setembro 21, 2012

"La vida útil de Federico Vieiroj", por Leandro Calbente

PICICA: "[...]é importante esclarecer o sentido de cinefilia. É bastante comum chamarmos de cinéfilo alguém que gosta muito de cinema, que assiste uma infinidade de filmes, mantendo-se informado sobre o assunto, sobre as novidades, curiosidades e possuindo todo tipo de erudição sobre o cinema. Ainda que esse sentido seja bastante válido e disseminado, quando penso em cinefilia, penso noutra coisa. Penso muito mais numa sociabilidade que nasceu em torno dos clubes, cinemas e locais públicos de exibição de filmes, formando pontos de encontro e locais de interação e discussão do cinema e suas linguagens. Nesses locais, o cinéfilo poderia encontrar filmes pouco acessíveis e bastante raros, que não teriam espaço nas salas de exibição mais comerciais (o cinema autoral, de “qualidade”, de “arte”, etc…denominações, aliás, elaboradas pelos próprios cinéfilos). Foi em torno desses locais que surgiram grupos interessados na disseminação de um conhecimento sobre o cinema, dando origem a revistas, jornais, livros e outras publicações especializadas. Esse conhecimento moldou a experiência do cinema, criando hierarquias e classificações, linhagens e linguagens, consagrando determinadas figuras e expurgando outras. Para o cinéfilo, o cinema jamais é visto como uma mera diversão, mas como um objeto de profunda reflexão, que exige repetidas visadas do mesmo filme, na busca de uma compreensão alargada e mais profunda não apenas da obra contemplada, mas também da própria arte cinematográfica. Há uma espécie de ideal pedagógico subjacente à cinefilia: a experiência do cinema é uma experiência de formação e educação do olhar, na busca de uma maior sensibilidade para as regras próprias do discurso cinematográfico. É por isso que o intercâmbio entre os cinéfilos é tão importante, as trocas, os debates, as reflexões conjuntas, as polêmicas, enfim toda uma rede discursiva emerge dessa sociabilidade cinéfila."

La vida útil de Federico Vieiroj



La vida útil é uma bela reflexão sobre a cinefilia no mundo contemporâneo. Para isso, o diretor uruguaio Federico Vieiroj parte de uma trama muito simples, a decadência e o fechamento da Cinemateca Uruguaya de Montevidéu. O protagonista é Jorge, um antigo funcionário do cinema. É a ele que cabe, junto com o quadro diretivo, a organização e o gerenciamento da cinemateca, garantindo que o espaço mantenha sua tradição de qualidade na exibição de filmes que não encontram espaço em cinemas mais comerciais, como filmes suecos, filmes italianos dos anos 60, clássicos do cinema mudo, a produção uruguaia recente ou mesmo uma retrospectiva do diretor português Manoel de Oliveira, entre outras grandes obras cinematográficas. Fica evidente que a cinemateca aparece como um espaço dedicado à cinefilia e aos cinéfilos. O problema, porém, é que não parece existir mais um número suficiente de cinéfilos para continuar sustentando a existência daquele lugar. A falta de financiamento, a dificuldade para encontrar associados fixos, os crescentes custos de manutenção, as dívidas, e mesmo a parca venda de ingressos, assombram a cinemateca e Jorge não encontra alternativa para superar a crise. Nesse sentido, os problemas da cinemateca podem ser vistos como uma espécie de metáfora para uma crise das práticas cinéfilas no presente. Para entender isso, antes de tudo, é importante esclarecer o sentido de cinefilia. É bastante comum chamarmos de cinéfilo alguém que gosta muito de cinema, que assiste uma infinidade de filmes, mantendo-se informado sobre o assunto, sobre as novidades, curiosidades e possuindo todo tipo de erudição sobre o cinema. Ainda que esse sentido seja bastante válido e disseminado, quando penso em cinefilia, penso noutra coisa. Penso muito mais numa sociabilidade que nasceu em torno dos clubes, cinemas e locais públicos de exibição de filmes, formando pontos de encontro e locais de interação e discussão do cinema e suas linguagens. Nesses locais, o cinéfilo poderia encontrar filmes pouco acessíveis e bastante raros, que não teriam espaço nas salas de exibição mais comerciais (o cinema autoral, de “qualidade”, de “arte”, etc…denominações, aliás, elaboradas pelos próprios cinéfilos). Foi em torno desses locais que surgiram grupos interessados na disseminação de um conhecimento sobre o cinema, dando origem a revistas, jornais, livros e outras publicações especializadas. Esse conhecimento moldou a experiência do cinema, criando hierarquias e classificações, linhagens e linguagens, consagrando determinadas figuras e expurgando outras. Para o cinéfilo, o cinema jamais é visto como uma mera diversão, mas como um objeto de profunda reflexão, que exige repetidas visadas do mesmo filme, na busca de uma compreensão alargada e mais profunda não apenas da obra contemplada, mas também da própria arte cinematográfica. Há uma espécie de ideal pedagógico subjacente à cinefilia: a experiência do cinema é uma experiência de formação e educação do olhar, na busca de uma maior sensibilidade para as regras próprias do discurso cinematográfico. É por isso que o intercâmbio entre os cinéfilos é tão importante, as trocas, os debates, as reflexões conjuntas, as polêmicas, enfim toda uma rede discursiva emerge dessa sociabilidade cinéfila. Isso tudo, evidentemente, exigia o lugar do encontro, onde essa sociabilidade poderia ser exercitada e praticada cotidianamente. E a Cinemateca Uruguaya seria um desses lugares. Era lá que os cinéfilos poderiam encontrar cópias dos seus filmes imperdíveis, vendo e revendo aqueles filmes que se tornaram clássicos e obras fundamentais para a formação do olhar cinéfilo. No filme, encontramos uma formulação lapidar dessa relação entre cinefilia e a cinemateca: numa das propagandas exibidas antes do início de uma das sessões, fala-se que “você gosta do melhor cinema… você necessita da Cinemateca”. Era apenas nesses espaços, quase sagrado para um cinéfilo, que o espectador poderia encontrar a oportunidade de se encontrar com o verdadeiro cinema, com a verdade do cinema. Isso, porém, mudou com o advento de novas tecnologias de reprodução de filmes. A introdução do videocassete e do dvd, seguida pela distribuição digital de filmes na internet, alterou radicalmente essa necessidade do local de encontro. Um espectador interessado num filme raro ou sem chances de distribuição comercial pode, agora, encontrá-lo nos inúmeros sites de compartilhamento que existem por aí. Essa mudança afeta diretamente as práticas de cinefilia. Afinal, se antes existia necessariamente uma prática pública e coletiva de exibição e discussão de filmes, agora não é mais necessário a construção desse local (físico) de encontro. Pode-se, então, notar uma espécie de esgotamento ou esvaziamento de inúmeras práticas que se formaram ao redor da cinefilia. As dificuldades financeiras dos cineclubes e cinematecas, a diminuição das publicações especializadas tradicionais (revistas, jornais), o deslocamento dos debates públicos para o mundo digital, a crise da crítica (e da verdade do crítico profissional) são alguns símbolos desse esgotamento. É disso que trata La vida útil. A crise da cinemateca, retratada no filme, é muito mais a crise da cinefilia, que parece já não encontrar um espaço no mundo contemporâneo. Tudo na cinemateca, como retratada pelo diretor uruguaio, parece velho, desgastado, exaurido. E o próprio protagonista, Jorge, é o símbolo máximo dessa exaustão, de alguém que tenta defender sem muita convicção um mundo que não mais se sustenta. O interessante, porém, é que isso não aparece como uma catástrofe. Não há aqui um olhar saudosista diante de algo que está se extinguindo. Ao contrário. É como se dos escombros da cinefilia pudesse nascer uma nova relação com o cinema. Com o fechamento derradeiro da cinemateca, na parte final do filme, nos deparamos com um Jorge revigorado e em busca de algo pelas ruas da cidade. Carregando apenas sua maleta, com as lembranças do tempo em que permaneceu na cinemateca, Jorge parece tudo menos abatido pelo fim do lugar onde viveu parte significativa de sua vida. O que ele busca é a chance de um novo encontro, um (re)encontro com o cinema e com a vida. E esse (re)encontro começa com o abandono do passado. A cena da maleta, esquecida propositalmente por Jorge, é a essência desse deixar-para-trás. A cinemateca fica, o cinema continua. E o encontro de Jorge com a professora universitária, encerrando o filme, não podia começar de outra maneira do que com um convite para o cinema, um cinema novo, um cinema amoroso e desembaraçado da sacralidade da cinefilia.

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