PICICA: "O cinema de Ettore Scola
(1931-2016) é o lugar em que se encontram três tradições muito fortes do
cinema italiano: o neorrealismo (mais da vertente de De Sica do que da
de Rosselini), a comédia social de costumes (Monicelli, Risi, Steno,
Germi) e o cinema propriamente político, ou de “impegno civile” (Francesco Rosi, Elio Petri, Gillo Pontecorvo)."
Scola, síntese do cinema italiano
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 22.01.2016
O cinema de Ettore Scola
(1931-2016) é o lugar em que se encontram três tradições muito fortes do
cinema italiano: o neorrealismo (mais da vertente de De Sica do que da
de Rosselini), a comédia social de costumes (Monicelli, Risi, Steno,
Germi) e o cinema propriamente político, ou de “impegno civile” (Francesco Rosi, Elio Petri, Gillo Pontecorvo).
Scola não chegou a criar um universo estético próprio, inconfundível, a exemplo de Antonioni ou Fellini. Como o americano Woody Allen e o brasileiro Jorge Furtado, ele faz parte da linhagem dos cineastas-roteiristas, talvez mais roteiristas do que cineastas, no sentido em que dão mais atenção ao roteiro do que propriamente à construção de imagens, à organização do espaço e do movimento.
Seus melhores filmes, a meu ver, são aqueles em que a intenção de criar um afresco crítico da sociedade italiana não abafa os personagens, não os torna meros tipos ou símbolos. Penso em Nós que nos amávamos tanto (1974), Feios, sujos e malvados (1976), Um dia muito especial(1977) e A família (1987). Embora em todos eles se possa detectar um certo esquematismo, este é amplamente compensado pela vivacidade dos diálogos e situações, sem falar da categoria excepcional dos atores (Vittorio Gassman, Marcello Mastroianni, Nino Manfredi, Sophia Loren etc.).
Em Casnova e a revolução (1982), um roteiro engenhoso, inspirado levemente no conto “Bola de sebo”, de Maupassant, e um elenco internacional extraordinário conseguem tornar envolvente e divertido o que, sem essas qualidades, poderia ser uma alegoria pesada sobre os destinos da Europa burguesa.
Realismo caloroso
Onde a intenção alegórica pesa mesmo é em O baile (1983), que me parece uma exibição frustrada de virtuosismo ao buscar retratar toda a história do século XX numa sequência de danças, sem um único diálogo – artificialismo comparável ao do francês O artista (Michel Hazanavicius, 2011). Onde eu vejo afetação, porém, há quem veja sensibilidade, originalidade e imaginação criadora. É um dos filmes mais amados por certos fãs de Scola.
Para o meu gosto e temperamento, o cinema do diretor ganha mais sentido e consistência quando mantém um pé no realismo caloroso, terra a terra, da comédia social de onde surgiu, em vez de tentar emular a fase mais exuberante de Fellini (seu principal mestre e inspirador).
Um exemplo eloquente talvez seja esta cena enganosamente simples de Nós que nos amávamos tanto em que dois amigos se reencontram por acaso depois de décadas num estacionamento de Roma. Um deles, Gianni (Vittorio Gassman), casou com uma ricaça e se aburguesou, abandonando o idealismo da juventude. O outro, Antonio (Nino Manfredi), segue sendo um modesto padioleiro de hospital – e comunista.
A situação equívoca faz com que Antonio julgue que o amigo agora é um guardador de carros. As mutações no rosto de Gassman, bem como o afeto caloroso de Manfredi, valem por um curso de atuação. É um grande momento de Ettore Scola e do cinema italiano.
Corpo estranho
Uma pequena joia corre o risco de ser soterrada pelos blockbusters de verão e pelos “filmes do Oscar”. Estou falando de Body, da polonesa Malgorzata Szumowska, vencedor do prêmio de direção no festival de Berlim de 2015.
Trata-se, resumidamente, da história de um promotor da polícia técnica (Janusz Gajos) e sua filha anoréxica (Justina Suwala), que vivem na mesma casa mas mal se falam desde que a mulher do promotor (e mãe da moça) morreu.
Com um humor absurdo típico do leste europeu e uma atenção aos detalhes que torna cheios de vida os “tempos mortos”, a diretora transita com desenvoltura na corda bamba entre o ceticismo do protagonista e o misticismo de uma terapeuta da filha (Maja Ostaszewska), que diz ter o poder de se comunicar com os mortos (em sua casa há até retratos de Chico Xavier). O filme todo é muito bom, mas a sequência inicial, em que o promotor comparece ao local onde um homem se enforcou, é digna de antologia.
Ettore Scola no set de filmagem
Sua obra nasce no início dos anos 1960, quando o cinema italiano era talvez o melhor do mundo, com pelo menos três gênios em seu apogeu (Visconti, Antonioni e Fellini) e o surgimento de uma nova geração (Bertolucci, Bellochio), sem contar gêneros como o giallo, o faroeste espaguete e “lobos solitários” como Pasolini e Zurlini.Scola não chegou a criar um universo estético próprio, inconfundível, a exemplo de Antonioni ou Fellini. Como o americano Woody Allen e o brasileiro Jorge Furtado, ele faz parte da linhagem dos cineastas-roteiristas, talvez mais roteiristas do que cineastas, no sentido em que dão mais atenção ao roteiro do que propriamente à construção de imagens, à organização do espaço e do movimento.
Seus melhores filmes, a meu ver, são aqueles em que a intenção de criar um afresco crítico da sociedade italiana não abafa os personagens, não os torna meros tipos ou símbolos. Penso em Nós que nos amávamos tanto (1974), Feios, sujos e malvados (1976), Um dia muito especial(1977) e A família (1987). Embora em todos eles se possa detectar um certo esquematismo, este é amplamente compensado pela vivacidade dos diálogos e situações, sem falar da categoria excepcional dos atores (Vittorio Gassman, Marcello Mastroianni, Nino Manfredi, Sophia Loren etc.).
Em Casnova e a revolução (1982), um roteiro engenhoso, inspirado levemente no conto “Bola de sebo”, de Maupassant, e um elenco internacional extraordinário conseguem tornar envolvente e divertido o que, sem essas qualidades, poderia ser uma alegoria pesada sobre os destinos da Europa burguesa.
Realismo caloroso
Onde a intenção alegórica pesa mesmo é em O baile (1983), que me parece uma exibição frustrada de virtuosismo ao buscar retratar toda a história do século XX numa sequência de danças, sem um único diálogo – artificialismo comparável ao do francês O artista (Michel Hazanavicius, 2011). Onde eu vejo afetação, porém, há quem veja sensibilidade, originalidade e imaginação criadora. É um dos filmes mais amados por certos fãs de Scola.
Para o meu gosto e temperamento, o cinema do diretor ganha mais sentido e consistência quando mantém um pé no realismo caloroso, terra a terra, da comédia social de onde surgiu, em vez de tentar emular a fase mais exuberante de Fellini (seu principal mestre e inspirador).
Um exemplo eloquente talvez seja esta cena enganosamente simples de Nós que nos amávamos tanto em que dois amigos se reencontram por acaso depois de décadas num estacionamento de Roma. Um deles, Gianni (Vittorio Gassman), casou com uma ricaça e se aburguesou, abandonando o idealismo da juventude. O outro, Antonio (Nino Manfredi), segue sendo um modesto padioleiro de hospital – e comunista.
A situação equívoca faz com que Antonio julgue que o amigo agora é um guardador de carros. As mutações no rosto de Gassman, bem como o afeto caloroso de Manfredi, valem por um curso de atuação. É um grande momento de Ettore Scola e do cinema italiano.
Corpo estranho
Uma pequena joia corre o risco de ser soterrada pelos blockbusters de verão e pelos “filmes do Oscar”. Estou falando de Body, da polonesa Malgorzata Szumowska, vencedor do prêmio de direção no festival de Berlim de 2015.
Trata-se, resumidamente, da história de um promotor da polícia técnica (Janusz Gajos) e sua filha anoréxica (Justina Suwala), que vivem na mesma casa mas mal se falam desde que a mulher do promotor (e mãe da moça) morreu.
Com um humor absurdo típico do leste europeu e uma atenção aos detalhes que torna cheios de vida os “tempos mortos”, a diretora transita com desenvoltura na corda bamba entre o ceticismo do protagonista e o misticismo de uma terapeuta da filha (Maja Ostaszewska), que diz ter o poder de se comunicar com os mortos (em sua casa há até retratos de Chico Xavier). O filme todo é muito bom, mas a sequência inicial, em que o promotor comparece ao local onde um homem se enforcou, é digna de antologia.
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: Blog do IMS
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