outubro 12, 2014

"Ditadura da Beleza", by Rafael Lauro

PICICA: "O que é propriamente um regime ditatorial de valores? Se no sentido político tradicional, o ditador é aquele bigodudo que possui o total controle dos poderes do estado, na esfera dos valores o ditador é aquele que legitima de forma absoluta os valores de uma sociedade. Dizem por aí que a ditadura acabou, está nos livros de história. De fato, o que não parece mais existir em nossa sociedade é o tal do bigodudo mandão, entretanto sobram mecanismos autoritários de valorização e desvalorização dos valores culturais. Sob este prisma, pouco importa sermos uma democracia formal, é pouco. Pensávamos ter nos livrado da ditadura, quando na verdade só mudaram nossos ditadores e assim permaneceremos enquanto não nos emanciparmos de quem dita nossos costumes."

Ditadura da Beleza

 

O que é propriamente um regime ditatorial de valores? Se no sentido político tradicional, o ditador é aquele bigodudo que possui o total controle dos poderes do estado, na esfera dos valores o ditador é aquele que legitima de forma absoluta os valores de uma sociedade. Dizem por aí que a ditadura acabou, está nos livros de história. De fato, o que não parece mais existir em nossa sociedade é o tal do bigodudo mandão, entretanto sobram mecanismos autoritários de valorização e desvalorização dos valores culturais. Sob este prisma, pouco importa sermos uma democracia formal, é pouco. Pensávamos ter nos livrado da ditadura, quando na verdade só mudaram nossos ditadores e assim permaneceremos enquanto não nos emanciparmos de quem dita nossos costumes.

Mulher Sentada, Francis Bacon
Mulher Sentada, Francis Bacon

Não é necessário lembrar nosso leitor o quanto prezamos pelas individualidades em nossos textos, o quanto nos parece irreal a crença no absoluto, nos valores imutáveis, na percepção das formas puras, no belo objetivo (ler esteeste e/ou este). Entretanto, mais uma vez nos encontramos em face desta discussão: o caráter inquestionável da beleza. O fato de termos de nos esforçar para perceber que aquilo que consideramos ideal no corpo feminino/masculino é apenas uma questão de gosto mostra o quão eficaz em empurrar determinados desejos goela abaixo é o regime em que vivemos.

Não é difícil perceber que a beleza, assim como qualquer valor, não é um valor imutável, mas determinada por processos de valorização e desvalorização. O exemplo corriqueiro é o da época do Renascimento, de como as “gordinhas” eram o padrão. Para fugir do exemplo óbvio, basta voltar um pouco na história de nosso país. Na época da escravidão, jamais se consideraria a pele bronzeada como algo belo, pois este traço trazia consigo a informação de que a pessoa trabalhava fora da casa, exposta ao sol e se assemelhava, portanto, ao escravo. Um pouco distante da nossa atual preferência pelas “marquinhas de biquíni”, não?

Evocar o exemplo da escravidão nos remete a outra questão: quem estabelece o que é bonito? Numa sociedade com estratos tão definidos quanto a escravagista, parece óbvio que a elite, que possui todo o poder, determine o bonito e o feio. E na nossa sociedade atual, será que o padrão de beleza continua associado a quem tem o poder? Se entendermos esse poder como poder econômico,  parece que sim. Basta perceber que não conseguimos imaginar o dia em que o cabelo “ruim” (repare que a palavra que usamos para nos referir a um determinado tipo de cabelo já é um juízo de gosto! E o pior, nos entendemos) se tornará o padrão. O mais triste é o fato de que este padrão ditado não é aceito apenas por quem dita, mas por todos, inclusive pelos que têm “cabelo ruim”, são “gordinhos”, “mal vestidos”…

É uma imposição vertical que atinge a horizontalidade. Os efeitos desse poder econômico, muito menos personificado, se torna efetivamente poder nas relações, mas não se restringe somente a um poder social, é também biopoder, isto é, uma relação de dominância instituída sobre os corpos. Por mais abstrato que pareça, esta relação de dominância percebe-se por marcas corporais. Observe, por exemplo, os traços físicos do que serve e do que é servido. Há qualquer coisa de distinto em seus corpos, em suas constituições, algo que denuncia o pertencimento a uma determinada classe.

Perceba que não estamos apenas criticando o padrão atual, estamos questionando a necessidade da existência de um padrão, ainda mais um que seja definido por processos tão oligárquicos como os da nossa mídia. A questão não é defender quem é gordinho, mas defender a possibilidade de uma escolha que parte de um desejo legítimo e não de uma aceitação submissa.

O problema fundamental aqui é o fato de que nosso desejo não é propriamente nosso. Ele é fabricado no seio de um sistema de produções doente, que para seu próprio sustento precisa ver a beleza associada ao dinheiro, aos produtos e à fama. No interior da máquina social, nosso desejo é uma pequena engrenagem que acredita querer, quando na verdade apenas aceita o que lhe é sugerido, ou melhor, obedece às ordens da gerência. Dentro deste sujeito, não há desejo, há uma espécie de eco, uma repetição do que o mercado define como necessidade e coloca na capa de suas revistas. “Quando o desejo obedece a este ponto, constrangido, fabricado e possuído pelo mercado, ele se torna o corpo estranho integrado e digerido pelo sujeito alienado” (Política do rebelde, Michel Onfray, p.189)

Por que chamar de regime ditatorial? Simplesmente porque há, de fato, algum mecanismo que dita valores e este mecanismo, no que concerne boa parte dos indivíduos de nossa sociedade, não parte do sujeito. Há, como diria Deleuze, uma fábrica de buracos (Ler Deleuze e o desejo). Escavadeiras dispostas em fila, prontas para nos atacar, invadir nossas casas, nosso transporte, nossos corpos, nossos afetos; e cavar sem parar, criar uma série de buracos, de “faltas”. Não há ingenuidade por parte de quem manipula essas máquinas, é muito bem sabido que só o ideal preenche o desejo quando este é interpretado como falta. Mas como alcançar este ideal? Existe corpo tal qual o da capa de revista? Que escavadeiras são essas? O que é que nos faz tomar o desejo por falta? Inúmeras respostas são possíveis, eis algumas: a publicidade, este mecanismo de persuasão apodrecido; a ditadura da identidade, esta normatividade imposta pelo ser; a moral, estes valores condensados em deveres; o prazer conservador, esta fuga incessante do prazer intensivo…

Nossos poros estão entupidos. Estamos impedidos de experimentar nossos próprios corpos. Com a desculpa do belo, cria-se a norma e, quando há tentativa de subvertê-la, surgem pequenas sentenças de morte: constrangimento, coação, coibição, intimidação, restrição… O sujeito vai se convencendo de que tem que ser como é e vai deixando de lado sua criatividade e sua disposição para a experimentação. Aceitamos, enfim, que devemos ter um gênero X, casar com alguém do gênero Y, não qualquer um, mas alguém perfeito. Esquecemos completamente que nosso corpo é uma festa e que nesta festa não há mestre de cerimônias.

Muitas questões se levantam. Difícil abordá-las todas num pequeno texto como este. Contudo, para finalizar, gostaríamos de destacar ainda duas destas questões. Primeiro, idealizar o corpo gera  desprezo pelos corpos. Parece paradoxal, mas é muito simples. Estabelecer uma ideia perfeita de corpo implica em desprezar, mesmo que parcialmente, a materialidade de todos os corpos, pois jamais o objeto se eleva a perfeição eterna da ideia dele. Segundo, buscar o corpo ideal, implica necessariamente um procedimento ascético (no sentido etimológico: que necessita esforço, exercício), precisaria de regras rigorosas para sua obtenção (pense nas dietas mirabolantes, nos regimes e práticas físicas sacrificantes). Neste sentido, é como uma religião, com suas práticas para obtenção de paz de espírito e vida eterna. Seja lá qual for o fim último, não deixa de ser arbitrário, escolhido. Que seja escolhido por cada um de nós, então! A pergunta que cabe ser feita é: “Será que sou eu que desejo ser loira e esbelta?”

Arte de Priscilla Fierro
Arte de Priscilla Fierro

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