outubro 08, 2014

"Ao mangue voltaremos", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "O Brasil entrou numa espécie de transe à véspera da eleição. Uma disputa que desceu ao nível dos instintos e dos reflexos automáticos, entre dois grupos que cultuam divindades antagônicas. Um e outro se colocam como antítese entre si, diante do que se é convocado a aderir como salvação. Os termos são definitivos e incontornáveis. Ambos os templos multiplicam variações sentenciosas da máxima de Luís 15. Après moi le déluge. Depois de mim o dilúvio." 

Ao mangue voltaremos
DIlmécio


O Brasil entrou numa espécie de transe à véspera da eleição. Uma disputa que desceu ao nível dos instintos e dos reflexos automáticos, entre dois grupos que cultuam divindades antagônicas. Um e outro se colocam como antítese entre si, diante do que se é convocado a aderir como salvação. Os termos são definitivos e incontornáveis. Ambos os templos multiplicam variações sentenciosas da máxima de Luís 15. Après moi le déluge. Depois de mim o dilúvio.

De um lado, a cruzada dos sábios justos contra a corrupção dos ignorantes. O desejo de mudança traído como marcha cívica pela pátria livre, protagonizada pelo trabalhador honesto que dá duro todos os dias e se reserva o direito de exigir que os políticos não roubem. Para esses, as manifestações de 2013 sintetizaram o basta de uma geração ao projeto de poder de uma casta de usurpadores e sanguessugas. É o Brasil do Bem. Embora essa avaliação esteja usurpando o sentido das manifestações, que lutavam em nome próprio por direitos e qualidade de vida. Seus sacerdotes pregam a causa da modernização contra os impulsos estatólatras e as mistificações ideologizantes. O recente sucesso eleitoral aparece miraculado como confirmação de sua missão civilizatória nas terras bárbaras que prometem varrer de arcaísmos, à imagem do estado de São Paulo, alfa e ômega de tudo de bom que aconteceria no Brasil.

Do outro lado, a cruzada dos defensores dos pobres contra os ricos. O desejo de mudança negado como protesto pequeno-burguês manipulado pela direita golpista. Para esses, um vasto movimento de democratização lamentavelmente foi abalado pelas manifestações de 2013, quando saiu das sombras um país antissocial, outrofóbico, despolitizado, cúmplice tradicional da opressão e da exploração, e que fora bisonhamente subestimado. É o Brasil Coxinha. Com a dubiedade de quem se engaja na causa popular ao mesmo tempo que mantém as avaliações conservadoras, seus sacerdotes falam em nome dos pobres, como se aqueles dependessem de suas divindades e sacerdotes para agir e lutar em nome próprio. O recente fracasso eleitoral é atribuído às massas fascistas (pobre população…), à ética do trabalho de São Paulo (pobre trabalhador paulista…) e até às manifestações.

Os mais céticos recorrem ao Lênin da NEP: é preciso dar um passo atrás para dar dois adiante. Do lado de lá, o passo atrás é admitir como mal menor a vitória momentânea de Aécio, para limpar o terreno para que outras forças melhores posteriormente possam ocupar as ruínas deixadas pelo PT. Do lado de cá, o passo atrás é admitir como mal menor a vitória momentânea de Dilma, para preservar as conquistas sociais e instigar a esquerda do PT a reconstruir-se a partir dos escombros que sobraram das forças progressistas.

De mal menor em mal menor, é perpetuada a dialética do pior com o que os templos se alimentam de fiéis. A julgar pela pregação apocalíptica dos púlpitos, como quer que votemos, no dia 27 de outubro as compor­tas do céu vão se abrir e a chuva cairá sobre a terra por 40 dias e 40 noites. O Brasil tão tomado pela lama que o conselho de Lênin terá sido inútil. Não mais possível andar pra frente nem pra trás. Prosperará o caranguejo.

Dedicado a Augusto Botelho.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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