PICICA: "Um amigo que trabalhava no ministério do Meio Ambiente
na época de Marina Silva me criticava dizendo que essa minha conversa de
ficar longe do Estado era romântica e absurda, que tínhamos que tomar o
poder, sim. Eu respondia que, se tínhamos de tomar o poder, era preciso
saber manter o poder depois, e era aí que a coisa pegava. Não tenho um
desenho político para o Brasil, não tenho a pretensão de saber o que é
melhor para o povo brasileiro em geral e como um todo. Só posso externar
minhas preocupações e indignações, e palpitar, de verdade, apenas ali
onde me sinto seguro.
Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia
de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições
ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de
civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e
norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que
fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos
desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai
acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses têm
5000 anos de historia cultural praticamente continua, e o que nós temos a
oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste
historia de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a
falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas
elites políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se
inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros
historicamente ofereceram, e de assim articular as condições de uma
civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV. Temos
de mudar completamente, para começar, a relação secularmente predatória
da sociedade nacional com a natureza, com a base físico-biológica da
própria nacionalidade. E está na hora de iniciarmos uma relação nova com
o consumo, menos ansiosa e mais realista diante da situação de crise
atual. A felicidade tem muitos caminhos."
Outros valores, além do frenesi de consumo
Eduardo Viveiros de Castro dispara: iludido por noção ultrapasada de progresso, Brasil pode desperdiçar oportunidade única de propor novo modelo civilizatório
Entrevista a Júlia Magalhães
–
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Caminhos para a Política Cidadã no século 21
Em meio a críticas e esperanças, pensadores e ativistas debatem como superar crise da representação e reinventar democracia.
Leia também, nesta série, as entrevistas com Fernando Meirelles e Ricardo Abramovay
–
“É preciso insistir no fato de que é possível ser feliz sem o frenesi de consumo que a mídia nos impõe”, reafirma o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, à jornalista Júlia Magalhães. Para ele, assim como para Fernando Meirelles e Ricardo Abramovay – primeiros entrevistados da sério Outra Política – a felicidade pode ter outros caminhos. O novo diálogo é parte da série que o Instituto Ideafix produziu por encomenda do IDS (Instuto Democracia e Sustentabilidade), e que o site publica na seção especial “Outra Política“.
Pesquisador e professor de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) e sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA), Viveiros insiste em que só pela educação avançaremos rumo a uma sociedade mais democrática. “A falta de educação é o nó cego responsável por esse conservadorismo reacionário de boa parte da população”, diz ele. Vai além: arrisca dizer que haveria uma conspiração para impedir os brasileiros de ter acesso a educação ou conexão de à internet de qualidade – conquistas que permitiriam ampliar o acesso a produtos e bens culturais.
Ainda como Meirelles e Abramovay, Viveiros insiste em políticas que reduzam a desigualdade e favoreçam novos padrões de consumo. “É um absurdo afirmar que produzir mais carros é sinal de pujança, utilizar esse dado como indicador de melhoria econômica.”
Para o antropólogo, a mobilização pelas causas ambientais é importante, mas ainda está longe de corresponder à gravidade do problema. É preciso ampliar o universo dos que se preocupam, lembrar “que saneamento básico, dengue e lixo são problemas ambientais”. Viveiros está alarmado: “as pessoas fingem não saber o que está acontecendo, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior”. O raciocínio é semelhante ao de Fernando Meirelles, diretor de Ensaio sobre a Cegueira: “Apenas cegos, cínicos ou oportunistas recusam-se a enxergar”.
Diferentemente de Abramovay – que vê germinar um trabalho sério nas empresas e acredita que a sociedade terá força e atitude para impor limites à iniciativa privada –, Viveiros de Castro considera que as corporações não são capazes de ir além do “capitalismo verde”, fingindo responsabilidade social e ambiental. Os dois se alinham, contudo, na esperança depositada nas redes sociais como canais de expressão, opinião, colaboração e mobilização.
“Não existe um rumo Brasil”, alerta Viveiros de Castro, ao falar sobre a fratura que marca a sociedade brasileira contrapondo as forças vivas do autoritarismo e do racismo aos setores que buscam a inovação. “O Brasil é um país escravocrata, racista, que não fez reforma agrária, e precisa fazê-la”, diz.
Não por coincidência, dissse o mesmo, há pouco, Mano Brown, em vídeo gravado na Ocupação Mauá, centro de São Paulo. “O Brasil está em transição, não sabe se é um país moderno ou se está ainda em 1964. Tem uma geração de direita ainda viva – Kassab é de direita, Alckmin é de direita – que tem um modus operandi dos caras da antiga, de usar a força, o poder.” A seguir, a entrevista (Inês Castilho).
Qual é sua percepção sobre a participação política do brasileiro?
Preferiria começar por uma desgeneralização:
vejo a sociedade brasileira como profundamente dividida no que concerne à
sua visão do país e do futuro. A ideia de que existe um Brasil,
no sentido não-trivial das ideias de unidade e de brasilidade,
parece-me uma ilusão politicamente conveniente (sobretudo para os
dominantes) mas antropologicamente equivocada. Existem no mínimo dois,
e, a meu ver, bem mais Brasis. O conceito geopolítico de Estado-nação
unificado não é descritivo, mas prescritivo. Há fraturas profunda na
sociedade brasileira. Há setores da população com uma vocação
conservadora imensa; eles não integram necessariamente uma classe
específica, embora as chamadas “classes médias”, ascendentes ou
descendentes, estejam bem representadas ali. Grande parte da chamada
sociedade brasileira — a maioria, infelizmente, temo — se sentiria muito
satisfeita sob um regime autoritário, sobretudo se conduzido
mediaticamente pela autoridade paternal de uma personalidade forte. Mas
isso é uma daquelas coisas que a minoria libertária que existe no país,
ou mesmo uma certa medioria “progressista”, prefere manter envolta em um
silêncio embaraçado. Repete-se a todo e a qualquer propósito que o povo
brasileiro é democrático, “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e
da fraternidade – o que me parece uma ilusão muito perigosa. É assim
que vejo a “participação política do povo brasileiro”: fraturada,
dividida, polarizada, uma polarização que não está necessariamente em
harmonia com as divisões politicas oficiais (partidos etc.). O Brasil
permanece uma sociedade visceralmente escravocrata, renitentemente
racista, e moralmente covarde. Enquanto não acertarmos contas com esse
inconsciente, não iremos “para a frente”. Em outros momentos, é claro,
soluços insurreicionais esporádicos, e uma certa indiferença pragmática
em relação aos poderes constituídos, que se testemunha sobretudo entre
os mais pobres, ou os mais alheios ao teatro montado pelo andar de cima,
inspiram modestas utopias e moderados otimismos por parte daqueles que a
historia colocou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em
suma.
Falar, resistir, insistir, olhar por cima do imediato – e, evidentemente, educar.
Mas não “educar o povo”, como se a elite fosse muito educada e
devêssemos (e pudéssemos) trazer o povo para um nível superior; mas sim
criar as condições para que o povo se eduque e acabe educando a elite,
quem sabe até livrando-se dela. A paisagem educacional do Brasil de hoje
é a de uma terra devastada, um deserto. E não vejo nenhuma iniciativa
consistente para tentar cultivar esse deserto. Pelo contrário: chego a
ter pesadelos conspiratórios de que não interessa ao projeto de poder em
curso modificar realmente a paisagem educacional do Brasil: domesticar a
força de trabalho, se é que é isso mesmo que se está sinceramente
tentando (ou planejando), não é de forma alguma a mesma coisa que
educar.
Isto é só um pesadelo, decerto: não é assim, não pode
ser assim, espero que não seja assim. Mas fato é que não se vê uma
iniciativa de modificar a situação. Vê-se é a inauguração bombástica de
dezenas de universidades sem a mínima infra-estrutura física (para não
falar de boas bibliotecas, luxo quase impensável no Brasil), enquanto o
ensino fundamental e médio permanecem grotescamente inadequados, com
seus professores recebendo uma miséria, com as greves de docentes
universitários reprimidas como se eles fossem bandidos. A “falta” de
instrução — que é uma forma muito particular e perversa de instrução
imposta de cima para baixo — é talvez o principal fator responsável pelo
conservadorismo reacionário de boa parte da sociedade brasileira. Em
suma, é urgente uma reforma radical na educação brasileira.
“A floresta e a escola”, sonhava Oswald de Andrade.
Infelizmente, parece que deixaremos de ter uma e ainda não teremos a
outra. Pois sem escola, aí é que não sobrará floresta mesmo.
Por onde começaria a reforma na educação?
Começaria por baixo, é lógico, no ensino fundamental –
que continua entregue às moscas. O ensino público teria de ter uma
política unificada, voltada para uma – com perdão da expressão –
“revolução cultural”. Não adianta redistribuir renda (ou melhor,
aumentar a quantidade de migalhas que caem da mesa cada vez mais farta
dos ricos) apenas para comprar televisão e ficar vendo o BBB e porcarias
do mesmo quilate, se não redistribuímos cultura, educação, ciência e
sabedoria; se não damos ao povo condições de criar cultura em lugar de
apenas consumir aquela produzida “para” ele. Está havendo uma melhora do
nível de vida dos mais pobres, e talvez também da velha classe média –
melhora que vai durar o tempo que a China continuar comprando do Brasil e
não tiver acabado de comprar a África. Apesar dessa melhora no chamado
nível de vida, não vejo melhora na qualidade efetiva de vida, da vida
cultural ou espiritual, se me permitem a palavra arcaica. Ao contrário.
Mas será que é preciso mesmo destruir as forças vivas, naturais e
culturais, do povo, ou melhor, dos povos brasileiros para construir uma
sociedade economicamente mais justa? Duvido.
Nesse cenário, quais os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, hoje?
Vejo a “sociedade brasileira” imantada, pelo menos no
plano de sua auto-representação normativa por via da midia, por um
ufanismo oco, um orgulho besta, como se o mundo (desta vez, enfim) se
curvasse ao Brasil. Copa, Olimpíadas… Não vejo mobilização sobre temas
urgentíssimos, como esses da educação e da redefinição de nossa relação
com a terra, isto é, com aquilo que está por baixo do território.
Natureza e Cultura, em suma, que hoje não apenas se acham mediadas,
mediatizadas pelo Mercado, mas mediocrizadas por ele. O Estado se aliou
ao Mercado, contra a Natureza e contra a Cultura.
Existe alguma preocupação da opinião pública com a
questão ambiental, um pouco maior do que com a educacional – o que não
deixa de ser para se lamentar, pois as duas vão juntas. Mas tudo me
parece “too little, too late”: muito pouco, e muito tarde. Está
demorando tempo demais para se espalhar a consciência ambiental, o
sentido de urgência absoluta que a situação do planeta impõe a todos
nós. Essa inércia se traduz em pouca pressão sobre os governos, as
corporações, as empresas – estas investindo cada vez mais na historia da
carochinha do “capitalismo verde”. E pouca pressão sobre a grande
imprensa, suspeitamente lacônica, distraída e incompetente quando se
trata da questão das mudanças climáticas.
Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo,
por Belo Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que tem o
apoio desinformado (é o que se infere) de porções significativas da
população do Sul e Sudeste, para onde irá boa parte da energia que não
for vendida a preço de banana paras as multinacionais do alumínio
fazerem latinha de sakê, no baixo Amazonas, para o mercado asiático. Faz
falta um discurso politico mais agressivo em relação à questão
ambiental. É preciso sobretudo falar aos povos, chamar a
atenção de que saneamento básico é um problema ambiental, dengue é
problema ambiental, lixão é problema ambiental. Não é possível separar
desmatamento de dengue e de saneamento básico. É preciso convencer a
população mais pobre de que melhorar as condições ambientais é garantir
as condições de existência das pessoas. Mas a esquerda tradicional, como
se está comprovando, mostra-se completamente despreparada para
articular um discurso sobre a questão ambiental. Quando suas cabeças
mais pensantes falam, tem-se a sensação de que estão apenas “correndo
atrás”, tentando desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um
tema novo, um problema muito real que não estava em seu DNA ideológico e
filosófico. Isso quando ela, a esquerda, não se alinha com o
insustentável projeto ecocida do capitalismo, revelando assim sua comum
origem com este último, lá nas brumas e trevas da metafísica
antropocêntrica do Cristianismo.
Enquanto acharmos que melhorar a vida das pessoas é
dar-lhes mais dinheiro para comprarem uma televisão, em vez de melhorar o
saneamento, o abastecimento de água, a saúde e a educação fundamental,
não vai dar. Você ouve o governo falando que a solução é consumir mais,
mas não vê qualquer ênfase nesses aspectos literalmente fundamentais da
vida humana nas condições dominantes no presente século.
Não se diga, por suposto, que os mais favorecidos pensem
melhor e vejam mais longe que os mais pobres. Nada mais idiota do que
esses Land Rovers que a gente vê a torto e a direito em São Paulo ou no
Rio, rodando com plásticos do Greenpeace e slogans “ecológicos” colados
nos pára-brisas. Gente refestelada nessas banheiras 4×4 que atravancam
as ruas e bebem o venenoso óleo diesel, gente que acha que “contato com a
natureza” é fazer rally no Pantanal…
É uma situação difícil: falta instrução básica, falta
compromisso da midia, falta agressividade política no tratar da questão
do ambiente — isso quando se acha que há uma questão ambiental, o que
está longe de ser o caso de nossos atuais Responsáveis. Estes mostram,
ao contrário e por exemplo, preocupação em formar jovens que dirijam com
segurança, e assim ao mesmo tempo mantêm sua aposta firme no futuro do
transporte por carro individual numa cidade como São Paulo, em que não
cabe nem mais uma agulha. Um governo que não se cansa de arrotar
grandeza sobre a quantidade de veiculos produzidos por ano. É um absurdo
utilizar os números da produção de veiculos como indicador de
prosperidade econômica. Isso é uma proposta podre, uma visão tacanha, um
projeto burro de país.
Você está dizendo que muitos apelos ao consumo
vêm do próprio governo. Mas também há um apelo muito grande que vem do
mercado. Como você avalia isso?
O Brasil é um país capitalista periférico. O capitalismo
industrial-financeiro é considerado por quase todo mundo hoje como uma
evidência necessária, o modo incontornável de um sistema social
sobreviver no mundo de hoje. Entendo, ao contrário de alguns
companheiros de viagem, que o capitalismo sustentável é uma contradição
em termos, e que se nossa presente forma de vida econômica é realmente necessária,
então logo nossa forma de vida biológica, isto é, a espécie humana,
vai-se mostrar desnecessária. A Terra vai favorecer outras alternativas.
A ideia de crescimento negativo, ou de objeção ao
crescimento, a ética da suficiência são contraditórias com a lógica do
capital. O capitalismo depende do crescimento contínuo. A ideia
manutenção de um determinado patamar de equilíbrio na relação de troca
energética com a natureza não cabe na matriz econômica do capitalismo.
Esse impasse, queiramos ou não, vai ser “solucionado”
pelas condições termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto
do que imaginávamos. As pessoas fingem não saber o que está
acontecendo, preferem não pensar no assunto, mas o fato é que temos que
nos preparar para o pior. E o Brasil, ao contrário, está sempre se
preparando para o melhor. O otimismo nacional diante de uma situação
planetária para lá de inquietante é extremamente perigoso, e a aposta de
que vamos nos dar bem dentro do capitalismo é algo ingênua, se é que
não é, quem sabe, desesperada.. O Brasil continua sendo um país
periférico, uma plantation relativamente high tech que
abastece de produtos primários o capitalismo central. Vivemos de
exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne, para
os países industrializados – e são eles que dão as cartas, controlam o
mercado. Estamos bem nesse momento, mas de forma alguma em posição de
controlar a economia mundial. Se mudar um pouco para um lado ou para o
outro, o Brasil pode simplesmente perder esse lugar à janela onde está
sentado hoje. Sem falar, é claro, no fato de que estamos vivendo uma
crise econômica mundial que se tornou explosiva em 2008 e está longe de
acabar; ninguém sabe onde ela vai parar. O Brasil, nesse momento da
crise, está em uma espécie de contrafluxo do tsunami, mas quando a onda
quebrar vai molhar muita gente. Essas coisas têm de ser ditas.
E como você avalia a relação dessa realidade
macropolítica, macroeconômica, com as realidades do Brasil rural, dos
ribeirinhos, dos indígenas?
O projeto de Brasil que tem a presente coalizão
governamental sob o comando do PT é um no qual ribeirinhos, índios,
camponeses, quilombolas são vistos como gente atrasada, retardados
socioculturais que devem ser conduzidos para um outro estágio. Isso é
uma concepção tragicamente equivocada. O PT é visceralmente paulista,
seu projeto é uma “paulistanização” do Brasil. Transformar o interior do
país numa fantasia country: muita festa do peão boiadeiro,
muito carro de tração nas quatro, muita música sertaneja, bota, chapéu,
rodeio, boi, eucalipto, gaúcho. E do outro lado cidades gigantescas e
impossíveis como São Paulo. O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar a
se civilizar, a se domesticar, a se rentabilizar, a se capitalizar.
Esse é o velho bandeirantismo que tomou conta de vez do projeto
nacional, em uma continuidade lamentável entre as geopolítica da
ditadura e a do governo atual. Mudaram as condições políticas formais,
mas a imagem do que é uma civilização brasileira, do que é uma vida que
valha a pena ser vivida, do que é uma sociedade que esteja em sintonia
consigo mesma, é muito, muito parecida. Estamos vendo hoje, numa ironia
bem dialética, o governo comandado por uma pessoa perseguida e torturada
pela ditadura realizando um projeto de sociedade encampado e
implementado por essa mesma ditadura: destruição da Amazônia,
mecanização, transgenização e agrotoxificação da “lavoura”, migração
induzida para as cidades. Por trás de tudo, uma certa ideia de Brasil
que o vê, no início do século XXI, como se ele devesse ser o que os
Estados Unidos foram no século XX. A imagem que o Brasil tem de si mesmo
é, sob vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos
filmes de Hollywood dos anos 50 – muito carro, muita autoestrada, muita
geladeira, muita televisão, todo mundo feliz. Quem pagava por tudo isso
éramos, entre outros, nós. (Quem nos pagará, agora? A África, mais uma
vez? O Haiti? A Bolivia?). Isso sem falarmos na massa de infelicidade
bruta gerada por esse modo de vida para seus beneficiários mesmo.
É isso que vejo, uma tristeza: cinco séculos de
abominação continuam aí. Sarney é um capitão hereditário, como os que
vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios. O nosso
governo dito de esquerda governa com a permissão da oligarquia e dos
jagunços destas para governar, ou seja, pode fazer várias coisas desde
que a parte do leão continue com ela. Toda vez que o governo ensaia
alguma medida que ameace isso,o congresso, eleito sabe-se como, breca, a
imprensa derruba, o PMDB sabota.
Há uma série de impasses para os quais não vejo saída,
não vejo como sair por dentro do jogo político tradicional, com as
presentes regras – vejo mais como sendo possível pelo lado do movimento
social. Este está desmobilizado; se não está, o que mais se ouve é que
ele está. Mas se não for por via do movimento social, vamos continuar
vivendo nesse paraíso subjuntivo, aquele em que um dia tudo vai ficar
ótimo. O Brasil é um país dominado politicamente por grandes
proprietários e grandes empreiteiros, que não só nunca fez sua reforma
agrária, como onde se diz que já não é mais preciso fazê-la.
Você acha que as coisas vão começar a mudar quando chegarem a um limite?
A crise econômica mundial vai provavelmente pegar o
Brasil no contrapé em algum momento próximo. Mas o que vai acontecer com
certeza é que o mundo todo vai passar por uma transição ecológica,
climática e demográfica muito intensa nos próximos 50 anos, com
epidemias, fomes, secas, desastres, guerras, invasões. Estamos vendo as
condições climáticas mudarem muito mais aceleradamente do que
imaginávamos, e é grande a possibilidade de catástrofes, de quebras de
safras, de crises de alimentos. Por ora, hoje, isso está até
beneficiando o Brasil. Mas um dia a conta vai chegar. Os
climatologistas, os geofísicos, os biólogos e os ecólogos estão
profundamente pessimistas quanto ao ritmo, as causas e as consequências
da transformação das condições ambientais em que se desenvolve hoje a
vida da espécie. Porque haveria eu de estar otimista?
Penso que é preciso insistir que é possível ser feliz
sem se deixar hipnotizar por esse frenesi de consumo que a mídia nos
impõe. Não sou contra o crescimento econômico no Brasil, não sou idiota a
ponto de achar que tudo se resolveria distribuindo a grana do Eike
Batista entre os camponeses do semi-árido nordestino ou cortando os
subsídios aos clãs político-mafiosos que governam o país. Não que isso
não fosse uma boa ideia. Mas sou contra, isso sim, o crescimento da
“economia” mundial, e sou a favor de uma redistribuição das taxas de
crescimento. Sou também obviamente a favor de que todos possam comprar
uma geladeira, e, por que não, uma televisão — mas sou a favor de que
isso envolva a máxima implementação das tecnologias solar e eólica. E
teria imenso prazer em parar de andar de carro se pudéssemos trocar esse
meio absurdo de transporte por soluções mais inteligentes.
É muito difícil falar de uma geração à qual não se
pertence. Na década de 60 tínhamos ideias confusas mas ideais claros,
achávamos que podíamos mudar o mundo, e sabíamos que tipo de mundo
queríamos. Acho que, no geral, os horizontes utópicos se retraíram
enormemente.
No Brasil, a aceleração da difusão do que podemos chamar
de cultura agro-sulista, tanto à direita como à esquerda, pelo interior
do país. Vejo isso como a consumação do projeto de branqueamento da
nacionalidade, esse modo muito peculiar da elite dominante acertar suas
contas com o próprio passado (passado?) escravista.
Outra mudança importante foi a consolidação de uma
cultura popular ligada ao movimento evangélico. O evangelismo das
igrejas universais do reino de Deus e congêneres está evidentemente
associado à religião do consumo, aliás.
Isso é uma das poucas coisas com que estou bastante
otimista: o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total das
mídias por cinco ou seis grandes grupos. Esse enfraquecimento está
acontecendo com a proliferação das redes sociais, que são a grande
novidade na sociedade brasileira e que estão contribuindo para fazer
circular um tipo de informação que não tinha trânsito na imprensa
oficial, e permitindo formas de mobilização antes impossíveis. Há
movimentos inteiramente produzidos dentro das redes sociais, como a
marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada” em
Higienópolis, os vários movimentos contra Belo Monte, a mobilização
pelas florestas. As redes são nossa saída de emergência para a aliança
mortal entre governo e mídia. São um fator de desestabilização, no
melhor sentido da palavra, do arranjo de poder dominante. Se alguma
grande mudança no cenário político brasileiro vier a acontecer, creio
que vai passar por essa mobilização das redes.
Por isso se intensificam as tentativas de controlar
essas redes por parte dos poderes constituídos – isso no mundo inteiro.
Pelo controle ao acesso ou por instrumentos vergonhosos, como o
“projeto” brasileiro de banda larga, que começa pelo reconhecimento de
que o serviço será de baixa qualidade. Uma decisão tecnolotica e
política antidemocrática e antipopular, equivalente ao que se faz com a
educação: impedir que a população tenha acesso pleno à circulação
cultural. Parece mesmo, às vezes, que há uma conspiração para impedir
que os brasileiros tenham uma educação boa e acesso de qualidade à
internet. Essas coisas vão juntas e têm o mesmo efeito, que é o aumento
da inteligência social, algo que, pelo jeito, é preciso controlar com
muito cuidado.
Um amigo que trabalhava no ministério do Meio Ambiente
na época de Marina Silva me criticava dizendo que essa minha conversa de
ficar longe do Estado era romântica e absurda, que tínhamos que tomar o
poder, sim. Eu respondia que, se tínhamos de tomar o poder, era preciso
saber manter o poder depois, e era aí que a coisa pegava. Não tenho um
desenho político para o Brasil, não tenho a pretensão de saber o que é
melhor para o povo brasileiro em geral e como um todo. Só posso externar
minhas preocupações e indignações, e palpitar, de verdade, apenas ali
onde me sinto seguro.
Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia
de que o Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições
ecológicas, geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de
civilização, um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e
norte-europeu. Poderíamos começar a experimentar, timidamente que
fosse, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos
desenvolvidos na Europa moderna. Mas imagino que, se algum país vai
acabar fazendo isso no mundo, será a China. Verdade que os chineses têm
5000 anos de historia cultural praticamente continua, e o que nós temos a
oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste
historia de etnocídio, deliberado ou não. Mesmo assim, é indesculpável a
falta de inventividade da sociedade brasileira, pelo menos das suas
elites políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões de se
inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros
historicamente ofereceram, e de assim articular as condições de uma
civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV. Temos
de mudar completamente, para começar, a relação secularmente predatória
da sociedade nacional com a natureza, com a base físico-biológica da
própria nacionalidade. E está na hora de iniciarmos uma relação nova com
o consumo, menos ansiosa e mais realista diante da situação de crise
atual. A felicidade tem muitos caminhos.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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