junho 16, 2015

"Zaratustra e a Dança", por Rafael Trindade (Razão Inadequada)

PICICA: "O dançarino se move sempre ágil para encontrar um espaço de criação e crescimento de si. A semente dança com a terra enquanto brota, a flor dança com a abelha. O tigre dança com a gazela; o surfista dança com a onda. Tudo tem seu ritmo, nosso próprio corpo dança consigo mesmo. Mas nossa condição parece ser um pouco mais complicada… e rio em que pulamos não é calmo e límpido. A correnteza caudalosa não perdoa. Precisamos encontrar os espaços certos para não dar de frente com as rochas."


 Quando Zaratustra desceu de sua montanha, encontrou com um velho homem que pensou ‘Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca não esconde nenhum nojo. Não caminha ele como um dançarino?'” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 12

dancers practicing at the barre, 1877 - Edgar Degas
dancers practicing at the barre, 1877 – Edgar Degas

Já ouço os primeiros acordes! Aqueçam os pés! Ah, sabemos que Zaratustra é um dançarino gracioso! Sim, ele se move ligeiro sobre todos os valores, não resta dúvidas. Então qual a razão deste texto? O que ainda podemos aprender com os passos alegres e desenvoltos de Zaratustra? “Apenas na dança sei falar o símile das coisas mais altas” (p. 141). A criação de Nietzsche é um sopro que derruba os frutos podres da árvore. Se Zaratustra pula com graça e parece pairar no ar, não nos enganemos, ele deixa a Terra para trás? Não! O dançarino pode pular alto, mas sempre volta para o chão, ele parece voar àqueles que não dominam suas técnicas de dança.

O mundo é um mar de forças, “Vontade de Potência e nada além disso…” (veja aqui). Cá estamos, jogados na existência nua e crua, ela não perdoa. Como escapar? Impossível, todo virar o rosto é covardia, “todo idealismo é mendacidade” (amor fati). É preciso suportar, não com espírito de gravidade, mas sim com o espírito da dança. É preciso saber dizer sim! Deixemos de lado todo peso, tudo que nos impede o movimento! É preciso saber dançar!

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The drummer and the dancers , 1995 – Nzante Spee

Zaratustra diz sim à vida porque aprendeu a dançar. O que isso significa? Não podemos ficar na metáfora para sempre (ou será que podemos?). O mundo tem um ritmo, a existência possui uma cadência que podemos codificar, apreender, sentir. Não estamos falando da cadência monótona dos ponteiros do relógio. “O dançarino tem o ouvido – nos dedos dos pés!” (p. 215). O mundo se move em uma cadência singular em cada ponto, somos parte deste ritmo, o sentimos em cada célula, nos colocamos em harmonia ou desarmonia com ele.

O dançarino se move sempre ágil para encontrar um espaço de criação e crescimento de si. A semente dança com a terra enquanto brota, a flor dança com a abelha. O tigre dança com a gazela; o surfista dança com a onda. Tudo tem seu ritmo, nosso próprio corpo dança consigo mesmo. Mas nossa condição parece ser um pouco mais complicada… e rio em que pulamos não é calmo e límpido. A correnteza caudalosa não perdoa. Precisamos encontrar os espaços certos para não dar de frente com as rochas.

Assim Falou Zaratustra é um livro que ensina a dançar. “Que tudo pesado se torne leve, todo corpo, dançarino, e todo espírito, pássaro” (p. 221). Mas isso não significa sempre dançar conforme a música! Estamos longe da mera adaptação, seria simples demais se fosse assim. Nossas pernas em contato com o chão criam uma rítmica única, os passos ecoam e transformam o mundo à nossa volta. Podemos nos afastar com graça, deixar para trás a tarantela para encontrar outros ritmos em outros lugares. Saber dançar é saber também mover-se nos silêncios.

É de praxe não recusar uma dança, trata-se de falta de educação. Por isso Nietzsche ensina a “dizer Não o mínimo possível. Separar-se, afastar-se daquilo que tornaria o Não sempre necessário” (Ecce Homo). Aprender a dizer não o mínimo possível e aprender a colocar-se em uma posição onde o Não quase não será necessário. Colocar as forças reativas, o instinto de auto-conservação a serviço das forças ativas; não percamos tempo demais fugindo, evitando, se escondendo.

Isso pode envolver sentar em outro lugar, sair de casa em outro horário, mudar de cidade, de país, de emprego, de relacionamento. Entre samba e punk, qual você prefere? Queremos ser aqueles que cada vez mais dizem Sim! Para isso precisamos aprender a virar o rosto e não desperdiçar nossas energias acusando e julgando, menos ainda se culpando ou se arrependendo. Quanto tempo não perdemos tentando dançar ritmos que não são nossos!

Nietzsche nos traz um bom exemplo de seus pés ágeis e gaiatos. Ele dançava geograficamente, indo para o sul e para o norte da Europa de acordo com as épocas do ano, ele, a Terra e o sol dançavam juntos; o filósofo também dançava gastronomicamente, escolhendo cuidadosamente as comidas e bebidas que ingeria; sua pena movia-se leve por entre seus aforismos. Também não perdia tempo lendo o que não julgava necessário.
O corpo flexível e convincente, o dançarino cujo símbolo e epítome é a alma que se compraz em si. O prazer consigo desses corpos e almas chama a si mesmo ‘virtude'” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 181
Somente na dança habitamos a superfície de nós mesmos. Os pés vão para a direita ou para a esquerda? Não se pode pensar, “apenas sinta seu corpo, sinta meu corpo“, ah, como a dança é não cartesiana! Como a filosofia pode ser desengonçada! “Cuidado com os pés!“. Quando o corpo dança, os olhos da razão se fecham, o cérebro pode descansar um pouco, vamos corpo, vamos! Os portões da pele são destrancados, abrimos passagem para fluxos nunca antes sentidos. O suor é a prova de alegria e movimento. Os poros são como olhos que se abrem, para dentro e para fora, deixando a vida passar. Nos tornamos um rio…
Aprendi a andar: desde então corro. Aprendi a voar: desde então, não quero ser empurrado para sair do lugar. Agora sou leve, agora voo, agora me vejo abaixo de mim, agora dança um deus através de mim” – Nietzsche, Assim falou Zaratustra

Dancer in pigalle, 1912 -  Gino Severini
Dancer in pigalle, 1912 – Gino Severini

Se aprendemos a dançar, procuramos parceiros que também se movam com graça pelo salão, queremos aprender passos novos, queremos dançar com os outros, ensinamos os mais duros a moverem-se com leveza. Com dança não se paga, dá-se de graça, transborda. E onde estão os deuses? Ora, bailando é claro, mas isso não importa. Andamos rápido, só olhos atentos nos encontram. Queremos ir além de nós mesmos, e nossa dança faz isso. Nos perdemos, nos reencontramos, nos perdemos novamente, quem consegue seguir nossos passos? Ah, atenção, eles seguem por vezes na frente de nossos valores, nossa identidade, nossa verdade, nosso bem e nosso mal.
Ó homens superiores, o pior que há em vós é: não aprendestes a dançar como se deves dançar – indo além de vós mesmos! Que importa se malograstes? Quanta coisa é ainda possível! Então aprendei a rir indo além de vós mesmos! Erguei vossos corações, ó bons dançarinos! Mais alto! E não esqueçais o riso tampouco!” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 281
> texto parte da série: Assim Falou Zaratustra <

Candle dancers, 1912 - Emil Nolde
Candle dancers, 1912 – Emil Nolde


Fonte: Razão Inadequada

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