junho 24, 2015

"O resgate do ofício de contador de histórias". Por Wagner Correa de Araújo OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Walter Benjamin lamentou perda da tradição épica da literatura. “O Narrador”, tenta-se recuperá-la no teatro, por meio da relação entre público e ator"

O resgate do ofício de contador de histórias


150521Diogo Liberano_O Narrador_ Foto Anna Claro Carvalho.

Walter Benjamin lamentou perda da tradição épica da literatura. “O Narrador”, tenta-se recuperá-la no teatro, por meio da relação entre público e ator
Por Wagner Correa de Araujo

O Narrador está em temporada em São Paulo, no SESC Ipiranga. 
De 12 de junho a 01 de agosto: Sextas (21h30) e sábados (19h30)  Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga – veja mapa – Metrô Sacomã ou CPTM Ipiranga
Fone: (11) 3340.2000

Quando o filósofo alemão Walter Benjamin usou como estímulo a obra do escritor russo da segunda metade do século XIX, para seu ensaio “O Narrador-Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov”, estava, na verdade, mostrando seu espanto diante do progressivo definhamento da arte da narração.

Leskov, por intermédio de sua novela “O Narrador”, idealizava a narrativa como uma criação absolutamente artesanal: “Literatura para mim não é arte, mas um trabalho manual”. E mostrava assim sua firme crença no ofício tradicional dos contadores de histórias. Estes, muitas vezes, velhos em seu leito de morte que deixavam, como sua marca, um legado ancestral das verdades humanas. A trajetória do cotidiano de suas vidas na comunidade, transmutada na sabedoria dos que partiam para os que ainda iriam viver.

Walter Benjamin então expunha, nas reflexões do seu livro de 1936, a amarga constatação de que a literatura tinha perdido este purismo épico, de aporte social, filosófico e moral, substituindo-o pelo egocêntrico brilho intelectual dos “narradores”.


E ainda lamentava, no teatro, “o abismo que separa os atores do público, como os mortos são separados dos vivos” ou, a dúvida mesmo, de que algum ator fosse capaz de induzir na plateia qualquer sentimento de êxtase ou compaixão pela morte dos outros.

Num referencial de inventiva envolvência, o ator/dramaturgo Diogo Liberano transmuta estes aspectos estético/emotivos na proposta/performance “O Narrador”, com seu Teatro Inominável. Tendo a colaboração de seus integrantes Adassa Martins, Carolina Helena, Flávia Naves e Natassia Velo, além de João Pedro Madureira, responsáveis todos pela investigação gestual da performance.

Aqui, solitário num palco despojado, posicionado em uma cadeira com um figurino doméstico, acompanhado de um boneco de pelúcia como único objeto cenográfico. E onde vai liberando, vocalmente, um extenso solilóquio memorialista, na leitura de páginas atiradas uma a uma ao chão, em procedimento comum mas de singular efeito plástico/visual.

Abrindo mão dos elementos puramente cênicos, faz da presença de sua própria figura humana um anti-personagem, no realismo documental de um narrador de vivências pessoais. Na prevalência, inclusive, daquelas ligadas às perdas pela morte de familiares e amigos, usando as palavras como imagens na revelação de tristes memórias.

Cartas, poemas, emails, recados e bilhetes, expostos em precioso tom intimista, ora numa nuance de voz mais melancólica, ora com um sotaque de aparente firmeza, desmontado em lágrimas reais, quando a coragem desaba diante do “belo horror da morte”, neste pensar próximo a Walter Benjamin.

Compartilhando esta transcendência artística que liga expressivamente Leskov, Benjamin e Liberano, meditativas sonoridades (Rodrigo Marçal) completam, enfim, o ato mágico deste “teatro inominável” – de contemplação da sutil reescrita das palavras lidas por um narrador.




Wagner Correa de Araújo


Jornalista especializado em cultura, roteirista, diretor de televisão, crítico de artes cênicas. Dirigiu os documentários "O Grande Circo Místico" e "Balé Teatro Guaíra 30 Anos" . Participou como critico e jurado de festivais de dança e cinema, no Brasil e na Europa.

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