PICICA: "Em Ideologia
e utopia nos anos 60: um olhar feminino (1997), Lia Faria retoma, de forma
inquietante e questionadora, as profundas mudanças sociais pelas quais as
mulheres passaram na década de sessenta. Reconhecendo o magistério como uma possível
força domesticadora e o viés alienador de novas gerações de sua condição de “tia-professora”,
sob o risco de levar para as salas de aula sua própria submissão histórica, a
autora abre espaço para uma nova mulher, consciente e militante. “Política é
coisa de homem?”, indaga, já no título do primeiro capítulo. Não é."
A mulher nos anos 60: uma perspectiva de gênero
Eu tinha examinado e conheço a tese de mestrado de Lia. Como essa mulher cresceu! E como é que ela encontrou espaço e tempo para crescer? Lia mãe; Lia avó; Lia professora; Lia andando mundo afora, em Paris, Portugal; Lia que virou líder das professoras socialistas desse mundo. Lia fez tudo e Lia cresce e Lia estuda e Lia escreve cada vez mais claramente.
Darcy Ribeiro
Em Ideologia
e utopia nos anos 60: um olhar feminino (1997), Lia Faria retoma, de forma
inquietante e questionadora, as profundas mudanças sociais pelas quais as
mulheres passaram na década de sessenta. Reconhecendo o magistério como uma possível
força domesticadora e o viés alienador de novas gerações de sua condição de “tia-professora”,
sob o risco de levar para as salas de aula sua própria submissão histórica, a
autora abre espaço para uma nova mulher, consciente e militante. “Política é
coisa de homem?”, indaga, já no título do primeiro capítulo. Não é.
Ao
perceber que, a partir de seu inventário como educadora e professora de
História, poderia analisar ideologias políticas sob uma perspectiva de gênero,
Lia Faria não foge ao dever para com sua classe (afinal, em uma abordagem
materialista, gênero também é classe) e desconstrói a naturalização das
relações de poder entre sexos, afirmando que masculino e feminino não passam de
criações sociais. Embora alinhada ao socialismo, Lia não poupa da crítica esse
regime econômico: a opressão de gênero se processa nele tanto quanto no
capitalista. E Lia é antes mulher.
Para Lia, ao sair, nos anos sessenta, da esfera privada
familiar e ingressar na pública – através da escolarização, do trabalho ou da
militância política –, a mulher avança em seu processo de emancipação. Esse
processo, porém, não é homogêneo e se realiza principalmente na mulher de
classe média para cima. A oriunda das classes populares, enfrentando opressões
interseccionadas – de classe, de gênero e, muitas vezes, de raça –, não
vivencia o mesmo processo de profissionalização. É talvez reconhecendo, como
boa marxista, sua responsabilidade para com essa mulher periférica e vulnerável
que Lia Faria desconstrói a força alienadora de seu papel de
“tia-professorinha”: é preciso não reproduzir em sala de aula sua própria
domesticação sistemática.
Se, em O
segundo sexo (1949), Simone de Beauvoir estabelece que a construção dos papeis
de gênero da sociedade patriarcal faz do homem “o Sujeito, o Absoluto”, e, da
mulher, “o Outro”, em Ideologia e utopia nos anos 60: um olhar feminino, Lia
Faria subverte a lógica social. Já que, conforme Beauvoir, “Nenhuma
coletividade se define como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si”,
Lia propõe que a mulher reconheça o homem como o Outro. Repensar o imaginário
social, arquitetado pelo Outro, ou seja, por homens, tornaria mais evidente o
processo de alienação da mulher – um importante passo para resgatar uma
identidade sequestrada.
A
mulher já não é mais "a dócil e casadoura professorinha" dos anos sessenta. Se,
no final da década de noventa, Lia Faria afirmou que o novo estava “no silêncio
rompido pelo grito e pela dor feminina” que invadiam “em cores e a cabo os corações
e mentes”, hoje esse grito ecoa ainda mais alto em high definition pela
grande rede. O grito da mulher derrubará muros. E Lia insiste: comecemos pelos
da escola. Afinal, já é tempo de essa instituição “despertar para a questão de
gênero e incorporá-la às suas preocupações”. Ideologia e utopia nos anos 60: um
olhar feminino traz a abordagem materialista da teoria de gênero para o
contexto brasileiro e é uma leitura indispensável para a professora
contemporânea que deseja construir, a partir de uma revisão histórica, uma atuação em sala
de aula mais política e consciente.
O livro está disponível
gratuitamente para download no site da EdUERJ.
Por Thayssa Martins, graduanda de Letras – Inglês/Literaturas na UERJ e estagiária da EdUERJ.
Fonte: EDUERJ
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