outubro 17, 2014

"Como é construída a política educacional: o triste exemplo paulista". Escrito por Otaviano Helene

PICICA: "Quanto à questão do baixo padrão de qualidade, vale lembrar que o Brasil está, já há muito tempo, entre os países da América do Sul com os piores indicadores educacionais. A desigualdade, por sua vez, pode ser percebida de várias formas diferentes e complementares. Por exemplo, a conclusão do ensino fundamental é rara exceção entre as crianças provenientes dos 20% mais pobres, enquanto a conclusão do ensino superior é a regra entre os 20% mais ricos. Evidentemente, essa disparidade quantitativa - que não considera complementos educacionais extraescolares, nem a qualidade da educação recebida - projeta para o futuro as desigualdades regionais e de renda que amargamos hoje. Outro exemplo da intensidade da desigualdade: o investimento educacional por estudante ao longo de todo um ano na média das escolas públicas é inferior ao investimento em um único mês na educação, escolar e extraescolar, de muitas crianças provenientes dos grupos mais ricos."


Como é construída a política educacional: o triste exemplo paulista Imprimir E-mail
Escrito por Otaviano Helene   
Quarta, 15 de Outubro de 2014



O efetivo projeto educacional não é aquele que está escrito nas leis ou nos planos educacionais, nem nos programas e discursos de eventuais candidatos a cargos públicos. Para saber qual é, verdadeiramente, a política educacional, o melhor é consultar a realidade. E as principais características do nossa política educacional são um padrão médio muito baixo, uma enorme desigualdade e uma evasão escolar altíssima, concentrada basicamente nos contingentes economicamente mais desfavorecidos, sendo essa política implementada por meio dos investimentos públicos no setor, ou melhor, pela falta deles.

Quanto à questão do baixo padrão de qualidade, vale lembrar que o Brasil está, já há muito tempo, entre os países da América do Sul com os piores indicadores educacionais. A desigualdade, por sua vez, pode ser percebida de várias formas diferentes e complementares. Por exemplo, a conclusão do ensino fundamental é rara exceção entre as crianças provenientes dos 20% mais pobres, enquanto a conclusão do ensino superior é a regra entre os 20% mais ricos. Evidentemente, essa disparidade quantitativa - que não considera complementos educacionais extraescolares, nem a qualidade da educação recebida - projeta para o futuro as desigualdades regionais e de renda que amargamos hoje. Outro exemplo da intensidade da desigualdade: o investimento educacional por estudante ao longo de todo um ano na média das escolas públicas é inferior ao investimento em um único mês na educação, escolar e extraescolar, de muitas crianças provenientes dos grupos mais ricos.

Quanto à evasão escolar, outra característica da política educacional brasileira, vale observar que ela atinge patamares assustadores: cerca de 25% das crianças abandonam o ensino fundamental antes de sua conclusão e perto da metade dos jovens já terá deixado a escola antes do final do ensino médio. Ainda que no Estado de São Paulo essa situação seja, aparentemente, menos ruim do que a média nacional - 5% de evasão ao longo do ensino fundamental e um terço até o final do ensino médio -, ela é comparativamente muito ruim para uma região onde quase a totalidade da população mora em áreas urbanas ou muito próximas a elas e a renda per capita é comparável à de países que já superaram esses problema há muito tempo.

Os estados e municípios brasileiros – infelizmente, com raríssimas exceções – despendem com a remuneração de educadores valores muito abaixo do necessário para uma mudança de patamar. Evidentemente, destinar a um setor poucos recursos para remuneração de pessoas é a forma mais eficiente de se desvalorizar uma profissão e desestruturar uma atividade social, pois implica em baixos salários, falta de professores pelo desestímulo provocado pelas condições de trabalho, profissionais sobrecarregados e com pouquíssimo tempo para destinar aos alunos e classes superlotadas. Essas são condições mais do que suficientes para inviabilizar a construção de um sistema educacional aceitável.

Vejamos como um exemplo, o caso do Estado de São Paulo, um estado useiro e vezeiro em tratar mal os professores e estudantes. A figura 1 mostra colunas cujas alturas indicam as remunerações líquidas de alguns grupos de trabalhadores do governo paulista. A primeira coluna à esquerda corresponde aos professores da educação básica (Professores da Educação Básica I e II). As demais colunas correspondem a alguns setores, órgãos e profissões, nesta sequência: médias dos trabalhadores da área da saúde, enfermeiros, funcionários da Fundação Padre Anchieta, trabalhadores da área de segurança, funcionários da Fundação para o Desenvolvimento da Educação, médicos, engenheiros e procuradores. Os tons de cinza representam a dispersão em torno da média, a qual está em uma região intermediária entre a parte escura das colunas e a parte cinza claro. As diferenças são marcantes e comentários são totalmente desnecessários. Ainda que o governo estadual paulista propale que há uma carreira motivadora, com altos salários em seu topo, apenas cerca de 3% dos professores da educação básica receberam remunerações líquidas superiores a R$ 5.000 em agosto de 2014.

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Salário líquido de algumas categorias de servidores do estado de São Paulo. (Valores obtidos por amostragem no site de transparência do governo estadual paulista consultado em 7 de outubro de 2014.)

Seriam os baixos investimentos em salários devidos a dificuldades orçamentárias e arrecadatória do governo ou a dificuldades econômicas do estado? Vejamos. A rede de educação da secretaria de educação tem cerca de 210 mil professores da educação básica. Considerando a renda média de R$ 2.300, em um ano as despesas somam 6,5 bilhões de reais, incluindo o décimo-terceiro salário e a remuneração adicional nas férias. Isso é pouco mais do que 3% do orçamento do governo estadual. Dobrar as despesas salariais, aumentando a quantidade de professores (e, portanto, reduzindo o número de “aulas vagas”, aumentando o número de horas de permanência dos estudantes nas escolas e reduzindo a carga de trabalho de cada professor) e a remuneração de cada um custaria outros poucos pontos percentuais do orçamento, valor respeitável, mas totalmente viável.

Mas há outras comparações que mostram a total viabilidade de se financiar a duplicação dos investimentos salariais. Suponha que o governo estadual decidisse financiar essa duplicação com base em um aumento do ICMS. Isso implicaria em provocar um aumento nos produtos taxados por aquele imposto em cerca de 0,5%. Ou seja, uma compra de supermercado que custaria 50 reais, aumentaria em 25 centavos, próximo do troco que, por pressa, abrimos mão e menos do que uma gorjeta dada a um eventual empacotador; um aparelho eletrônico de mil reais passaria a custar R$ 1.005,00, uma diferença inferior às passagens de ônibus ou a despesas de estacionamento que temos quando vamos fazer uma compra; um veículo de 50 mil reais encareceria em 250 reais, valor desprezível quando comparado com o custo do produto. Não se está aqui defendendo um aumento das alíquotas do ICMS, muito menos para produtos de primeira necessidade, mesmo porque os recursos adicionais poderiam ser gerados por impostos diretos ou por alíquotas maiores para produtos supérfluos; o objetivo é apenas ilustrar quão pequeno é o volume de recursos necessários para duplicar as despesas com pagamento de professores.
Mais comparações. Uma estimativa da sonegação de todos os impostos no estado de São Paulo, com base no volume de sonegação em nível nacional divulgado pelos procuradores da Fazenda Nacional (quantocustaobrasil.com.br) e na participação paulista na economia do país, mostra que aqueles 6,5 bilhões corresponderiam a menos do que 5% da sonegação. Ou seja, uma pequeníssima redução da sonegação seria suficiente para gerar aqueles bilhões de reais.

Ainda mais duas comparações para ilustrar quão pouco são 6,5 bilhões de reais na economia paulista. Esse valor corresponde a menos do que meio por cento do PIB anual paulista, valor que aparece em um único mês gordo de crescimento econômico ou desaparece em um mês magro, de variação negativa do PIB, e é próximo aos cerca de 5 bilhões de reais da Nota Fiscal Paulista esquecidos, que as pessoas sequer perderam tempo em buscar.
Há, claro, outras despesas educacionais além da remuneração de professores. Entretanto, ela é a mais importante de todas as despesas e, como mostrado, aumentá-la de forma muito significativa é totalmente viável, tanto do ponto de vista orçamentário como do ponto de vista econômico.

Enfim, gastar mais com pagamento de professores, para aumentar os salários, atrair mais profissionais, reduzir o número de aulas vagas e a carga de trabalho de cada docente, evitar que alunos fiquem sem atendimento por falta de profissionais e reduzir a evasão escolar, é totalmente possível, tanto economicamente como em termos orçamentários. Não fazer isso é uma política explícita e a forma mais eficiente de impedir a construção de um sistema escolar democrático, igualitário, eficiente e que responda às necessidades da população e da nação.

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp e do Inep, autor do livro “Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de seu Financiamento”; mantem o blog blogolitica.blogspot.com
Fonte: Correio da Cidadania

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