PICICA: "Hoje a Igreja, que mais do que fundada por Jesus o foi por Paulo de Tarso, seria muito diferente caso tivesse prevalecido a corrente gnóstica que esteve a ponto de eleger um dos primeiros papas.
E
as mulheres não continuariam relegadas pela Igreja, impossibilitadas de
exercer o sacerdócio, quando no cristianismo mais original o papel
delas era fundamental.
Jesus, na realidade, jamais pensou em
fundar uma nova religião. Era judeu, de nascimento e fé. Seu desejo era
que o judaísmo, a primeira grande religião monoteísta da história, não
ficasse restrito apenas aos judeus, mas abrisse suas portas para todos,
pois Deus era "pai de toda a humanidade", e não só do povo eleito.
As
ideias originais e revolucionárias de Jesus, que as mulheres então
compreendiam melhor do que os homens, foram se perdendo ao longo dos
séculos a ponto de um teólogo latino-americano chegar a dizer que as
ideias do profeta de Nazaré eram tão subversivas que "criaram uma Igreja
para combatê-las".
Jesus queria que Madalena fosse "também" sua discípula, como os discípulos varões. Daí a importância do papiro de Karen.
Ele
não fundou uma Igreja hierárquica, muito menos machista. Os evangelhos
inspirados e aprovados pela Igreja o descrevem como um judeu pouco
ortodoxo, "amigo de pecadores e prostitutas". Jesus amava as mulheres e
fez delas o gérmen da sua nova doutrina, a doutrina do amor universal,
do perdão e da felicidade.
Aos poucos aquela ideia original foi
morrendo pelo caminho, sob o peso de uma Igreja copiada do Império
Romano, masculina, de celibatários, mais baseada no Direito Canônico,
nas leis e proibições do que no "Espírito que sopra em toda parte" de
que Jesus falava e que já naquela época as mulheres entendiam melhor que
os apóstolos."
'E discípula, também'
"Fragmento de pergaminho reabre debate sobre a gnóstica Maria Madalena: teria sido não apenas mulher, mas confidente de Jesus?". Juan Arias, jornalista espanhol, foi correspondente na Itália e no Vaticano por 34 anos, inclusive durante a realização do Concílio Vaticano II, é autor de dois livros sobre João Paulo II, El enigma Wojtyla Madrid: El Pais, 1985 e Un Dios para Wojtyla. Barcelona: Grijalbo, 1996. Publicou também um livro sobre Maria, intitulado Maria, esa gran desconocida. Madrid: Maeva, 2005, traduzido para o português pela Editora Objetiva, sob o título Madalena: o último tabu do cristianismo, é o autor do artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 23-09-2012.Eis o artigo.
A opinião pública teve sua atenção voltada para uma frase contida num fragmento de papiro escrito em copta, língua do antigo Egito, revelado por Karen King, da Universidade Harvard, em Boston, uma das maiores autoridades mundiais em história do cristianismo.
A frase é aquela em que Jesus, falando aos discípulos, refere-se a "minha mulher", confirmando a tese de que o profeta judeu, que deu origem ao cristianismo, seria casado.
Entretanto, no mesmo papiro, os especialistas decifraram outra frase que, na minha opinião, é ainda mais importante. É aquela em que Jesus diz aos discípulos: "Ela pode ser minha discípula também".
Ele se referia a Maria Madalena. Por que esse "também"? Explico.
A frase nos leva a pensar que o papiro seria um fragmento de um evangelho gnóstico que remonta ao século 2º, e não de um evangelho apócrifo, como alguns quiseram pensar para diminuir a importância do mesmo.
Os evangelhos gnósticos são importantíssimos para se conhecer o nascimento do cristianismo e as primeiras lutas dialéticas entre as correntes filosóficas e teológicas das primeiras comunidades cristãs. Revelam uma corrente de pensamento alheia ao judaísmo clássico e ortodoxo que acabou fazendo parte do primeiro ideário cristão. E é nesses evangelhos que os apóstolos falam abertamente do matrimônio de Jesus com a gnóstica iluminada Maria de Magdala e das disputas e ciúmes dos apóstolos, concretamente de Pedro, em relação ao tratamento íntimo que o Mestre dava àquela mulher, que provavelmente nem era judia e a quem, segundo afirma Pedro, "ele revelava segredos" que escondia deles.
Os apóstolos não viam com bons olhos o fato de Madalena ser tida como a escolhida entre as mulheres (essas sim, judias) que acompanhavam Jesus como uma espécie de discípulas nas peregrinações. Madalena era aquela com quem ele mais se abria sobre as novas ideias do Reino de Deus que pregava pelas aldeias da Galileia.
O que ocorre é que Maria de Magdala - que um dia foi confundida até mesmo pela Igreja como a prostituta dos evangelhos - era diferente. Com ela Jesus mantinha uma intimidade especial.
Essa frase do papiro de Karen, "ela pode ser minha discípula também", é um eco das disputas com os apóstolos sobre a admissão daquela mulher gnóstica na comunidade apostólica. Jesus confirma que ela, apesar de pertencer provavelmente a uma seita diferente da judaica tradicional, podia ser "também", ou igualmente, sua discípula.
Hoje sabemos a importância do complexo pensamento filosófico e teológico gnóstico na formação do cristianismo original e o papel proeminente de Maria Madalena, a quem, segundo os evangelhos gnósticos, Jesus "beijava na boca". Uma expressão que, além da intimidade afetiva e sexual, revela um importante simbolismo, pois segundo os gnósticos o conhecimento se transmite através do beijo.
A diferença fundamental entre o pensamento oferecido ao cristianismo primitivo por Paulo de Tarso e o pensamento gnóstico reside no fato de que, enquanto para o judeu perseguidor de cristãos convertido ao cristianismo, e depois perseguidor de judeus, o que importa é a "teologia da cruz", segundo a qual o mal do mundo tem origem "no pecado". Para os gnósticos, ao contrário, o mal do mundo decorre da "falta de conhecimento" e sabedoria. De algum modo, a teologia de Paulo, que acabou triunfando, se fundamenta no sacrifício, ao passo que a gnóstica se baseia na felicidade que nasce da sabedoria e compreensão do mundo.
A corrente gnóstica era mais feminina e liderada por Maria Madalena. Por isso, nas primeiras comunidades cristãs no século 1º, a importância das mulheres se tornara fundamental. As primeiras eucaristias foram celebradas nas casas e elas, como os homens, eram sacerdotisas e até bispas, como se desprende das pinturas do século 3º existentes em algumas catacumbas de Roma que somente especialistas podem ver.
Mas aos poucos o pensamento teológico de Paulo de Tarso, bem mais misógino, acabou por se impor, nascendo assim a hierarquia masculina, que acabou relegando as mulheres a segundo plano.
Foi então que a corrente gnóstica passou a ser perseguida e seus escritos, queimados - menos alguns, que monges esconderam, enterraram e só foram descobertos há algumas décadas. Entre eles está o Evangelho de Maria Madalena, escrito por ela.
Nos primeiros séculos os evangelhos gnósticos tinham a mesma importância que os quatro canônicos e isso é demonstrado pelo fato de os padres da Igreja os qualificarem em seus escritos como autênticos. Sabemos da existência de alguns desses evangelhos, desaparecidos para sempre, justamente por essas citações.
Poucos teólogos cristãos e sobretudo estudiosos da Bíblia duvidam do matrimônio de Jesus com a gnóstica Maria Madalena. A igreja oficial sabe e por isso não se atreve a condenar os livros que defendem essa tese, como o meu, Madalena, o Último Tabu do Cristianismo, que prova a intimidade de Jesus com aquela mulher de Magdala com uma análise hermenêutica não apenas dos evangelhos gnósticos, mas também dos canônicos.
Uma prova irrefutável é o fato de que Jesus, recém ressuscitado, não apareceu para Pedro e os demais apóstolos, como seria normal, mas para Madalena, quando naquele tempo uma mulher não era confiável nem como testemunha em juízo. Por isso Pedro não acredita em Madalena e ele próprio se dirige à tumba para confirmar que ela estava vazia.
Até São Tomás de Aquino passou toda a vida perguntando-se por que Jesus não apareceu primeiro para Pedro. Pela simples razão de que Madalena era não só sua esposa, mas a discípula predileta, a depositária dos seus segredos. Lendo meu livro, o escritor José Saramago, Nobel de Literatura, disse a sua mulher, Pilar del Río: "É evidente. Se, ao morrer, eu pudesse aparecer para alguém, o faria para você, a pessoa a quem mais amo".
Hoje a Igreja, que mais do que fundada por Jesus o foi por Paulo de Tarso, seria muito diferente caso tivesse prevalecido a corrente gnóstica que esteve a ponto de eleger um dos primeiros papas.
E as mulheres não continuariam relegadas pela Igreja, impossibilitadas de exercer o sacerdócio, quando no cristianismo mais original o papel delas era fundamental.
Jesus, na realidade, jamais pensou em fundar uma nova religião. Era judeu, de nascimento e fé. Seu desejo era que o judaísmo, a primeira grande religião monoteísta da história, não ficasse restrito apenas aos judeus, mas abrisse suas portas para todos, pois Deus era "pai de toda a humanidade", e não só do povo eleito.
As ideias originais e revolucionárias de Jesus, que as mulheres então compreendiam melhor do que os homens, foram se perdendo ao longo dos séculos a ponto de um teólogo latino-americano chegar a dizer que as ideias do profeta de Nazaré eram tão subversivas que "criaram uma Igreja para combatê-las".
Jesus queria que Madalena fosse "também" sua discípula, como os discípulos varões. Daí a importância do papiro de Karen.
Ele não fundou uma Igreja hierárquica, muito menos machista. Os evangelhos inspirados e aprovados pela Igreja o descrevem como um judeu pouco ortodoxo, "amigo de pecadores e prostitutas". Jesus amava as mulheres e fez delas o gérmen da sua nova doutrina, a doutrina do amor universal, do perdão e da felicidade.
Aos poucos aquela ideia original foi morrendo pelo caminho, sob o peso de uma Igreja copiada do Império Romano, masculina, de celibatários, mais baseada no Direito Canônico, nas leis e proibições do que no "Espírito que sopra em toda parte" de que Jesus falava e que já naquela época as mulheres entendiam melhor que os apóstolos.
Fonte: IHU
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