PICICA: "Com um grande objetivo, somos superiores
até à justiça, não apenas a nossos atos e nossos juízes” – Nietzsche,
Gaia Ciência, §267."
Nietzsche e a Justiça
Com um grande objetivo, somos superiores até à justiça, não apenas a nossos atos e nossos juízes” – Nietzsche, Gaia Ciência, §267.
Sempre se faz uma questão quando a discussão é Nietzsche: o que significa estar para além do bem e do mal? O Além-do-Homem
descrito por Nietzsche, aquele que cria valores, está também para além
da justiça dos homens? Cabe então entender o que o filósofo alemão
entende por justiça e de que modo cabe ao Além-do-Homem se portar.
Vivemos em um estado de direito, este
estado surge da violência e da dominação, ele cria deveres,
reapropria-se de tudo ao seu jeito. O Estado domestica, cria corpos
dóceis. A justiça surge como um modo, um tentativa de diminuir o
ressentimento, o fardo da servidão, mas ao final apenas mantém suas
causas. O manto sagrado dos Direitos Humanos, a dignidade do trabalho
assalariado, tudo não passa de um embuste. O humanismo, no fundo,
trata-se de uma escravidão disfarçada. Nosso dever é o direito do outro
sobre nós, mais fortes e mais cruéis. Há uma relação de poder, e cada um
tem tanta justiça quanto vale seu poder. O conflito permanece latente.
Os gritos de justiça são sempre dados pelo Homem do Ressentimento (veja aqui),
os que estão embaixo, são sempre os reativos que clamam por justiça aos
poderosos. Eles se sentem injustiçados, sentem que não têm o que
merecem, pedem por uma compensação, clamam por justiça. Esta entendida
aqui quase que como uma vingança por parte do Estado. Nossa cultura
conhece a justiça apenas do modo ressentido, apenas daquele que não
consegue deixar o passado para trás, apenas daquele que não consegue,
não pode, agir. Mas esta justiça não traz paz porque o próprio modo de
funcionamento do Homem Ressentido é um perpétuo incômodo, um constante
tornar o mundo cinzento, maldize-lo.
O direito dos outros é a concessão, feita por nosso sentimento de poder, ao sentimento de poder desses outros. Quando o nosso poder mostra-se abalado e quebrantado, cessam os nossos direitos” – Nietzsche, Aurora, §112
A cartada do tipo escravo é o juízo final. “Um dia… um dia Deus voltará! E ele te julgará! Pobre de mim, mas você vai ver, sua hora vai chegar!“.
O Homem do Ressentimento é fraco, não consegue esquecer, não consegue
superar, não cresce com o que lhe acontece, ele maldiz o devir. Hoje
passamos da crença em Deus para a crença no Estado, mas a idealização
não muda, é sempre “livrai-nos do mal, amém“:
Oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como eles anseiam ser carrascos! Entre eles encontra-se em abundância os vingativos mascarados de juízes, que permanentemente levam na boca, como baba venenosa, a palavra justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a cuspir em todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho de ânimo tranquilo” – Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, §14.
O homem fraco é aquele que crias valores com o que lhe acontece, ele é reativo, ele não sabe nunca ser o primeiro, “algo me aconteceu, não posso deixar assim, não posso deixar por menos“.
Quem quer redimir o mundo? Só aquele que o condena, o calunia, o
apunhala pelas costas. A justiça é sempre instrumento daquele que era
fraco demais para fazer, e por isso não quer que ninguém mais faça,
instrumento de nivelação dos oprimidos, mediocratização.
Metafísica dos Carrascos. Não há nada
mais assustador que um estado escravo que julga a vida como
insatisfatória, insuficiente, e procura se vingar de si, dos outros e
das futuras gerações. Não queremos esta justiça, mas queremos sim
escravos, queremos escravizar o fraco em nós, conduzir o escravo dentro
de nós, não devemos lhe dar voz. Desta forma passamos da justiça dos
homens reativos para uma ética do Além-do-Homem (veja aqui).
Me vingar? Não, não sou tão pequeno
assim. Só o pobre de espírito procura restituir-se de algo, o rico
esbanja. Não significa ter a capacidade de perdoar, mas de primeiramente
não ofender-se, esquecer porque nem mesmo lhe chegou a causar
impressão. Nietzsche tem uma parábola de seu Zaratustra para ilustrar a
questão: um dia uma cobra picou Zaratustra enquanto dormia, ele acordou e
a agradeceu por o ter acordado em boa hora, mas arrependida ela disse: “teu caminho é curto, meu veneno mata“, ao que Zaratustra respondeu: “Alguma vez um dragão morreu do veneno de uma serpente?“.
Se tendes um inimigo, não lhe pagueis o mal com o bem: pois isso o envergonharia. Mostrai, isto sim, que ele vos fez algo de bom […] Inventai-me, então, a justiça que absolva a todos, exceto aquele que julga!” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Da Picada da Víbora.
Do mesmo modo que não julgamos quando um
vulcão explode e mata milhares, não cabe a nós julgar o mundo, nem aos
homens. O vulcão mata com a potência de sua lava, eu que saiba me
relacionar com ele! Acusar a natureza de imperfeita vem de uma
impotência do homem para atuar no mundo. A vida se torna feia quando a
acusamos e julgamos. A grande libertação consiste em restituir a
inocência do mundo, destruir todo direito. A vida do forte e do potente
não precisa de tutela, nem da justiça, tudo se dá na relação, isto
porque a potência (ver aqui)
sempre encontra o melhor modo de relacionar-se, ela não precisa de
agente exterior, ela é basicamente isso, o saber se relacionar, ela não
precisa da lei.
O quanto de injúria ele pode suportar sem sofrer é, por fim, a própria medida de sua riqueza. Não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de poder que se permitisse o seu mais nobre luxo: deixar impunes os seus ofensores. ‘que me importam meus parasitas?’, diria ela. ‘Eles podem viver e prosperar – sou forte o bastante para isso'” – Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda Dissertação, §10.
Quando o homem será tão grande que
prescindirá da justiça? Quando o homem voará tão alto que a justiça lhe
parecerá um pequeno ponto lá embaixo? Quando o homem comparará a justiça
à pedra lascada de seus antepassados? Quando? Nietzsche pensa, para um
futuro ainda não discernível, uma superação da própria justiça, essa
justiça humana, demasiado humana. Queremos dançar onde a justiça soa
desafinada, queremos voar onde a justiça parece distante…
Justiça – Melhor se deixar roubar do que ter espantalhos ao seu redor – eis o meu gosto. E, em todas as circunstâncias, isso é questão de gosto – e nada mais!” – Nietzsche, Gaia Ciência, §184.
Fonte: RAZÃO INADEQUADA
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