PICICA: "Em junho de 2013,
milhões de pessoas saíram às ruas de todo o Brasil para lutar contra o
aumento das tarifas nos transportes públicos. Os atos começaram pequenos
nas principais capitais do país, mas cresceram num ritmo intenso,
chegando a atingir uma dimensão nacional. E conforme mais gente aderia
aos movimentos, diversas reivindicações acabaram sendo incorporadas à
pauta das manifestações, que deixou de se limitar à redução das
passagens. Mas, ao contrário do que se chegou a afirmar, as Jornadas de
Junho não devem ser vistas como mobilizações inesperadas, espontâneas ou
como meros produtos das interações sociais nas redes internéticas."
O que ainda resta de Junho… Uma análise das Jornadas, dois anos depois
Em junho de 2013,
milhões de pessoas saíram às ruas de todo o Brasil para lutar contra o
aumento das tarifas nos transportes públicos. Os atos começaram pequenos
nas principais capitais do país, mas cresceram num ritmo intenso,
chegando a atingir uma dimensão nacional. E conforme mais gente aderia
aos movimentos, diversas reivindicações acabaram sendo incorporadas à
pauta das manifestações, que deixou de se limitar à redução das
passagens. Mas, ao contrário do que se chegou a afirmar, as Jornadas de
Junho não devem ser vistas como mobilizações inesperadas, espontâneas ou
como meros produtos das interações sociais nas redes internéticas.
Historicamente, o reajuste das tarifas nos transportes públicos sempre provocou intensas reações populares. Em diversas ocasiões,
a população enfurecida pelas más condições do serviço ou pelo aumento
das passagens depredou coletivos e realizou quebra-quebras pela cidade,
assim como o ocorrido em 2013. As Jornadas de Junho se inserem,
portanto, numa tradição mais antiga de luta por melhores condições nos
transportes públicos. Além disso, essa questão é um aspecto muito
sensível nas condições de vida da população (especialmente para suas
parcelas mais pauperizadas).
Em certo sentido, as
reivindicações que se somaram a essa luta evidenciaram uma grande
insatisfação popular com o modelo de desenvolvimento implementado pelos
governos do PT desde 2003. Até então, uma das bases desse modelo foi a
elevação dos níveis de consumo de alguns setores da classe trabalhadora.
Isso foi feito por meio da ampliação de postos de trabalho que pagavam
até 1,5 salário mínimo (que também passou a ter um reajuste anual mais
elevado), das políticas de transferência de renda (Bolsa Família), da
redução das taxas de juros (o que permitiu uma maior oferta de crédito
consignado), dentre outras medidas.
Apesar de ampliar as
possibilidades de consumo dessas parcelas da população, tal modelo não
promoveu uma mudança efetiva em sua posição na hierarquia social, já que
outros aspectos importantes de suas condições de vida permaneceram
inalterados. O acesso à moradia digna continuou restrito a uma ínfima
parte da sociedade, pois a principal política nacional de habitação
foi insuficiente para suprir o déficit histórico. A precarização dos
serviços públicos manteve sua inserção social em níveis dramáticos. E,
desde que os efeitos da crise econômica mundial de 2008 começaram a se
manifestar no Brasil, a inflação e a falta de perspectivas de melhoria
de vida para uma geração que cresceu numa situação de relativa
prosperidade contribuíram para o desgaste do modelo.
Nesse cenário, os atos
contra o reajuste nas tarifas dos transportes públicos possibilitaram o
transbordamento das insatisfações populares para além de sua pauta
inicial. Elementos significativos de nossa estrutura social passaram a
ser questionados pelos manifestantes. Vieram à tona muitas críticas à
qualidade dos serviços públicos (educação e saúde), aos gastos de
dinheiro público com a realização dos mega-eventos esportivos e a um
tipo de planejamento urbano hierarquizado e mercantilizado.
Apesar de tantas reivindicações, as Jornadas de Junho não promoveram transformações sociais efetivas. O afastamento
entre os setores politicamente mais organizados da população
trabalhadora e a grande massa de manifestantes (composta por uma
juventude que cresceu entre os anos 1990/2000 e que não viveu a
experiência de grandes mobilizações populares) dificultou a articulação
política entre os diferentes coletivos que levaram suas demandas aos
atos.
As disputas fratricidas
entre os grupos políticos progressistas – que se digladiaram, tentando
capitanear os movimentos, enquanto a reação conservadora avançava –
contribuíram para reforçar seu afastamento em relação aos manifestantes
não organizados politicamente. Isso sem contar que não houve, por parte
de muitos grupos organizados, uma reavaliação de suas formas
tradicionais de atuação, que seria necessária para uma tentativa de
reaproximação de sua bases sociais.
Diante dessas contradições, a atuação da mídia empresarial
e de outros grupos defensores da atual ordem social (organizados
politicamente ou não) conseguiram, em alguma medida, pautar os
movimentos de rua, imprimindo seus próprios interesses políticos.
Paralelamente, esses grupos buscavam desviar o foco dos protestos para
questões com menor potencial de transformação social. Assim,
reivindicações genéricas (combate à corrupção, crítica à PEC 37)
passaram a ser enfatizadas pela grande mídia, que acrescentou, ainda,
uma boa dose de nacionalismo no embalo da Copa das Confederações.
Por último, a repressão
policial aos manifestantes – que, desde os primeiros atos se mostrou
extremamente agressiva e autoritária, com muitos casos de agressões
gratuitas, prisões ilegais, fraudes etc – atingiu níveis alarmantes no
dia 20 de junho e no dia da final da Copa das Confederações. Sempre a
pretexto de reprimir os excessos cometidos por uma suposta minoria de
vândalos, as forças de repressão agiram, na realidade, contra todas as
pessoas que decidiram se posicionar publicamente contra a ordem social,
usando um armamento pesado e estratégias muito violentas de cerco e
prisões. Isso certamente contribuiu para afastar muitos manifestantes
das ruas.
Hoje, a perspectiva para o
cenário político dos próximos anos não é lá muito animadora, como
atestam o avanço de pautas conservadoras (redução da maioridade penal, reforma política, estatuto da família) e a retirada de direitos trabalhistas.
Mas, ainda assim, o remelexo político proporcionado pelas Jornadas de
Junho impulsionou a eclosão de outras mobilizações, como as inúmeras greves
que ocorreram em todo o território nacional. Sem contar que questões
sociais importantíssimas passaram a ter uma visibilidade muito maior,
tais como:
* O direito à cidade – questionou-se um modelo de crescimento urbano mercantilizado e elitizado;
* Tarifa zero!
– muitas críticas foram feitas a um sistema de transporte coletivo
precário, custoso e gerido de acordo com os interesses das empresas de
transporte;
* Não vai ter Copa!/Na Copa vai ter luta!
– a utilização de grandes somas de dinheiro público na realização de
grandes eventos esportivos foi muito questionada. Argumentou-se que o
país tem outras prioridades, como a melhoria dos serviços públicos;
* Poder Popular!
– foi apontada a necessidade de se pensar novas formas democráticas de
participação política (institucionais ou não), que estejam baseadas em
princípios mais horizontalizados e menos burocratizados;
* Desmilitarização Já!
– destacou-se que as polícias, para além de representarem o braço
armado daqueles que defendem a atual organização social, sempre atuaram
de maneira brutal contra as parcelas mais pobres da população
trabalhadora, como os moradores de favelas.
Junho mostrou que existe
um grande desejo de transformação, que tem origem numa sensível
insatisfação popular com a atual estrutura social hierarquizada. É
preciso que os setores políticos que são historicamente comprometidos
com essa transformação repensem suas formas de ação política, para que
possam se reaproximar de suas bases sociais. Além disso, seria
importante que esses grupos buscassem estabelecer laços de solidariedade
entre si, para que sua capacidade de intervenção fosse mais decisiva
nesse cenário de disputa.
Sobre Juliana Lessa
Professora, doutoranda em História, flamenguista, feminista, socialista e apaixonada por arte (especialmente por música).Fonte: Capitalismo em Desencanto
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