janeiro 13, 2016

We can be Bowie. Por Alberto di Nicola (UNINÔMADE)

PICICA: "A simples notícia não foi suficiente. Muitos de nós tiveram de ir às redes atrás de confirmações da morte de David Bowie. Nem tanto por causa da idade prematura (69 anos) nem simplesmente pelo afeto e admiração que sentimos ante a grandeza de sua obra inextinguível. O que nos afligiu mesmo foi o pensamento de que alguém que fez da reencarnação e da reinvenção constante de estilo uma forma de vida, em variação contínua e grandiosa, possa ser interrompido por uma coisa no fundo tão banal e ordinária quanto a morte. Porque enquanto tentávamos aceitar a ideia de sua morte, nos surpreendemos com uma pergunta mais radical: se realmente existira algo com o nome David Bowie, ou se o nome e a pessoa não seriam nada mais do que o suporte para as máscaras que ele vestiu." 

We can be Bowie

Por Alberto di Nicola, no dinamopress, 12/1/16  | Trad. Bruno Cava


ZIGGY


As metamorfoses de Bowie antes e além da morte.

A simples notícia não foi suficiente. Muitos de nós tiveram de ir às redes atrás de confirmações da morte de David Bowie. Nem tanto por causa da idade prematura (69 anos) nem simplesmente pelo afeto e admiração que sentimos ante a grandeza de sua obra inextinguível. O que nos afligiu mesmo foi o pensamento de que alguém que fez da reencarnação e da reinvenção constante de estilo uma forma de vida, em variação contínua e grandiosa, possa ser interrompido por uma coisa no fundo tão banal e ordinária quanto a morte. Porque enquanto tentávamos aceitar a ideia de sua morte, nos surpreendemos com uma pergunta mais radical: se realmente existira algo com o nome David Bowie, ou se o nome e a pessoa não seriam nada mais do que o suporte para as máscaras que ele vestiu.

A coroação dos proletários


É comum encontrar pessoas que ficam aturdidas quando descobrem que o Duque Branco nasceu no subúrbio pobre londrino de Brixton. Marcado indelevelmente pela esquizofrenia do irmão mais velho (se suicidou nos anos 90), que o levará a escutar as novas tendências musicais dos anos 50, David Bowie se esforçará bastante para conseguir firmar-se na cena musical. O começo de sua carreira é pontilhado de uma série de fracassos e tiros na água. Somente com a batalha cósmica Space Oddity parece virar a maré, ainda que o LP homônimo (1969) não tenha alcançado realmente o sucesso esperado. Contudo, com The man who sold the world (1970) e Hunky Dory (1971), tomará forma um estilo singular de fazer música. A figura de Bowie começará a assumir novos semblantes preparando a iminente virada glam.

Embora o seu amigo Marc Bolan se mantenha convencionalmente como o precursor e máximo representante do gênero, dizem que o ato de nascimento do glam rock pode ser identificado num concerto de 1970 em que um semidesconhecido Bowie compele a sua banda a vestir meias cintilantes, botas e capas coloridas, suscitando o estupor do público.

Bowie não parecia amar muito as modas do momento. Certamente, ele teve a oportunidade de criticar a deriva conformista do movimento hippy, mas, talvez, mais profundamente, desprezava-lhe mesmo era a reivindicação de autenticidade. Para quem tem pouco ou nada, não há nada mais insensato do que ser autêntico. A partir de Bowie e seu alter ego Ziggy Stardust, o acesso a uma vida não medíocre, “heróica”, se torna uma possibilidade, efêmera (just for one day), mas sensível para todos. The rise and fall of Ziggy Stardust and the spiders from Mars (1972) se tornará o álbum que, mais do que todos os outros, o fará galgar a fama, realizando ao máximo a arte do travestimento. Na virada glam, reside a quintessência política de sua obra: se até então o rock tinha permitido aos filhos da working class soltar os movimentos do corpo, experimentar sex and drugs e, em alguns casos, a riqueza, o glam fará dos mesmos proletários a “nova aristocracia”. Uma aristocracia artificial e ilegítima, obviamente, e perversa, onde a coroação não respeita descendência familiar, de casta ou classe, onde através da potência do travestimento as posições sociais de gênero deixam de ser um destino. Uma anarquia coroada, para dizê-la com Artaud, onde o alto e o baixo são o efeito de uma “distribuição louca” de posições e identidades. Atrás das máscaras, batons e cores brilhantes, então, você não deve ver uma transgressão qualquer, mas uma reivindicação política.

É provavelmente essa a maneira com que Bowie pensa a arte transformadora da vida de todo o início de uma época (os anos 70), quando começavam a aparecer os signos do esgotamento das promessas de liberdade e ascensão social características do segundo pós-guerra.

No mesmo ano de Ziggy Stardust, Bowie vai compor All the young dudes (1972), uma canção manifesto que melhor sintetiza a desilusão desesperada de sua geração e que não cessará de segui-lo ao longo da carreira. Apresenta-se, junto com a  identificação à loucura anônima dos perdedores, o traço niilista que não somente percorrerá toda a sua obra até as alucinações distópicas e invocações totalitárias dos álbuns seguintes, como também inundará o cenário musical do fim dos anos 70 e começo dos 80, com o punk, o dark e o pós-punk. Aqui, os jovens punks tomavam anfetamina, pensavam no suicídio, roubavam roupas das lojas e consideravam a revolução um assunto trabalhoso demais pra eles (We never got it off – on that revolution stuff – What a drag – too many snags). É nesse pressentimento de fechamento dos possíveis, nessa referência desencantada e pessimista em relação à ação coletiva, que a transformação de si próprio através das máscaras, do poder de transfigurar-se, apresenta-se como um genuíno gesto de resistência.

Um gesto inevitavelmente ambíguo, por vezes impregnado de alusões místicas e paranoicas, mas que não cansa de repetir que não há salvação alguma nas origens, na autenticidade ou no bom senso. Nada nos será concedido fora do reino do efêmero e do artificial, as possibilidades de vida somente podem ser fabricadas e criadas numa experimentação incessante de nós próprios.

A fórmula da criação

Poucas são as biografias tão marcadas da notícia de morte e ressurreição artística do que a de Bowie. Poucos são os exemplos de artistas que fizeram da reencarnação e da metamorfose a sua própria coerência e continuidade estilística. De todos os seus renascimentos, aquele do fim dos anos 70 é seguramente o mais importante. Depois do parêntese americano, Bowie atravessa uma fase de crise pessoal marcada, entre outras coisas, por uma significativa dependência da cocaína. Dessa fase, emergirá primeiro com Station to station (1976) e, sobretudo, com a célebre “Trilogia berlinense” (Low, Heros, 1977 e Lodger, 1979). A Trilogia é hoje considerada  unanimemente como a contribuição mais original e experimental do músico inglês, ponto de origem e inspiração de numerosas tendências musicais seguintes. Nesse período, ele se transfere (foge) para Berlim Ocidental para colar num apartamento com seu velho amigo Iggy Pop. Enquanto relança (e salva) a carreira artística de Iggy, produzindo e escrevendo The idiot e Just for life (1977), Bowie começa a experimentar e manusear as novas sonoridades que vai captando da nascente cena Kosmiche alemã. Alguém poderia querer ver na generosidade de Bowie a Iggy nada mais do que um estratagema para experimentar e testar o novo sound pelas costas do amigo. Mas para além da má fé dos críticos musicais, se deveria em vez disso ver nessa passagem biográfica a entrada em cena da fórmula da criação.

Pode-se dizer, sem incorrer em qualquer contradição, que David Bowie não inventou nada, mas inovou em tudo. Esta verdade paradoxal é fruto de uma atividade contínua de pesquisa, curiosidade, furto e uso de estilos abandonados ou tendências subterrâneas, ainda não emersas na cena musical. A atividade criativa deve passar pela imitação e composição de elementos heterogêneos. Dominar elementos que não têm ainda forma. Essa característica atingirá o seu ápice com o desenvolvimento da música eletrônica, com as atividades de sampleamento, sintetização e mixagem. Bowie capta as forças disformes que não lhe pertencem, desce aos submundos onde as tendências ainda não foram capazes de agregar visibilidade, manuseia, arranja-as até que assumam uma forma artística, nova e suprema. Se isto é um traço de toda produção artística, em Bowie se apresenta como extremamente visível e tangível (Every chance that I take, I take it on the road). No laboratório berlinense, os elementos sonoros se recombinam através das estratégias oblíquas de Brian Eno, o que foi um verdadeiro lance de dados buscando resolver impasses e abrir caminho para o novo. O abandono programaticamente buscado de quaisquer fixações autorais passa pela imersão em ambientes artísticos obsoletos (o expressionismo alemão) e alternativas musicais ao rock/pop anglo-saxão (o krautrock), não menos do que pela reativação das relações com amigos que compartilham da urgência de sair do buraco negro em que estão empacados. Como diria Deleuze, os amigos, os estilos e os ambientes servem aqui de intercessores para tocar forças potenciais, inexprimidas e disformes. O resultado é uma musicalidade mínima e sombria, mas capaz de exprimir uma exigência vital e um salto de alegria. Diferentemente do esporte preferido dos críticos musicais, que não cansam de estabelecer “quem é o responsável pelo quê”, gostamos de ver neste triunfo do impessoal a própria cifra da vida artística de Bowie.

Depois de alguns sucessos importantes e, a seguir, um longo período menos feliz do ponto de vista artístico, os dois últimos álbuns, The next day (2013) e o recém-publicado Blackstar (2016) tentaram restaurar aquele estilo de composição que projeta o já ouvido até a beira de um novo modo de escutar e fazer música.

Também em sua morte, parece reviver o gesto do artista. Poucos dias depois do lançamento de seu álbum, e com o último single (Lazarus) dedicado à ressurreição (Oh I´ll be free), quase fica parecendo que foi Bowie quem preparou a última cena, como tinha feito Ziggy. Não para encerrar a história, mas para deixá-la aberta.

Não nos deprimimos, portanto, pela sua partida e paramos com a tristeza: o poder impessoal da metamorfose a que David Bowie emprestou o seu nome, é certo, não pode parar com a morte. Poderia fazê-lo apenas o tédio e o cansaço.

Fonte: UniNômade

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