PICICA: ""A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em
que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um
lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos
eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por
muito tempo acreditou nos conceitos e nomes de coisas como em aeternae
veritates [verdades eternas], o homem adquiriu este orgulho com que se
ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento
do mundo". (F. Nietzsche)"
A linguagem como uma fotografia do mundo: a visão de Nietzsche
Li um texto recentemente em que a autora cita um conto de Ítalo Calvino no livro Os Amores Difíceis. Nesse texto, publicado aqui na Obvious, ela fala do conto de Calvino que, por sua vez, narra as aventuras de um fotógrafo. O texto fala sobre a “necessidade de reter os momentos através do registro fotográfico, na tentativa de anular a nossa incômoda sensação de seres perecíveis”.
No início do conto, chamado “A aventura de um fotógrafo”, o personagem, Antonino Paraggi, tem certa implicância com a mania das pessoas de tirar fotos, especialmente porque ele é o único “solteirão” da turma. Ele encontra um vínculo entre a paternidade e a mania de tirar fotos. “Um dos principais instintos dos pais, depois de por um filho no mundo, é o de fotografá-lo; e dada a rapidez do crescimento, torna-se necessário fotografá-lo com mais frequência, pois nada é mais transitório e irreconhecível do que uma criança de seis meses, rapidamente apagada e substituída pela de oito meses e, depois, pela de um ano”.
Calvino também disse que para que um momento existisse de verdade em nossa memória, ele precisava ser fotografado. É como se tivéssemos medo de perder momentos supostamente inesquecíveis tornando-os realmente inesquecíveis.
Esse conto e essa ideia de fotografar momentos da vida para tentarmos “congelar” esses momentos me levou a associar essa ideia com uma outra ideia, dessa vez do filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, especificamente no que diz respeito à linguagem e a forma como ele a encarava. Nietzsche classificava a linguagem como uma metáfora da vida. No livro Nietszche e a grande política da linguagem, Viviane Mosé explana com maestria esse ponto da extensa filosofia de Nietzsche.
O que linguagem e Nietzsche tem a ver com o conto de Calvino? Assim como Calvino colocou a foto como uma necessidade do ser humano de congelar o tempo e tentar anular a sensação de transformação constante da vida, Nietzsche colocava a linguagem de uma forma parecida. Ele dizia que as pessoas passaram a usar palavras e conceitos como forma de identificar as coisas do mundo, mas, passaram a acreditar que as palavras e os conceitos SÃO O MUNDO. É como se tirássemos uma foto e acreditássemos que a foto é a realidade - e, bem, parece que as redes sociais estão ajudando para que isso ocorra.
Por exemplo, chamamos de banana a todas as frutas com determinadas características, mesmo sabendo que não há sequer uma banana igual a outra no mundo. Há uma quantidade enorme de bananas no mundo, cada uma diferente da outra – mas todas, nós chamamos de banana. Criou-se o conceito de banana, em que todas acabam sendo encaixadas, ainda que sejam relativamente diferentes entre si. A linguagem agrupa desiguais em um só conceito.
É claro que isso é necessário para que haja comunicação, mas, se extrapolarmos esse exemplo da banana para as pessoas, por exemplo, vemos que há conceitos, como “homem”, no qual todos os seres do sexo masculino se encaixam. A palavra e o conceito de homem trazem muitas características que muitas vezes não são como a realidade, como o mundo é. Então, quando se diz: “o homem é…” e você não é, tendemos a achar que o mundo real está errado e que o homem TEM QUE SER o que o conceito diz sobre ele. Claramente acreditamos que a linguagem e o conceito SÃO a coisa, são a “verdade”. Se o mundo de verdade, de carne e osso, é diferente do conceito sobre ele, quem está errado? O conceito, porque o mundo existe no mundo, o conceito só existe no pensamento, no abstrato. Vivemos constantemente nesse mundo abstrato, muitas vezes, com pouca ou nenhuma disposição para sequer OLHAR para o mundo e observar como ele se apresenta para nós naquele momento.
Nietzsche dizia que a linguagem está relacionada com essa “vontade de verdade” dos seres humanos. A verdade, para ele, seria tão metafísica quanto qualquer outra forma fora da vida, mas que muitas vezes, conduz as atitudes humanas. Isso porque o mundo e a vida são fluxo, não são permanentes, não são possíveis de serem “parados” e classificados dentro de um conceito de verdade. A palavra deveria, de acordo com a lógica aristotélica, ser fiel à realidade. Mas, como isso é possível se a realidade muda segundo a segundo?
“É para se distanciar desse caráter transitório da vida, que o pensamento produz unidades conceituais, verdades, essências, que vão fornecer a segurança, a sistematização que a vida não apresenta”, diz o livro de Mosé.
Usando o mesmo exemplo da banana, é como se déssemos um nome para uma determinada banana – “A” – nesse instante, mas no instante seguinte, ela já se transformou, de forma que o nome “A” não seria mais adequado, devendo, ser alterado, para “A’ ”. Isso instante a instante. É claro que isso impossibilita a comunicação entre os homens e, por isso, seria inviável de ser feito, mas essa colocação deixa claro como essa busca por uma identidade fixa é realmente fora do mundo real. Se sairmos da banana e passarmos para os humanos, notamos que muitas vezes criamos identidades sobre nós mesmos que, com o passar do tempo, transformam-se, porque o mundo vai nos afetando e nos transformando, mas temos bastante dificuldade em nos desvencilhar desse próprio conceito que criamos para nós mesmos, assim como os outros também têm dificuldade nesse sentido.
Então, se eu criei sobre mim mesma a identidade de uma pessoa que, por exemplo, só ouve MPB, se um dia eu ouvir uma música fora dessa classe e gostar dela, passo a me questionar: por que estou gostando disso se não é disso que gosto? Nós mesmos temos dificuldade de lidar com nossas próprias transformações, às vezes. Os outros então, nem se fala. Por isso, ouvimos frases como: “você, ouvindo essa música? Mas você não gosta de MPB?” Ora, se eu ouvi a música e gostei, ou seja, se a música me emocionou de verdade, o que importa mais: se ela se encaixa dentro do conceito que criei sobre meu gosto musical ou o que sinto no mundo real quando a ouço?
Nietzsche também dizia que a palavra deveria ter um papel semelhante ao da música, no sentido de expressar nossa potência de vida, nossa energia vital. A linguagem se enfraqueceu quando passou a significar conceitos e passou a deixar de vir “de dentro”, de expressar nossos afetos, em busca de um ganho de potência e energia, para fixar conceitos “de fora”, muitos deles completamente alheios ao mundo como ele é, fazendo com que abafemos nossos afetos, nossa energia, nossos impulsos vitais em nome de nos encaixarmos nos conceitos pré-impostos.
De tudo o que sentimos e pensamos – porque ele dizia que pensamos com o corpo inteiro -, apenas uma parte é traduzida em palavras pela nossa consciência, mas, como a linguagem é enfraquecedora pela questão dos conceitos e da negação dos impulsos e energia vital, o que chamamos de pensamento é muito menos do que o que realmente temos dentro de nós. A tradução dos impulsos em palavras e conceitos enfraquecem nossos impulsos, enfraquecem a vida, conclui Nietzsche.
Termino esse texto com uma prosa poética de Mario Quintana, do livro, O Sapato Florido. Nesse textinho, chamado “A Bela e o Dragão”, ele brinca com a questão de como o nome das coisas acaba dando a elas um conceito, um conjunto de características, acaba transformando a coisa no próprio nome.
“As coisas que não têm nome assustam, escravizam-nos, devoram-nos… Se a bela faz de ti gato e sapato, chama-lhe, por exemplo, A BELA DESDENHOSA. E ei-la rotulada, classificada, exorcizada, simples marionete agora, com todos os gestos perfeitamente previsíveis, dentro de seu papel de boneca de pau. E no dia em que chamares a um dragão de JOLÍ, o dragão te seguirá por toda parte como um cachorrinho…”.
Juliana Santin
Humana, demasiado humana, apreciadora da companhia de crianças, adolescentes e velhinhos que retomaram o gosto pela vida, em busca constante por pessoas que mantêm o brilho nos olhos.Fonte: OBVIOUS
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