiras com que o próprio Kafka tornou-se parte humano e parte objeto, sem descendência, ou então com uma descendência literária que ele achou quase doloroso demais de imaginar sobrevivendo a si? O grande valor de Odradek para Adorno era que ele era absolutamente inútil em um mundo capitalista que busca instrumentalizar todos os objetos para seu ganho. Não foram, no entanto, apenas os espectros da tecnologia que se alimentariam avidamente da obra de Kafka, mas aquelas formas de lucro que exploram até a mais anti-instrumental das formas de arte, e aquelas formas de nacionalismo que buscam se apropriar até dos modos de escrita que mais rigorosamente lhes resistem. Uma ironia então, com certeza, que os escritos de Kafka finalmente tenham se tornado coisas de outras pessoas, empacotadas dentro de um armário ou cofre, transmogrificados em valor de troca, esperando por sua pós-vida como ícone de pertencimento nacional ou, simplesmente, dinheiro.

Notas

[1] Sotheby’s é uma corporação multinacional especializada em leilões de obras de arte, jóias e colecionáveis.

[2] “Self-hating Jew”, no original.

[3] Optamos por traduzir “away-from-here” por “para-longe-daqui” a fim de preservar o jogo de palavras da autora nesta parte do texto. Uma outra tradução possível, considerando o “Weg-von-hier” original alemão, seria “para-longe-daqui”.

[4] Butler refere-se aqui ao título da tradução anglófona que chama esta narrativa de “My Destination”, “Minha destinação”.

[5] Butler joga com os significados da palavra “will” em inglês: tanto vontade, quanto testamento.

*Texto partilhado originalmente no território: http://traducaoliteraria.wordpress.com/2014/01/11/a-quem-pertence-kafka-de-judith-butler/ . Tradução de Tomaz Amorim Izabel.

Fonte: Territórios de Filosofia

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