PICICA: "Versão restaurada de Oito e Meio traz as sombras da criação de Fellini"
O lugar do sonho
Versão restaurada de Oito e Meio traz as sombras da criação de Fellini
por Rosane Pavam
—
publicado
17/01/2016
Um filme sobre o cinema, um filme que é o próprio cinema
A Doce Vida lhe dera a fama de escândalo junto à Igreja e as portas abertas ao cinema. Federico Fellini
havia então acertado um novo longa com seu produtor, mas corria 1962 e
ele não conseguia dizer a Angelo Rizzoli sobre o que filmaria. O
argumento parecia claro, contudo, após sua visita a uma estação termal. O
diretor relataria a própria crise como artista e colocaria sobre ela as
sombras do passado. Seria sua obra de número “oito e meio”, realizada
após seis longas de autoria própria e três “metades”, dois curtas em
filmes de episódios e uma direção na companhia de Alberto Lattuada.
Oito e Meio se tornaria a
obra-prima felliniana, a significar tantas outras coisas além daquele
revolver de um poderoso eu. Era um filme sobre o cinema, era o cinema.
Ainda que sempre alegasse não ter o que dizer em seus filmes, Fellini
orgulhava-se de expressar o não dito, como se poderia verificar desde a
exuberante primeira sequência.
Preso ao tráfego, Marcello Mastroianni
olha angustiado para os ocupantes indiferentes de outros automóveis, às
vezes congelados em fotografias. E como fugir desse lugar? Todo o filme,
que agora se pode saborear como um sonho, restaurado em tela grande,
parece expresso nesse início algo saído de uma história em quadrinhos,
aquelas que o próprio Fellini sabia desenhar.
A ficção navegava em torno da contradição
da fé familiar, do difícil confronto com a expectativa paterna, de um
perigoso reviver da figura da mãe, que por alguns segundos, no filme,
parecia querer beijar sensualmente o filho. As figuras femininas se
sucediam, crescentes e exigentes. Anouk Aimée, que para Fellini
representava “esse tipo de mulher que nos perturba até morrer”, com uma
“sensualidade quase metafísica” escondida sob a máscara de menina,
interpreta a esposa do diretor de cinema Guido Anselmi. E Marcello
Mastroianni o vive de modo a aumentar Fellini, caricaturizá-lo diante
daquela Claudia Cardinale que encenava a perfeição.
Era igualmente uma obra sobre a viagem interna de um intelectual, sempre um “desesperado” nos filmes do cineasta, como escreveu Italo Calvino
certa vez. Mastroianni interpretava o tipo suspenso no ar, sensível
como Fellini, mas ainda juvenil, cínico enquanto sonhador, quase saído
de uma página desenhada por Winsor McCay, ídolo do cineasta em um século
precedente.
Fonte: Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário