outubro 02, 2014

"nota: “Boa Sorte, Meu Amor” e a arte de narrar" (arte_documento)

PICICA: "Em Boa Sorte, Meu Amor, de Daniel Aragão, a trama não é importante. Um cara, Dirceu, se apaixona por uma moça, Maria, uma relação entre os dois se inicia e faz emergir algumas tensões que remetem às origens históricas da sociedade em Pernambuco e aos anseios existenciais dos dois jovens, ambos personagens comuns que nos são apresentados sem maior profundidade, mas com insinuações (monólogos, certas atitudes, expressões). A narrativa assume toda a importância na condução do filme, propondo quase um culto da forma."

nota: “Boa Sorte, Meu Amor” e a arte de narrar


Captura de tela 2013-09-15 às 15.41.59 

Em Boa Sorte, Meu Amor, de Daniel Aragão, a trama não é importante. Um cara, Dirceu, se apaixona por uma moça, Maria, uma relação entre os dois se inicia e faz emergir algumas tensões que remetem às origens históricas da sociedade em Pernambuco e aos anseios existenciais dos dois jovens, ambos personagens comuns que nos são apresentados sem maior profundidade, mas com insinuações (monólogos, certas atitudes, expressões). A narrativa assume toda a importância na condução do filme, propondo quase um culto da forma.

Resumidamente, o filme trata de um mergulho no interior – tanto no interior do Estado de Pernambuco, culminando com um road-movie na última parte do filme, quanto no interior de Dirceu, que mergulha numa viagem e num desequilíbrio fechado e silencioso à procura de Maria, que desaparece de repente depois de descobrir que estava grávida.

A Fotografia em preto-e-branco e a música quase sempre anempática (enfatizando contrastes emocionais na narrativa) aliados à montagem diversificada (planos longos e curtos, cortes e fusões), garantem excelência ao filme, no que tange à sua forma e à narrativa esfuziante. Na parte final o filme se transforma: se antes alguns detalhes formais no filme me lembravam Bergman e, um pouco menos,  Wim Wenders, depois passamos a sentir a presença de Buñuel, mas nunca de forma explícita, experenciamos tudo no campo de sentimento, da fruição.

Captura de tela 2013-09-15 às 15.40.59 

O que o cinema de Pernambuco faz bem atualmente, e a Bahia já não faz nem mesmo mal, é recriar contextos e narrar histórias heterogêneas que, de alguma forma, remetam corajosamente a questões históricas do Estado, da cidade, da cultura e dos hábitos, ousando confrontar questões políticas (no sentido amplo) fundamentais. Vemos ali o conflito entre o idealismo juvenil de Maria que, em uma cena, esbarra no conformismo desistido e derrotado da personagem de Maeve Jinkings, mas também aparece,  insidiosamente, aspectos de uma luta de classes e de um jogo de dominação e poder, cujas raízes remetem ao tempo da Colônia e do Império, e também da escravidão, e cujos efeitos permeiam todas as imagens do filme.

Alguns críticos, aliás, acusaram no filme uma excessiva estilização das imagens. Não importa. Quando Dirceu, num desespero estranho, sai em busca de Maria no interior agreste onde ele mesmo havia nascido e esquecido disso, a gente se aproxima daquele personagem distante. Ele mergulha num açude, nu de roupas e desnudado de alguma coisa que era sua. Os moradores dali estranham o forasteiro. O forasteiro, no entanto, nasceu ali. Já não se trata mais de Maria.



“Boa Sorte, Meu Amor”
(Brasil / 95′ / Preto e branco / 2.35 Scope / 35mm & DCP / 2012)


Fonte: arte_documento

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