janeiro 06, 2016

'Toda a representação está num impasse'. Entrevista especial com Giuseppe Cocco (IHU)

PICICA: "O cenário político para 2016, segundo ano do segundo mandato da presidente Dilma, “será dominado por pelo menos três embates interligados: o processo de impeachment, os desdobramentos da crise econômica e a chegada em Brasília da Lava Jato”, calcula Giuseppe Cocco na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail.

Depois de se encerrar o ano de 2015 com “taxas oficiais de 10,70% de inflação e uma recessão de 3,7%”, este ano, tanto para a política quanto para a economia e para a resolução ou ampliação de questões sociais, “será ainda pior” do que o anterior, por conta de dois aspectos centrais: a enxurrada de aumento dos preços administrados, como o gás, o transporte público e o combustível, e o panorama de recessão que “corre para a depressão”, avalia.

Segundo Cocco, a troca do Ministro da Fazenda no final do ano passado também não apresenta uma mudança significativa e faz com que o Brasil inicie 2016 “sem nenhuma perspectiva definida”. “A gestão de Nelson Barbosa não tem como inventar muita coisa, não há muitas margens de manobra. Para avançar, podemos propor duas linhas de reflexão: (1) voltar sobre o modelo predador implementado por Lula-Dilma (que chamaremos do ‘modo Odebrecht de governar’) e (2) avançar algumas hipóteses sobre a eventual inflexão no Ministério da Fazenda (que de maneira alguma será uma guinada à esquerda)”, pontua.

Na entrevista a seguir, o cientista político comenta ainda as dificuldades que a presidente Dilma e o governo enfrentarão tanto por conta da baixa popularidade, quanto por causa da atual situação financeira dos estados e municípios, que “estão literalmente quebrados, sem pagar serviços básicos, atrasando vencimentos dos servidores, sem pagar fornecedores, sem capacidade nenhuma de investimento, e com o sistema de saúde – que já era péssimo – colapsado”. E acrescenta: “Para termos uma ideia das loucuras que foram feitas desde 2011 é preciso fazer uma ginástica incrível: é desses dias a notícia de que ficamos com R$ 214 bilhões de dívida por causa dos empréstimos subsidiados do BNDES às empresas (184 bilhões irão para a dívida pública e 30 bilhões serão pagos pelo Tesouro). Depois há o capítulo incrível da renúncia fiscal, que passou de 3,68% do PIB (em 2011) para 4,76% (em 2014). A crise dos municípios e dos estados vem dessa política que esvaziou os fundos de participação dos estados e dos munícipios”.

Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova, é mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), é doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira)." 

'Toda a representação está num impasse'. Entrevista especial com Giuseppe Cocco

“O governismo não acredita na sociedade, mas somente no Estado e no capital (ou seja, nas hibridizações dos dois). Nesse horizonte, ele deverá necessariamente implementar as reformas que o ‘mercado’ quer”, afirma o cientista político.

Imagem: migueldaoud
O cenário político para 2016, segundo ano do segundo mandato da presidente Dilma, “será dominado por pelo menos três embates interligados: o processo de impeachment, os desdobramentos da crise econômica e a chegada em Brasília da Lava Jato”, calcula Giuseppe Cocco na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail.

Depois de se encerrar o ano de 2015 com “taxas oficiais de 10,70% de inflação e uma recessão de 3,7%”, este ano, tanto para a política quanto para a economia e para a resolução ou ampliação de questões sociais, “será ainda pior” do que o anterior, por conta de dois aspectos centrais: a enxurrada de aumento dos preços administrados, como o gás, o transporte público e o combustível, e o panorama de recessão que “corre para a depressão”, avalia.

Segundo Cocco, a troca do Ministro da Fazenda no final do ano passado também não apresenta uma mudança significativa e faz com que o Brasil inicie 2016 “sem nenhuma perspectiva definida”. “A gestão de Nelson Barbosa não tem como inventar muita coisa, não há muitas margens de manobra. Para avançar, podemos propor duas linhas de reflexão: (1) voltar sobre o modelo predador implementado por Lula-Dilma (que chamaremos do ‘modo Odebrecht de governar’) e (2) avançar algumas hipóteses sobre a eventual inflexão no Ministério da Fazenda (que de maneira alguma será uma guinada à esquerda)”, pontua.

Na entrevista a seguir, o cientista político comenta ainda as dificuldades que a presidente Dilma e o governo enfrentarão tanto por conta da baixa popularidade, quanto por causa da atual situação financeira dos estados e municípios, que “estão literalmente quebrados, sem pagar serviços básicos, atrasando vencimentos dos servidores, sem pagar fornecedores, sem capacidade nenhuma de investimento, e com o sistema de saúde – que já era péssimo – colapsado”. E acrescenta: “Para termos uma ideia das loucuras que foram feitas desde 2011 é preciso fazer uma ginástica incrível: é desses dias a notícia de que ficamos com R$ 214 bilhões de dívida por causa dos empréstimos subsidiados do BNDES às empresas (184 bilhões irão para a dívida pública e 30 bilhões serão pagos pelo Tesouro). Depois há o capítulo incrível da renúncia fiscal, que passou de 3,68% do PIB (em 2011) para 4,76% (em 2014). A crise dos municípios e dos estados vem dessa política que esvaziou os fundos de participação dos estados e dos munícipios”.

Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova, é mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), é doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).

Confira a entrevista.

Foto: Ricardo Machado / IHU
IHU On-Line - Como inicia o segundo ano do mandato da presidente Dilma?
Giuseppe Cocco – O que dizer? De maneira mais geral, o primeiro ano do segundo governo Dilma foi um desastre proporcional ao desastre que foi o primeiro mandato, e não poderia ser diferente: o governo e a coalizão, que provocaram o desastre, passaram por cima da maior mobilização social que o país conheceu (em junho de 2013) e, usando a força e o dinheiro do controle do aparelho estatal, se reelegeram mentindo para depois impor à população o remédio amargo (um ajuste fiscal violentíssimo) contra a doença que eles mesmos criaram. Como foi previsto, a política econômica conseguiu alcançar taxas oficiais de 10,70% de inflação e uma recessão de 3,7%. Passamos da estagflação de antes para a quase-depressão de hoje. Não sei se todo o mundo realiza o desastre num país como o Brasil, que lida com pobreza e extrema pobreza: quando o PIB encolhe, a dívida pública aumenta inercialmente, fazendo mais que encolher os investimentos sociais. Ou seja, tudo piora, a renda dos mais pobres piora, os serviços mais essenciais pioram e a dívida pública cresce, pedindo ainda mais cortes [1].


Lobbies pós-coloniais

Sem a mínima condição de enfrentar a crise política e moral, a popularidade de Dilma ficou abaixo da taxa de inflação. Enquanto isso, os estados e os municípios estão literalmente quebrados, sem pagar serviços básicos, atrasando vencimentos dos servidores, sem pagar fornecedores, sem capacidade nenhuma de investimento, e com o sistema de saúde – que já era péssimo - colapsado. E isso por quê?



“Como foi previsto, a política econômica conseguiu alcançar taxas oficiais de 10,70% de inflação e uma recessão de 3,7%

 

Por ter enchido o bolso dos grandes bancos e das grandes montadoras multinacionais e de um oligopólio mafioso de empreiteiras oriundas da ditadura. Encheram o bolso das grandes empresas sem cobrar nada e não deu em nada, a não ser na modernização do tradicional coronelismo neocolonial numa oligarquia de lobbies pós-coloniais. E tudo sem transparência nenhuma, ao ponto que para termos uma ideia das loucuras que foram feitas desde 2011 é preciso fazer uma ginástica incrível: é desses dias a notícia de que ficamos com dívida de R$ 214 bilhões por causa dos empréstimos subsidiados do BNDES às empresas (184 bilhões irão para a dívida pública e 30 bilhões serão pagos pelo Tesouro). Depois há o capítulo incrível da “renúncia fiscal”, que passou de 3,68% do PIB (em 2011) para 4,76% (em 2014). A crise dos municípios e dos estados vem dessa política que esvaziou os fundos de participação dos estados e dos municípios. Ao passo que os pobres que recebem o Bolsa Família devem mostrar contrapartidas (escola, vacina das crianças), Dilma foi uma mãe com as empresas e não cobrou nada. Pior, parte dessas isenções veio da Isenção da Contribuição Previdenciária, criando o tal de “rombo da Previdência”, um “rombo” que nós todos pagaremos, e uma reforma que a Dilma fará (se superar o processo de impeachment), ou o sucessor [2] . Até governistas incondicionais denunciavam – antes de junho de 2013 - essa política maluca de financiamento nacional ao capital multinacional. [3] É exatamente isso: o Estado contra a sociedade.

Depois de termos pagado para o país e as grandes cidades estarem repletos de obras inúteis (megabarragens, novos estádios, teleféricos etc.), agora pagamos para termos um enorme déficit primário destinado a pagar juros e swaps cambiais: ou seja, ao passo que serviços básicos – como saúde, educação e mobilidade urbana – estão sem recursos, se continua subsidiando as grandes empresas: por exemplo, no Rio de Janeiro, a SuperVia, controlada pela onipresente Odebrecht, acaba de receber do quebrado Estado do Rio de Janeiro subsídio de R$ 39 milhões para pagar a conta de luz [4] . E 2016 será ainda pior: já está anunciada uma nova enxurrada de aumentos dos preços administrados (o gás, os transportes públicos) no meio de uma recessão que corre para a depressão.

Falta de confiança e base social

Sem “confiança”, sem “base social”, política monetária e política fiscal não resolvem nada mesmo, sequer do ponto de vista do próprio “ajuste” (a saída do Levy tem aqui uma primeira explicação). O lulismo perdeu suas bases e sua dinâmica em junho-outubro de 2013. O desejo constituinte de junho (em particular com as mais de 10 ocupações de Câmaras e Assembleias Legislativas) foi destruído pelo governismo aliado à grande imprensa, mas o conatus destituinte foi irreversível. O que ganhou nas eleições de outubro de 2014 não foi uma (impossível) essência de esquerda do PT-lulismo, mas apenas seu aparelho, poderoso, mas morto e – com ele – sua corrupção: corrupção da democracia, corrupção como exploração.

O governo Dilma não traiu os votos que recebeu, porque ele apenas continua sendo o que já era: como poderiam Lula e Dilma guinar à esquerda se - diante de junho - apenas responderam pela repressão (desde a mais rasteira desqualificação até a intervenção do Exército e tribunais militares na Maré) e fomentando “movimentos sociais” totalmente manipulados? Não havia nenhum mistério e, do mesmo modo, não houve nenhum milagre.

A divisão interna à coalizão e à própria chapa da reeleição amplifica a crise já duríssima na qual se encontra o governo. Sem definição desse conflito (que nos mostra que é o Estado que é o teatro da “guerra de todos contra todos”), nenhuma política econômica conseguirá indicar uma saída do impasse, qualquer que seja, pois não haverá o elemento básico disso: a confiança, a volta dos investimentos, a mobilização do tecido de cooperação social.


“Depois de termos pagado para o país e as grandes cidades estarem repletos de obras inúteis, agora pagamos para termos um enorme déficit primário destinado a pagar juros e swaps cambiais


O governismo organiza dois grandes argumentos: um técnico e o outro político. Tecnicamente, o processo nasceria maculado pela abertura em interesse próprio por parte de Eduardo Cunha; politicamente, não haveria alternativas que não sejam ainda piores.

Ora, no plano técnico, poderíamos dizer que a crise política é mesmo essa situação na qual se torna explícito que todo o sistema da representação está funcionando em prol do interesse próprio e nesse sentido como uma oligarquia: está tudo maculado, a começar pelo ajuste que impuseram para cima dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, pois que felizmente as instituições continuam funcionando, o processo não é tecnicamente “maculado”: Cunha agiu institucionalmente, como Presidente da Câmara (do mesmo jeito que o STF agiu como STF). Aliás, o governismo entendeu perfeitamente e está tentando retomar a iniciativa política.

Falta de alternativas políticas

Quanto à falta de alternativas políticas na linha de sucessão, por que não pensar então em novas eleições gerais? De toda maneira, se trata mesmo do discurso que o governismo organiza desde muito tempo, pela destruição das alternativas (em outubro, destruiu a possibilidade de termos um segundo turno sem o PSDB). É fundamentalmente um discurso de medo. Mas lembremos: quando o Collor foi impedido, o PT não se preocupou com isso.

Lembremos também, o PT não se preocupou de leiloar o Rio de Janeiro em nome de seus projetos de poder: ao Garotinho antes e ao Cabral depois. Cunha é produto do governo do Garotinho e é parte estrutural do dispositivo político que faz funcionar o governismo. A “imoralidade” de Cunha é exatamente a mesma que a “imoralidade” do PT e do governo federal e também da oposição (que por isso fica quieta). Toda a representação está num impasse.

Por exemplo, Cunha é acusado de ter recebido R$ 52 milhões pela liberação de 3,5 bilhões do FGTS em investimentos no Porto Maravilha do Rio de Janeiro [5], várias vezes inaugurado pela Dilma (em maio de 2013, no MAR, logo antes que a cidade explodisse no levante de junho e agora mesmo em dezembro de 2015, no Museu do Amanhã, no momento que a saúde pública do Rio de Janeiro e o Estado como um todo estão implodindo). Trata-se de um projeto do Prefeito Eduardo Paes e na realidade “puxado” ativamente pela Globo (que levou R$ 56 milhões da Prefeitura para a gestão dos Museus – construídos com dinheiro público e entregues à gestão da Fundação Roberto Marinho [6]). O PT está em primeira linha, não apenas como governo federal, mas também com sua vice-prefeitura e a Secretaria Municipal de Habitação (onde o secretário Jorge Bittar – da Mensagem ao Partido - removia os pobres na própria área portuária). O PT também controla – na cota do ex-ministro da Pesca (Luiz Sérgio [7]) - a presidência da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro [8]. As obras da zona portuária são executadas pelo oligopólio de sempre, as mesmas empreiteiras, Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia, reunidas no Consórcio Porto Novo [9].

Então, embora o marketing do PT adore transformar Cunha (como transformou o Levy) no responsável isolado de todos os males e o governo numa vítima, o fato é que – como escreveu um antropólogo em seu Twitter – o “PT é co-mandante” dessas atividades do Cunha e pouco se importava (e nada se importa) não apenas pela “moralidade” das operações, mas também das consequências para as mulheres, os pobres, os índios, os pescadores, os jovens. A questão, pois, continua a ser política, de uma luta política que a sociedade quer fazer para refundar a representação como um todo e o governismo quer interditar e manipular (como tentou pela negociação com o próprio Cunha).

Para concluir, podemos enfatizar duas linhas de reflexão:

(1) O Rio é a cidade-sede do regime de exploração predatória promovido e fomentado pela coalizão de governo (não por acaso é também aqui que se mobiliza a frente do PMDB pró-Dilma). Ou seja, é aqui no Rio que encontramos em todo seu esplendor a lógica cínica das coalizões que o PT montou: Garotinho, Eike, Picciani, Pezão, Cunha.

 


“Quanto à falta de alternativas políticas na linha de sucessão, por que não pensar então em novas eleições gerais?

(2) Precisamos desmontar a armadilha do discurso sobre a “peemedebização do PT”: parece uma crítica contundente, mas na realidade é uma justificativa, uma maneira de “jogar” para cima do PMDB um julgamento negativo que sempre – mesmo que seja lá no finalzinho – salva o PT. Ora, o autoritarismo de Dilma, a origem carioca da Lava Jato, os investimentos inúteis e megalomaníacos do Rio de Janeiro (Porto de Sepetiba, Copa, Olimpíada, Submarino Nuclear, Polo Petroquímico, Arco Metropolitano, Porto Maravilha, Metro, Teleférico), tudo isso nos mostra que o PT é um problema igual ao PMDB e ao PSDB: seus projetos são os mesmos, desde 1995 e a criação - por César Maia - do Planejamento Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro e - por Fernando Henrique Cardoso - do Conselho Federal pelas Ações Estratégicas no Rio de Janeiro: a luta partidária nunca foi para a reformulação dos projetos em prol dos interesses da mobilização democrática. Porto de Sepetiba, Copa da Fifa, Olimpíada, Arco Metropolitano, Porto Maravilha: está tudo nos projetos elaborados por esses dois âmbitos que nada tinham de democrático e ainda menos de popular; enquanto isso, a guerra contra os pobres continua a todo vapor.

IHU On-Line - Em que aspectos o contexto político do início de 2016 é diferente do contexto do início de 2015, ou é uma continuidade?
Giuseppe Cocco – O ano de 2016 será dominado por pelo menos três embates interligados: o processo de impeachment (que já comentamos); os desdobramentos da crise econômica (que comentarei respondendo à próxima pergunta); e a chegada em Brasília da Lava Jato. Como já disse, precisamos de uma análise materialista da Lava Jato e do tema mais geral da corrupção.

Não se trata de um problema moral, mas de um problema político e econômico, de economia política: o que o governismo defende? O governo popular ou o “modo Odebrecht de governar”?! A Lava Jato não nos mostra apenas a repetição da tradicional corrupção (“sempre se roubou”), mas algo novo, e isso em dois níveis.

Em primeiro lugar, o de junho de 2013 foi um levante democrático contra o consenso organizado em torno da emergência da “nova classe média”. Foi um levante contra o modelo que no Rio tinha (e ainda tem) a cidade-sede. Seus operadores são as empreiteiras e seu modelo o “rico”: o Eike Batista. Ainda em abril de 2012, Dilma declarava: “Eike é ‘orgulho do Brasil’” [10]. Quem bancou o “orgulho” foi o BNDES: o Estado bancou o “rico” e o “rico” faliu: em 2010 as ações da OGX valiam R$ 23,27, quando saíram da Bolsa, em 30 de outubro de 2013, valiam apenas 13 centavos. A falência do “rico” de sucesso, tratada por todo o mundo como um caso isolado, foi, ao contrário, antecipada pelas manifestações de junho e ela mesma antecipou a falência da política Brasil Maior como um todo. Vejam o que dizia o líder do governo no Senado (atual Ministro de Minas), Eduardo Braga (PMDB) em abril de 2012: “Nós não conseguiremos construir esse PIB, se uma série de ações não forem concluídas (...). Uma delas é baixar a taxa de juros. Do outro lado, o programa Brasil Maior estabeleceu, em sua segunda etapa, uma série de desonerações que estão em duas MPs (...). Então, essa agenda é a agenda do país” [11] .

Antes de desmoronar na Bolsa de Valores, o modelo econômico de Lula e Dilma desmoronou na sociedade e só vamos sair disso quando a sociedade for capaz de afirmar outra trajetória: outros valores. Não é a Lava Jato que determina a crise do crescimento, mas a debilidade do crescimento apesar de um ciclo incrível de investimentos que explica a Lava Jato. Estes investimentos sequer funcionam do ponto de vista da “racionalidade” (ou seja, da “produtividade”) capitalista e a conta já chegou, sem esperar pelas Olimpíadas, pela apoteose negativa do modelo Lula-Dilma. Pensemos no caso da militarização vergonhosa da favela da Maré para a Copa da Fifa: a ocupação da Maré custou R$ 1,7 milhão por dia [12] ao longo de 15 meses (para que depois o Exercito saísse deixando tudo no mesmo patamar), ou seja, algo como R$ 700 milhões, mais do que o dobro do que a Prefeitura investiu em uma área que precisaria de um verdadeiro Plano Marshall.



“Não é a Lava Jato que determina a crise do crescimento, mas a debilidade do crescimento apesar de um ciclo incrível de investimentos que explica a Lava Jato

 

Lava Jato


Mas há uma segunda dimensão, ainda mais importante, que a Lava Jato nos mostra: a dimensão sistêmica e generalizada da corrupção é, na realidade, parte consistente do modo de inserção – com propaganda do Lula e gestão “das” Odebrecht – do Brasil na economia globalizada. A corrupção é hoje um mecanismo fundamental de extração de lucros excepcionais do mesmo tipo que empresas como a Zara procuram pela exploração do trabalho escravo no Brasil ou em Bangladesh. Como bem escreveu Alexandre Mendes [13], há uma correlação direta e funcional entre o trabalho quase-escravo e as megaobras: como no caso da barragem de Jirau (e por causa disso da revolta operária de 2012 que antecipou junho e o ministro Gilberto Carvalho na época qualificou de banditismo) ou nas obras das Olímpiadas [14].

O capitalismo contemporâneo contém uma dimensão predatória da qual a corrupção e a guerra aos pobres são duas dimensões estruturais, assim como o vemos nos Estados Unidos, mas também na Rússia e na China ou nos negócios entre polícias e milícias nas favelas e periferias brasileiras. São esses “negócios” que aparecem na Lava Jato: a compra da refinaria de Pasadena nos Estados Unidos, as obras no Peru, as operações em Portugal, na África e por aí vai.

O que a Lava Jato mostra é o que a multidão já sabia e afirmou em junho: que o modelo pós-colonial de desenvolvimento do PT apenas hibridiza aquele neocolonial do PMDB (como não lembrar que é o PP de Maluf e da ditadura que conquistou a taça do maior número de deputados investigados pela Lava Jato) e, em nome do intervencionismo, assistimos à construção oligárquica de um mercado oligopolista (de Global Players escolhidos pelo BNDES de maneira sigilosa) que precisa se alimentar de lucros extraordinários... até quebrar.

A tibieza da oposição tucana está no fato de ser parte desse mesmo modelo de exploração (sobre isso ver o artigo de fôlego de Bruno Cava) [15]. O que é esse oligopólio? Pegamos a Odebrecht e a cidade-sede desse modelo oligárquico de exploração predatória do trabalho e do comum: encontraremos (em parceria com as outras grandes envolvidas nos escândalos da Petrobras) a empreiteira em praticamente todas as grandes obras e quase todas bancadas por dinheiro público (do BNDES, da CEF): o arco metropolitano [16], o aeroporto internacional Galeão (o dinheiro da compra da própria concessão pela Odebrecht e da obra é todo do BNDES), o Porto Maravilha, a obra do Maracanã para a Copa, a construção da linha 4 do metrô (só ficou de fora a Cidade Olímpica, que é construída pela tradicional empresa “dona” da Barra da Tijuca, a Carvalho Hosken, cujo proprietário declarou recentemente que o bairro não é para pobres [17]). As obras do PAC eram quase todas entregues à empresa de Fernando Cavendish, a Delta, ligada ao bicheiro Cachoeira (o mesmo do caso Waldomiro Diniz, do primeiro escândalo envolvendo o então ministro da Casa Civil), sem que se esqueça o jatinho do Eike onde viajavam empreiteiro e governador e a dança dos guardanapos em Paris [18].

Em um belo e atualíssimo livro sobre as “guerras imperiais”, Alain Joxe escreveu: “Para os membros da classe rentista global, o que ainda se chama de ‘corrupção e conflito de interesses’ são (...) modalidades técnicas legítimas e eles se espantam, pois, que processos de instrução ainda sejam abertos em torno de negócios que eles vivenciam como perfeitamente normais”. Lula, Palocci, Paes, Cunha e Cia se sentem como novos managers, novos ricos, novos Eike desses mesmos negócios... predatórios que na realidade são parte de uma nova acumulação originária, dessa vez dentro do padrão hegemônico do capitalismo financeiro: por isso, uma década de aplicação desse modelo não afastou o Brasil da dominação financeira e neoliberal, mas a aprofundou dramaticamente. O nacional-desenvolvimentismo se diz democrático, mas só pensa como horizonte a soberania e como motor da política, o Estado, e o Estado é esse daí: dos Cunha, Maluf, Sarney, Paes... agora do PT junto e igual ao PMDB.

É por isso que o PT passa indiferentemente da demagogia desenvolvimentista ao mais violento ajuste ultraneoliberal. Seu “projeto” não tem conteúdo, a não ser surfar nessa onda sem querer minimamente transformá-la. Até junho de 2013 podíamos ter dúvidas sobre a falta de bases sociais para apoiar um aprofundamento reformista. Em junho, só cego não viu que o PT era o partido da ordem e pela ordem, do valor desse novo regime de exploração, do qual ele quer participar, mas não quer por nada transformar.

Novo regime de exploração

Estamos dentro de um novo regime de exploração que se organiza, por um lado, pela procura de lucros excepcionais produzidos pela corrupção e, pelo outro, por um controle oligopolista do “mercado” e tendencialmente autoritário do trabalho. O capital é hoje controlado por uma classe predadora e oligárquica de rentistas da qual passaram a fazer parte os burocratas cinzas do lulismo: “Muitos funcionários das burocracias de Estado se acostumaram a que as leis sejam redigidas pelos lobistas.” [19]. Qual é a figura fundamental da Lava Jato senão o tal de lobista? No dia 5 de dezembro de 2015, ainda no meio da onda de choque da lama tóxica da Vale em Mariana (MG), não lemos nos jornais que o “novo código de mineração foi escrito no computador de advogado de mineradoras”? [20]. Os ministros viram lobistas e os lobistas viram diretamente ministros, governadores, secretários: eis o governador de Minas fazendo coletiva de imprensa na sede da empresa responsável pelo desastre. A ministra da Agricultura pedindo empenho contra preconceito no uso de agroquímicos (quer dizer os agrotóxicos que empestam nossas mesas).

Só que o levante de junho destituiu o consenso e abriu o caminho à Lava Jato. Esta operação (claramente inspirada na operação italiana Mani pulite [21]), além de se alimentar por uma dinâmica republicana que o próprio PT fomentou, tem como base social também todo o tecido empreendedor que necessariamente ficou excluído por essa oligarquia de novos ricos predadores [22].

Então, para concluir, eu não acredito – como acreditam o PT e a esquerda do PT – que o projeto republicano seja suficiente para lutar contra a exploração e – por isso – não penso que a Lava Jato vá mudar algo sozinha. A única luta eficaz contra a corrupção é aquela que vem junto da luta contra a exploração e isso passa pela radicalização democrática. Mas criticar a Lava Jato em nome desse regime de exploração predatória – aquela que assistimos com as remoções e militarizações de favelas, destruição de reservas indígenas, condições nos transportes coletivos – é imperdoável e, até agora, ineficaz.

Nosso desafio é de continuar trabalhando na ou pela brecha democrática, na relação entre o destituinte e o constituinte (por exemplo, as ocupações das escolas de São Paulo como novas assembleias constituintes, como escreveu Alexandre Mendes) e novas institucionalidades, inclusive novas formas de representação, aquilo que podemos enxergar na Espanha e que vai além do Podemos (como argumentam Bruno Cava e Sandra Arencón Beltrán [23]).


“O governismo não acredita na sociedade, mas somente no Estado e no capital (ou seja, nas hibridizações dos dois). Nesse horizonte, ele deverá necessariamente implementar as reformas que o 'mercado' quer


IHU On-Line - O que muda no governo com a troca dos ministros da Fazenda? Quais são as linhas centrais da política econômica a serem adotadas por Nelson Barbosa? Ao assumir o cargo ele declarou que o maior desafio do Brasil é fiscal, cuja solução só depende do governo, e reiterou também que somente com estabilidade fiscal será possível ter crescimento sustentável. Nesse sentido, a política a ser adotada por ele deve ser diferente da do ex-ministro Levy?

Giuseppe Cocco – A entrada do Joaquim Levy foi um golpe – previsível - de Lula e Dilma. E a saída também: passamos mais de ano (pois o ajuste começou em novembro de 2014) com uma violentíssima política de austeridade totalmente inútil. Ao passo que se empurrava a economia para uma recessão brutal, liberou-se a farra do realismo tarifário (na contramão da queda mundial do preço do petróleo). Tudo isso para nada, para reproduzir o impasse em níveis maiores. Entramos em 2016 sem nenhuma perspectiva definida.

A gestão de Nelson Barbosa não tem como inventar muita coisa, não há muitas margens de manobra. Para avançar, podemos propor duas linhas de reflexão: (1) voltar sobre o modelo predador implementado por Lula-Dilma (que chamaremos do “modo Odebrecht de governar”) e (2) avançar algumas hipóteses sobre a eventual inflexão no Ministério da Fazenda (que de maneira alguma será uma guinada à esquerda).

(1) De maneira geral, a política econômica de Lula-Dilma é autoritária e desastrosa porque é fundamentalmente técnica e nisso repete a dogmática neoliberal, sendo que a economia mainstream sabe – mesmo que seja pelo avesso do que nós queremos – que a política fiscal e a política monetária não se mudam por decretos, pois se fundam na confiança, ou seja, na política, nas relações sociais: aquilo que o governo Dilma – depois de junho - não tem (por isso o governo é uma fonte de crise). Sem que mudem as relações sociais, não há como romper essa armadilha, ela reaparece de outra forma.

Os economistas mainstream (neoliberais) chamam isso de “fundamentos da economia” e com isso entendem as reformas que o Estado tem que fazer e empurrar goela abaixo para cima da sociedade.

Nós chamamos isso de dinâmicas constituintes da sociedade (da democracia) que produz outros valores, contra o Estado, pela paz. A recomposição da economia com a política não se faz sem passar pelo social, pela mobilização da sociedade. Essa é, aliás, a razão do desastre do ajuste que Dilma e Lula encomendaram ao Bradesco e que Levy tentou executar.

O controle da inflação dos preços deu ao Plano Real uma base social; as políticas sociais e o freio às privatizações legitimaram os dois governos Lula. Hoje não estamos em nenhuma dessas condições: como cobrar sacrifícios depois de 13 anos de governo? Como cobrar mobilização para manter um modelo de exploração predatório do qual o ex-presidente virou um garoto de propaganda e a Presidente uma gerente?

(2) Creio que a mudança do Ministério da Fazenda teve como divisor de água a prisão do senador Delcídio Amaral. Essa significou a impossibilidade de colocar – no curto prazo - a Lava Jato no forno de uma bela pizzaria. Se Dilma e Lula insistissem em manter a negociação com Cunha (sua saída da presidência sem cassação do mandato), o PT iria sofrer uma gigantesca sangria, com a saída de dezenas de parlamentares e dirigentes. Decidiram romper com Cunha e assumiram como inevitável a perda do grau de investimento. Talvez agora tentem tocar em duas teclas: aumentar a pressão fiscal e fazer a reforma da Previdência, articulando os dois toques no tempo das eleições municipais. Por um lado, no primeiro semestre, aumentar a arrecadação fiscal por meio da CPMF e eventualmente do Imposto sobre as Grandes Fortunas (e outras medidas fiscais) e com isso o governismo continuará gritando à “guinada à esquerda”, comemorando nesse caso também a vitória contra o processo de impeachment; pelo outro lado, no dia seguinte das eleições municipais, fariam a reforma da Previdência. O governismo não acredita na sociedade, mas somente no Estado e no capital (ou seja, nas hibridizações dos dois). Nesse horizonte, ele deverá necessariamente implementar as reformas que o “mercado” quer.

O governismo não tem muitas escolhas, mas ninguém sabe se vai funcionar: vão conseguir articular a temporalidade das duas operações dentro do aprofundamento da crise política e econômica? Somente se, por um lado, o hard power, o grande capital, os bancos e a grande mídia, apoiar essa operação não apenas no plano político mas também voltando a investir, e, pelo outro, a sociedade não se mobilizar, e isso ninguém sabe. Além disso, há uma outra variável imprevisível: a Lava Jato, que, a cada vez que parece esvaziar-se, volta com tudo.

Por Patricia Fachin

Notas:

[7] O extinto Ministério da Pesca é por sua vez objeto de investigação da Polícia Federal, vide http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/10/assessor-da-secretaria-da-pesca-e-preso-no-df-pela-policia-federal.html. (Nota do entrevistado)
[10] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,dilma-diz-que-eike-e-orgulho-do-brasil-imp-,865908. (Nota do entrevistado)
[15] Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso? http://www.quadradodosloucos.com.br/5106/podem-os-governos-progressistas-sobreviver-ao-proprio-sucesso. (Nota do entrevistado)
[16] Antes dela era a Delta, do empresário Cavendish, amigo do governador Sergio Cabral. A Delta tinha também o contrato de construção da Transcarioca, que foi para a Andrade Gutierrez depois do escândalo dos guardanapos. Sobre a Delta, vide http://www.ihu.unisinos.br/noticias/509042-qdeltafaznopaisoqueaprendeunorioqdizmarcelofreixo. (Nota do entrevistado)
[19] Les guerres de l’Empire global, La Decouverte, Paris, 2012, p. 232. (Nota do entrevistado)
[21] Circula uma falácia sobre essa história: atribui-se à Mani Pulite a chegada ao poder do Berlusconi quando na realidade o Berlusconi chegou ao poder porque a esquerda tinha pacificado (reprimido) os movimentos autônomos da década de 1970. Exatamente o que Dilma e Lula estão fazendo desde junho, em parceria com Alckmin e Cabral. Não por acaso a Lei Antiterrorismo que tipifica como tal os movimentos sociais é enviada por Dilma e apoiada pelo Senador Nunes do PSDB de São Paulo. (Nota do entrevistado)
[22] Vide para isso a análise de Bruno Cava, Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso? (Nota do entrevistado)

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  • Fonte: IHU

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