PICICA: "Trata-se de pensar (e constituir) uma Universidade que produz um
conhecimento nômade. Sabemos que é em torno da produção e da difusão do
saber que se organizam, hoje em dia, as redes de cooperação social
produtiva, que furam as antigas e as novas cercas através das quais a
dominação, perpetuando-se, perpetua a exploração. Diante disso, a
Universidade Nômade é uma rede de redes que produz conhecimento de
maneira transversal: em relação com o fora, rompendo as cercas que
separam o trabalho intelectual (acadêmico) do trabalho em geral (manual,
subordinado)."
[...]
"Mas
nossa era não é apenas crepuscular. Ao fim de um ciclo abrem-se amplas
oportunidades, e cabe a nós transformar a crise da representação e do
capitalismo cognitivo em novas formas de democracia absoluta. Para além
das esferas formais, dos Estados e nacionalidades. Para além do
capitalismo financeiro e flexível. Lá onde brilha nossa singularidade
comum: a mulher, o negro, o índio, o amarelo, o pobre, o explorado, o
precário, o haitiano, o boliviano, o imigrante, o favelado, o
trabalhador intelectual e manual. Não se trata de um recitar de
excluídos, mas de uma nova inclusão híbrida. A terra, enfim, nossa. Nós
que somos produzidos por esta chuva, esta precipitação de encontros de
singularidades em que nos fazemos divinos nesta terra."
Caravana Nômade
A REDE UNIVERSIDADE NÔMADE
A rede de movimentos que denominamos Universidade Nômade é composta por núcleos, grupos de pesquisa, militantes de pré-vestibulares populares, movimentos culturais, revistas, artistas e etc. Pretendemos constituiruma pauta comum em torno de três grandes temas, todos eles ligados aos desafios da “mudança” que marcam esse início de década no Brasil. São eles:
- a universalização dos direitos;
- a fuga (o êxodo do nômade) dos aparelhos de dominação;
- a produção e o acesso ao conhecimento.
- a fuga (o êxodo do nômade) dos aparelhos de dominação;
- a produção e o acesso ao conhecimento.
Com o termo de Universidade, pretendemos afirmar que a mudança passa pela abertura de uma nova era de universalização dos direitos.
Com o termo de Nômade, entendemos essa universalização como sendo interna a um processo de produção dos direitos. Processo este que é necessariamente nômade, isto é, transversal com relação à atual hierarquia e à divisão social do poder e do saber.
Trata-se de pensar (e constituir) uma Universidade que produz um conhecimento nômade. Sabemos que é em torno da produção e da difusão do saber que se organizam, hoje em dia, as redes de cooperação social produtiva, que furam as antigas e as novas cercas através das quais a dominação, perpetuando-se, perpetua a exploração. Diante disso, a Universidade Nômade é uma rede de redes que produz conhecimento de maneira transversal: em relação com o fora, rompendo as cercas que separam o trabalho intelectual (acadêmico) do trabalho em geral (manual, subordinado).
O nomadismo de que se trata aqui pode ser desmembrado em duas direções. De dentro para fora, a Universidade pode refundar sua dimensão pública, abrindo brechas nas cercas que produzem e reproduzem as velhas e as novas formas de subordinação. No mesmo movimento transversal, mas de fora para dentro, a Universidade Nômade visa colocar a produção do conhecimento em ligação direta com o trabalho da resistência: o dos movimentos sociais múltiplos que constróem máquinas de produção contra os aparelhos estatais e corporativos de perpetuação da desigualdade social e racial.
Resistir e produzir! Produzir e difundir o conhecimento são momentos que se misturam de maneira irreversível, sendo assim, universalizar os direitos significa produzi-los.
Universalizar e produzir os direitos: a multidão para além do Povo
A nova era de universalização dos direitos só poderá ser uma era de produção transversal desses direitos pois, para que os direitos se tornem universais, eles devem tornar-se, antes de mais nada, materiais. Para isso, é necessária uma crítica sistemática ao individualismo mas também ao e seu cúmplice, o corporativismo. Uma crítica ao mercado e ao Estado que aparecem atualmente como os únicos regimes possíveis de produção de direitos. Precisamos, portanto, demolir as velhas mistificações segundo as quais “a lei, numa democracia, estende (as oportunidades) a todos os cidadãos, iguais por definição”1.
A crítica ferrenha ao individualismo, ao direito puramente formal do indivíduo imerso na, supostamente “livre”, competição do mercado, passa pela crítica de sua face especular, o nacionalismo estatalista, que entende o direito como sistema regressivo de concessões e de privilégios garantidos pelo Estado e pela sua suposta comunidade originária (a Nação e o seu Povo).
Individualismo e nacionalismo estatal representam, na realidade, as duas faces da mesma moeda e é por isso que as oligarquias e as corporações de todos os tipos transitam indiferentemente de um para o outro: do individualismo ao nacionalismo e vice-versa2. É exatamente através desses mecanismos que a vontade de “todos” (a chamada soberania do Povo) se torna, de fato, poder de “um” sobre “muitos”, pois a vontade (geral) do soberano livrou-se de suas fontes constituintes, os governados. O nacionalismo é a engrenagem fundamental desse mecanismo de compatibilização entre individualismo e Estado que, pela afirmação de uma identidade nacional (“o” povo) que supostamente preexistiria à fundação da sociedade, afirma o Estado como única verdadeira fonte de soberania e, deste modo, separa os processos de universalização dos direitos dos processos de produção destes direitos. Por outro lado, a propriedade privada torna a liberdade um mero exercício formal entre desiguais e a marcha da liberdade é, assim, reduzida à liberdade do mercado ou sacrificada em nome do interesse superior da nação (o “ideal” da conquista do poder).
O debate sobre políticas afirmativas se desenvolve justamente no bojo dessas mistificações. A principal delas é a da mestiçagem, em nome da qual o vergonhoso racismo constitutivo dos aparelhos de dominação no Brasil pretende, paradoxalmente, negar a correlação entre discriminação racial (de cor) e desigualdade social (de renda). Propala-se que a nação precisa de UM povo e, neste ponto de vista, a mestiçagem funciona, apenas, como discurso mítico sobre a origem passada de uma realidade hoje em dia unitária e constituída: a do Povo brasileiro. “O Brasil é um país mestiço”, afirma-se solenemente, para se destacar, em seguida, a importância do nacionalismo como sensação de pertinência a um povo.
A oligarquia (nacionalista, mas não menos oligárquica) reconhece o processo de mestiçagem, mas apenas para negá-lo duplamente: nega a dimensão infinitamente múltipla (de cores, culturas, linguagens etc.) que a mestiçagem produz- e não relega ao passado, mas atualiza diariamente-, para, ao mesmo tempo, negar-lhe o conteúdo de resistência constituinte em face das formas mais perversas de dominação que caracterizam a formação do Estado em geral, bem como sua versão neo-escravocrata no Brasil. Formas as mais perversas de dominação incidem assim sobre a vida, instaurando um poder sobre a vida, um biopoder.
Ambas as faces dessa dupla negação convergem no consenso primário entre as elites estatais, que afirmam e reafirmam que “A luta brasileira contemporânea é social e não racial”. Como se o racismo fosse um fenômeno cultural e não a cobertura cultural de uma inferiorização destinada à fomentar a discriminação sócio-econômica3. A solução, infinitamente repetida, seria simples: “com pleno emprego, o negro pobre terá vez (junto com o branco pobre, diga-se de passagem)”. Mais uma vez, na mais pura tradição estamentária, as elites estatais e as de berço se encontram para afirmar que a universidade “pública” não deve aceitar cotas que rompam a hierarquia. Ela deve continuar funcionando, assim, como uma engrenagem fundamental de reprodução do aparelho de dominação da sociedade do trabalho e das “cercas” que a sustentam.
Falamos do nômade aqui como aquele que constitui uma máquina de produção que se opõe aos aparelhos administrativos, tanto do mercado, quanto do Estado. A unidade das lutas específicas que o nômade produz só pode ser uma unidade nômade. Por estar em relação com o fora, ela não reproduz a unidade despótica interna (“o” Povo mestiço), mas mantém e potencializa sua multiplicidade, a potência da multidão, que são as “inúmeras” cores da mestiçagem. Não é o mestiço, ou seja, uma outra forma de homogeneidade, que interessa, mas a mestiçagem, a multiplicidade infinita. Na transversalidade do nômade, a individuação, pela singularidade, está estreitamente ligada ao devir do ser, ao devir mestiço da vida.
O nômade desenha um outro espaço, um espaço aberto, sem cercas nem propriedade. O nômade produz um outro tipo de conhecimento, um contra-saber adequado ao seguinte desafio, extremamente atual: como encontrar uma unidade pontual das lutas sem com isso cair em uma organização despótica e burocrática, como a do partido ou a do aparelho de Estado?
Para não totalizar, pois a totalização cai sempre do lado do poder, temos que instaurar conexões laterais, como em um movimento de redes. O desafio é, pois, o de constituir a unidade do que é, e continua sendo, múltiplo. Não como na idéia abstrata de “Povo”4, em nome do qual nega-se a existência das discriminações racistas e produzem-se outras formas de inferiorização (por exemplo, xenófobas), mas em uma dinâmica concreta da “multidão”, que combate toda forma de discriminação para manter sua multiplicidade, suas singularidades. A liberdade do Povo é uma afirmação meramente formal, negada, de fato, pela burocracia estatal ou, no máximo, relegada ao acaso, relegada à fortuna do mercado. A liberdade da multidão é, ao contrário, continuamente reafirmada, pois a multiplicidade é que constitui sua liberdade.
Por separar o principio constitutivo da liberdade de sua fonte, quando se exerce uma soberania “em nome” do povo (como na figura do soberano), a liberdade do Povo deve ter a desigualdade como pressuposto, sendo, ela própria, nada mais do que a liberdade do soberano. A liberdade, neste caso, não é o exercício da multiplicidade, mas a sua negação. Pobres e ricos, negros e brancos devem negar suas singulares condições materiais e culturais para irem encaixar-se na condição abstrata e geral da cidadania formal, como “brasileiros”, “americanos”, “iraquianos” e etc. A mestiçagem reduz-se a “um” conjunto cinza: “o” Povo”. Paradoxalmente, é em nome desses princípios conservadores e “burgueses” que boa parte da “esquerda” universitária dispara um verdadeiro fogo cruzado contra toda idéia que vise introduzir políticas afirmativas para o acesso às Universidades estatais (chamadas de públicas).
A liberdade da multidão pressupõe a igualdade como condição de seu exercício e, por isso, precisa produzir uma cidadania material que só pode existir na medida em que não haja nenhuma separação entre o sujeito e o exercício da soberania. A liberdade é, assim, o exercício da multiplicidade, das singularidades. A mestiçagem forma um infinito arco-íris5 e a multidão, para se reconhecer enquanto tal, produz ações afirmativas que rompem as correlações perversas que ligam o racismo à desigualdade. Nesse sentido, a cidadania da multidão só pode ser material e, desse modo, universal.
A liberdade do nômade, nas universidades estatais, deve vir de fora para dentro, a partir da máquina de produção social para furar as cercas que protegem os privilégios dentro dos aparelhos de controle do saber, em seus moldes de reprodução e de conservação das relações sociais vigentes. Nômades, como o movimento dos pré-vestibulares para negros e carentes ou os movimentos culturais dos jovens oriundos da segregação urbana, produzem o território público. As políticas afirmativas constituem um instrumento fundamental para abrir o espaço cercado do poder (acadêmico) ao território público do saber (universal).
Universalizar e produzir o conhecimento: a questão das Universidades
Universalizar e produzir os direitos constituem dois momentos inseparáveis para uma unidade das lutas que não deixe de se fundar em sua multiplicidade. O sujeito múltiplo dessa produção é nômade.
Não se trata de “conceder” direitos aos excluídos, mas de se apropriar deles nas próprias dinâmicas de resistência, e nas próprias transformações, que as lutas contra a exclusão e o racismo determinam.
O contra-poder não quer nada, pois ele é o que quer dentro das lutas.
O contra-saber, o conhecimento do nômade fura as cercas das instituições acadêmicas e rompe o estatuto exclusivo do discurso intelectual, para recolocá-lo dentro das dinâmicas de constituição da multidão.
A questão do acesso ao conhecimento e de sua produção é, portanto, uma questão da Universidade em geral e das Universidades “públicas” em particular e representa um campo fundamental de convergência das linhas de fuga (de êxodo) do neoliberalismo e dos aparelhos de Estado, possibilitando a construção de um espaço público de trabalho comum (universalização dos direitos e do protesto).
Em outras palavras, no horizonte das relações complexas entre Universidade e universalização dos direitos, a fuga que resiste ao neoliberalismo, e às suas novas formas de fragmentação, emerge como uma luta contra as velhas formas de segregação corporativas (estatais).
A proposta da Universidade Nômade enxerga o aparelho corporativo vigente no sistema de ensino público superior como um dos principais mecanismos de perpetuação da desigualdade social, profundamente atrelada às mil formas de racismo que estruturam a sociedade pós-escravagista brasileira.
Disfarçado por um discurso “progressista”, e às vezes “esquerdista”, um pacto profundamente conservador sustenta o consenso da mediocridade e do oportunismo nas universidades federais e estaduais. As falhas do sistema “público” de ensino são sistematicamente imputadas ao “mal funcionamento” (externo à Universidade) do ensino fundamental e médio e ao processo de “privatização”. As Universidades estaduais e federais não teriam nenhuma responsabilidade nisso, pelo contrário, elas representariam o que há de bom, logo o que deve ser “conservado”.
A Universidade Nômade recusa o pacto conservador da mediocridade que sustenta essa análise oportunista.
As condições injustas de acesso ao ensino superior constituem mecanismos fundamentais de perpetuação e de naturalização da desigualdade e do racismo que assolam o pais e que devem ser desmontados aqui e agora. Pior, a não democratização do ensino superior é um dos limites fundamentais ao seu próprio desenvolvimento. Neste caso, é a quantidade que pode gerar a qualidade e todo discurso que oponha a abertura do acesso (a quantidade) à manutenção da qualidade (para poucos) é antidemocrático e desmentido pela força dos fatos. Acontece que a produção científica e a inovação são também fenômenos sociais e uma prova disso é o fato de que as sociedades que os produzem são atravessadas por materiais processos de universalização dos direitos, dentre eles, o de acesso ao ensino superior.
É o sistema de ensino como um todo que deve ser objeto de crítica. O que, no Brasil, as Universidades públicas (na realidade apenas “estatais”) têm de melhor, em termos de qualidade e condições salariais, não são conseqüência de nenhum movimento universalizador, nem de nenhuma vocação pública, mas apenas da função estratégica que elas tiveram na produção e na reprodução do estado nacional-desenvolvimentista e dos privilégios de suas elites burocráticas e tecnocráticas (que incluem banqueiros e industriais). A previdência do setor público não é conseqüência de nenhum passo em direção à universalização dos direitos, mas é uma concessão interna (no máximo de tipo “isonomia” corporativa) ao emaranhado perverso de privilégios que as elites estatais se outorgaram, desde a época da colonização, e que a ditadura concedeu, com grande generosidade, a si mesma.
Esse papel das universidades estatais é irreversível e duplamente ultrapassado: pela crise do Estado, ligada à emergência de um regime de acumulação (isto é, de um processo de trabalho) baseado no domínio da produção cognitiva , ou seja, da difusão do saber; e pela dimensão social de uma produção do conhecimento que depende das redes horizontais de cooperação produtiva e, portanto, de seus níveis de publicização e de acesso universal, ou seja, da socialização do saber.
As universidades estatais estão, portanto, ultrapassadas, tanto do ponto de vista da acumulação, quanto do ponto de vista da resistência. Por isso, os neoliberais tinham conseguido hegemonizar o tema das reformas, e um governo que pretende mudar, como o governo Lula, acaba recolocando em pauta algumas dessas reformas, como é o caso da reforma da previdência. Só que, dessa vez, as dificuldades estão do lado dos interesses corporativos, que não podem mais esconder a dimensão corporativa da defesa dos privilégios- traduzida na disposição de não abrir mão deles-, sustentando tal disposição no fato de que outros “corpos” institucionais continuam gozando de privilégios. Sem contar como, em nome da hipócrita defesa de um ensino superior público de qualidade destinado a poucos, acabou-se por abrir caminho para o escandaloso desenvolvimento exponencial das universidades particulares para muitos.
Não precisamos do último escândalo de corrupção (qual exemplo escolher?!) para saber que o verdadeiro desafio para o Brasil é a construção da esfera pública diante da forma mais perversa de privatização, a que tem como figura fundamental o Estado (fiscal ou policial que seja) e sua tradição estamentária. As Universidades estatais não fogem dessa triste regra. O que é escandaloso é o poder, e não apenas os seus “desvios”.
Nas questões do ensino, em geral, e do ensino superior, em particular, a crítica à ideologia do mercado, e de seu simulacro de espaço público, deve ligar-se, com urgência, aos movimentos que lutam contra a abusiva identificação entre o “público” e o “estatal”, identificação esta que o corporativismo de todos os tipos cultiva cuidadosamente.
Lutas contra o neoliberalismo e lutas contra o corporativismo devem se alimentar umas às outras. Na passagem de uma para a outra, a luta passa de dentro para fora e, reciprocamente, de fora para dentro das cercas a partir das quais organizam-se as diversas formas de fragmentação social e de segregação espacial. É nessa passagem que as lutas produzem uma transmutação, que a resistência re-existe, que a universalização dos direitos encontra sua única possibilidade de ser efetiva: a produção dos direitos.
Universalizar o direito à Universidade significa, hoje, repensar e refundar suas bases públicas (a universitas, a comunidade) de fora para dentro, isto é, a partir da multidão dos excluídos que lutam para furar a cerca. Mas, ao mesmo tempo, refundar as bases sociais da Universidade (torná-la efetivamente pública) implica em transformar a natureza dos processos de produção e de difusão do conhecimento: produzir um saber nômade, ou seja um contra-saber de lutas que, unificando-se, não reduzem suas fontes, mas potencializam suas múltiplas dinâmicas.
A Universidade Nômade produziu, desde 2001, os seguintes eventos:
00. Multidão e Biopoder (LABTeC/UFRJ, 2001)
01. Questão Racial e Ações Afirmativas (LABTeC/UFRJ, 2001)
02. O trabalho da Multidão (II Fórum Social de POA, 2002)
03. O trabalho da Multidão (Museu da República e UFRJ, 2002)
04. Colóquio Resistências (Cinema Odeon, 2002)
05. Seminários Nômades (em várias instituições, 2003)
06. As Multidões e o Império (conferência de Antonio Negri, Palácio Capanema, 2003)
07. Seminário Internacional Economia do Conhecimento (Palácio Capanema, 2005)
08. Mídia da Crise ou Crise da Mídia (na ECO/UFRJ, 2006)
09. Seminário Internacional Capitalismo Cognitivo (no CCBB, 2006)
10. Seminários A Constituição do Comum (UFES, maio 2007)
11. Seminários A Constituição do Comum (UFRJ, maio/junho 2007)
12. Seminários A Constituição do Comum (UFBA, julho 2007)
13. Seminários A Constituição do Comum (UFPA, setembro 2007)
14. Cultura, trabalho e natureza na Globalização (Casa de Rui Barbosa, 2008)
15. Mundovix (UFES, 2008)
16. I Fórum Livre do Direito Autoral (ECO/UFRJ, 2008)
17. Cultura, trabalho e vida na crise do capitalismo global (Casa de Rui Barbosa, 2009)
18. Resistência e Criação: mídia, cultura e lutas no capitalismo cognitivo (CRB, 2009)
19: MundoBraz: O Devir Brasil do Mundo e o Devir-Mundo do Brasil (CRB – 2010)
20: DO Direito do Trabalho ao Trabalho dos Direitos: Seminário de Homenagem a Joaquin H. Flores (agosto de 2010)
21: Espiral-Terra, MundoBrasil (ciclo de colóquiosCRB 2011)
22: Revolução 2.0 Seminário Internacional, Agosto de 2011
23: A Constituição do Comum: Seminário com Antonio Negri, Novembro de 2011 (na CRB)
Notas:
1. José C. de Assis. “Do contra, sim”. Editorial de FOLHA UFRJ Ano I, N. 0. p. 2.
2. ”A nação, no sentido preciso e moderno do termo, e o nacionalismo (…) estão historicamente vinculados ao individualismo como valor. A nação é precisamente o tipo de sociedade como conjunto correspondente ao reino do individualismo como valor. (…)”. Louis Dumont. O Individualismo. Ed. Rocco. Rio de Janeiro. 2000. p. 21.
3. Do mesmo jeito que as leis de controle dos migrantes estrangeiros alimentam os mercados de trabalho das economias centrais de contingentes inesgotáveis de trabalhadores clandestinos sem estatuto.
4. “Povo mestiço”, como se houvesse populações que não fossem mestiças, como se a mestiçagem fosse efetivamente racial e não cultural.
5. Não é por acaso que essa foi a bandeira do grande movimento global que invadiu as ruas de todas as cidades do mundo nas manifestações contra a guerra imperial permanente, em fevereiro e março de 2003.
Junho de 2012
A palavra revolução voltou a circular. Nas ruas, nas praças, na internet, e até mesmo nas páginas de jornal, que a olha com olhos temerosos. Mas, principalmente, em nossos espíritos e corpos. Da mesma maneira, a palavra capitalismo saiu de sua invisibilidade: já não nos domina como dominava. Assistimos ao final de um ciclo – o ciclo neoliberal implementado a partir dos anos 80, mas cujo ápice se deu com a queda do muro de Berlim e o consenso global em torno da expansão planetária do mercado. Muitos dentre nós (principalmente os jovens) experimentam seu primeiro deslocamento massivo das placas tectônicas da história.
Mas nossa era não é apenas crepuscular. Ao fim de um ciclo abrem-se amplas oportunidades, e cabe a nós transformar a crise da representação e do capitalismo cognitivo em novas formas de democracia absoluta. Para além das esferas formais, dos Estados e nacionalidades. Para além do capitalismo financeiro e flexível. Lá onde brilha nossa singularidade comum: a mulher, o negro, o índio, o amarelo, o pobre, o explorado, o precário, o haitiano, o boliviano, o imigrante, o favelado, o trabalhador intelectual e manual. Não se trata de um recitar de excluídos, mas de uma nova inclusão híbrida. A terra, enfim, nossa. Nós que somos produzidos por esta chuva, esta precipitação de encontros de singularidades em que nos fazemos divinos nesta terra.
É pelo que clama a multidão na Grécia, na Espanha e os occupy espalhados pelos Estados Unidos; é pelo que clamam as radicalidades presentes na primavera árabe, esta multidão situada para além da racionalidade ocidental. É o mesmo arco que une a primavera árabe, as lutas dos estudantes no Chile e as lutas pela radicalização da democracia no Brasil. Nossas diferenças é o que nos torna fortes.
A luta pela mestiçagem racial, simbólica, cultural e financeira passa pela materialidade do cotidiano, pela afirmação de uma longa marcha que junte nossa potência de êxodo e nossa potência constituinte. Acontecimento é o nome que nos anima para o êxodo perpétuo das formas de exploração. Êxodo para dentro da terra. Fidelidade à terra. Tatu or not tatu.
É preciso ouvir em nós aquele desejo que vai para além da vida e da sua conservação: para além do grande terror de uma vida de merda que nos impõe o estado de precariedade e desfiliação extrema. É preciso re-insuflar o grito que nos foi roubado à noite, resistir aos clichês que somos, e que querem fazer de nós: para além de nossas linhas de subjetivação suspensas entre o luxo excedente do 1% ou do lixo supérfluo dos 99%.
É preciso não precisar de mais nada, a não ser nossa coragem, nosso intelecto e nossos corpos, que hoje se espraiam nas redes de conhecimentos comuns apontando para nossa autonomia. Somos maiores do que pensamos e desejamos tudo. Não estamos sozinhos! É preciso resistir na alegria, algo que o poder dominador da melancolia é incapaz de roubar. Quando o sujeito deixa de ser um mero consumidor-passivo para produzir ecologias. Um corpo de vozes fala através de nós porque a crise não é apenas do capital, mas sim do viver. Uma profunda crise antropológica. Manifesta-se no esvaziamento de corpos constrangidos, envergonhados, refletidos na tela da TV, sem se expandir para ganhar as ruas. Nossos corpos paralisam, sentem medo, paranóia: o outro vira o grande inimigo. Não criam novos modos de vida. Permanecem em um estado de vidaMenosvida: trabalho, casa, trem, ônibus, trabalho, casa. A vida individual é uma abstração. Uma vida sem compartilhamento afetivo, onde a geração do comum se torna impossível. É preciso criar desvios para uma vidaMaisvida: sobrevida, supervida, overvida. Pausa para sentir parte do acontecimento, que é a vida. Somos singularidades cooperativas. Pertencemos a uma esfera que nos atravessa e nos constrói a todo o momento.
O capitalismo cognitivo e financeiro instaura um perpétuo estado de exceção que busca continuamente reintegrar e modular a normalidade e a diferença: lei e desordem coincidem dentro de uma mesma conservação das desigualdades que produz e reproduz as identidades do poder: o “Precário” sem direitos, o Imigrante “ilegal”, o “Velho” abandonado, o “Operário” obediente, a “Mulher” subjugada, a “Esposa” dócil, o “Negro” criminalizado e, enfim, o “Depressivo” a ser medicalizado. As vidas dos pobres e dos excluídos passam a ser mobilizadas enquanto tais. Ao mesmo tempo em que precisam gerar valor econômico, mantêm-se politicamente impotentes.
O pobre e o louco. O pobre – figura agora híbrida e modulada de inclusão e exclusão da cadeia do capital - persiste no cru da vida, até usando seu próprio corpo como moeda. E o louco, essa figura que vive fora da história, “escolhe” a exclusão. Esse sujeito que se recusa a produzir, vive sem lugar. Onde a questão de exclusão e inclusão é diluída no delírio. Ninguém delira sozinho, delira-se o mundo. Esses dois personagens vivem e sobrevivem à margem, mas a margem transbordou e virou centro. O capital passa a procurar valor na subjetividade e nas formas de vida das margens e a potência dos sem-dar-lucro passa a compor o sintoma do capital: a crise da lei do valor, o capitalismo cognitivo como crise do capitalismo.
A crise dos contratos subprimes em 2007, alastrando-se para a crise da dívida soberana europeia, já não deixa dúvidas: a forma atual de governabilidade é a crise perpétua, repassada como sacrifício para os elos fragilizados do arco social. Austeridade, cortes, desmonte do welfare, xenofobia, racismo. Por detrás dos ternos cinza dos tecnocratas pós-ideológicos ressurgem as velhas bandeiras do biopoder: o dinheiro volta a ter rosto, cor, e não lhe faltam ideias sobre como governar: “que o Mercado seja louvado”, “In God we trust”. O discurso neutro da racionalidade econômica é obrigado a mostrar-se em praça pública, convocando o mundo a dobrar-se ao novo consenso, sem mais respeitar sequer a formalidade da democracia parlamentar. Eis o homo œconomicus: sacrifício, nação, trabalho, capital! É contra este estado de sítio que as redes e a ruas se insurgem. Nas mobilizações auto-convocadas em redes, nas praças das acampadas, a exceção aparece como criatividade do comum, o comum das singularidades que cooperam entre si.
No Brasil são muitos os que ainda se sentem protegidos diante da crise global. O consenso (neo) desenvolvimentista produzido em torno do crescimento econômico e da construção de uma nova classe média consumidora cria barreiras artificiais que distorcem nossa visão da topologia da crise: a crise do capitalismo mundial é, imediatamente, crise do capitalismo brasileiro. Não nos interessa que o Brasil ensine ao mundo, junto à China, uma nova velha forma de capitalismo autoritário baseado no acordo entre Estados e grandes corporações!
O governo Lula, a partir das cotas, do Prouni, da política cultural (cultura viva, pontos de cultura) e da distribuição de renda (programas sociais, bolsa família, valorização do salário mínimo) pôde apontar, em sua polivalência característica, para algo que muitos no mundo, hoje, reivindicam: uma nova esquerda, para além dos partidos e Estados (sem excluí-los). Uma esquerda que se inflame dos movimentos constituintes que nascem do solo das lutas, e reverta o Estado e o mercado em nomes do comum. Uma esquerda que só pode acontecer “nessa de todos nós latino-amarga américa”. Mais do que simples medidas governamentais, nestas políticas intersticiais, algo de um acontecimento histórico teve um mínimo de vazão: aqueles que viveram e morreram por transformações, os espectros das revoluções passadas e futuras, convergiram na construção incipiente de nossa emancipação educacional, racial, cultural e econômica. Uma nova memória e um novo futuro constituíram-se num presente que resistira ao assassinato simbólico da história perpetrado pelo neoliberalismo. A popularidade dos governos Lula tinha como lastro esses interstícios onde a política se tornava uma poética. Já hoje, nas taxas de aprovação do governo Dilma, podemos facilmente reconhecer também as cores deslavadas de um consenso prosaico. O “país rico” agora pacifica-se no mantra desenvolvimentista, retrocedendo em muitas das políticas que tinham vazado. Voltam as velhas injunções progressistas: crescimento econômico para redistribuir! Estado forte! As nuvens ideológicas trazem as águas carregadas do gerencialismo e do funcionalismo tecnocrático: menos política, mais eficiência! Desta maneira, removem-se e expropriam-se os pobres: seja em nome de um Brasil Maior e se seu interesse “público” (Belo Monte, Jirau, Vila Autódromo), seja em nome de um Mercado cada vez Maior e de seu interesse “privado” (Pinheirinho, TKCSA, Porto do Açu). Juntando-se entusiasticamente às equações do mercado, os tratores do progresso varrem a sujeira na construção de um novo “País Rico (e) sem pobreza”. Os pobres e as florestas, as formas de vida que resistem e persistem, se tornam sujeira. A catástrofe ambiental (das florestas e das metrópoles) e cultural (dos índios e dos pobres) é assim pacificada sob o nome do progresso. Dominação do homem e da natureza conjugam-se num pacto fáustico presidido por nenhum Mefistófeles, por nenhuma crise de consciência: já somos o país do futuro!
Na política de crescer exponencialmente, só se pensa em eletricidade e esqueceu-se a democracia (os Soviets : Conselhos). Assim, governa-se segundo a férrea lógica – única e autoritária – da racionalidade capitalista. Ataca-se enfim a renda vergonhosa dos “banquiplenos”, mas a baixa dos juros vai para engordar os produtores de carros, essas máquinas sagradas de produção de individualismo, em nome da moral do trabalho. Dessa maneira, progredir significa, na realidade, regredir: regressão política como acontece na gestão autoritária das revoltas dos operários das barragens; regressão econômica e biológica, como acontece com uma expansão das fronteiras agrícolas que serra a duração das relações entre cultura e natureza; regressão da vida urbana, com a remoção de milhares de pobres para abrir o caminho dos megaeventos; regressão da política da cultura viva, em favorecimento das velhas oligarquias e das novas indústrias culturais. O progresso que nos interessa não contém nenhuma hierarquia de valor, ele é concreta transformação qualitativa, “culturmorfologia”.
Este é o imaginário moderno em que a dicotomia prevalece: corpo e alma, natureza e cultura, nós e os outros; cada macaco no seu galho! Estes conceitos resultam em uma visão do mundo que distancia o homem da ecologia e de si mesmo. O que está em questão é a maneira de viver no planeta daqui em diante. É preciso encontrar caminhos para reconciliar estes mundos. Perceber outras configurações relacionais mais móveis, ativar sensibilidades. Fazer dessa revolução um grande caldeirão de desejos que crie formas de cooperação e modos de intercâmbio, recombine e componha novas práticas e perspectivas: mundos. Uma mestiçagem generalizada: nossa cultura é nossa economia e nosso ambiente é nossa cultura: três ecologias!
As lutas da primavera Árabe, do 15M Espanhol, do Occupy Wall Street e do #ocupabrasil gritam por transformação, aonde a base comum que somos nos lança para além do estado de exceção econômico: uma dívida infinita que busca manipular nossos corações e manter-nos acorrentados aos medos. Uma dívida infinita que instaura a perpétua transferência de renda dos 99% dos devedores ao 1% dos credores. Não deixemos que tomem por nós a decisão sobre o que queremos!
A rede Universidade Nômade se formou há mais de dez anos, entre as mobilizações de Seattle e Gênova, os Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e a insurreição Argentina de 2001 contra o neoliberalismo. Foram dois momentos constituintes: o manifesto inicial que chamava pela nomadização das relações de poder/saber, com base nas lutas dos pré-vestibulares comunitários para negros e pobres (em prol da política de cotas raciais e da democratização do acesso ao ensino superior); e o manifesto de 2005 pela radicalização democrática. Hoje, a Universidade Nômade acontece novamente: seu Kairòs (o aqui e agora) é aquele do capitalismo global como crise. Na época da mobilização de toda a vida dentro da acumulação capitalista, o capitalismo se apresenta como crise e a crise como expropriação do comum, destruição do comum da terra. Governa-se a vida: a catástrofe financeira e ambiental é o fato de um controle que precisa separar a vida de si mesma e opõe a barragem aos índios e ribeirinhos de Belo Monte, as obras aos operários, os megaeventos aos favelados e aos pobres em geral, a dívida aos direitos, a cultura à natureza. Não há nenhum determinismo, nenhuma crise terminal. O capital não tem limites, a não ser aqueles que as lutas sabem e podem construir. A rede Universidade Nômade é um espaço de pesquisa e militância, para pensar as brechas e os interstícios onde se articulam as lutas que determinam esses limites do capital e se abrem ao possível: pelo reconhecimento das dimensões produtivas da vida através da renda universal, pela radicalização democrática através da produção de novas instituições do comum, para além da dialética entre público e privado, pelo ressurgimento da natureza como produção da diferença, como luta e biopolítica de fabricação de corpos pós-econômicos. Corpos atravessados pela antropofagia dos modernistas, pelas cosmologias ameríndias, pelos êxodos quilombolas, pelas lutas dos sem teto, sem terra, precários, índios, negros, mulheres e hackers: por aqueles que esboçam outras formas de viver, mais potentes, mais vivas.
Fonte: Rede Universidade Nômade
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