junho 22, 2015

Apresentação à Ideologia Alemã. Emir Sader (TERRITÓRIOS DE FILOSOFIA)

PICICA: "Desde suas primeiras obras, Marx e Engels identificam um papel para a categoria trabalho, porém inicialmente era apenas uma forma geral de luta do homem contra a natureza, como base de todas as sociedades humanas. O labor esteve, desde o início, ligado à alienação, provocando a questão da forma como essa degeneração da atividade humana foi possível. Mas, desde o começo, o trabalho era analisado na perspectiva da sua abolição, do processo de desalienação, revelando como se tratava já de uma análise ao mesmo tempo negativa e positiva." 


Apresentação à Ideologia Alemã.
Emir Sader.*
I

A busca do conhecimento e da verdade pelo pensamento humano partiu sempre da dicotomia entre sujeito e objeto. As diferentes respostas dadas pelas várias correntes do pensamento a essa questão permitiram sua classificação na grande lista de tendências – idealistas, empiristas, racionalistas, materialistas, metafísicas etc.

Para o pensamento aristotélico, a verdade se identifica com a ausência de contradição. Se A é igual a A, não pode ser igual a B ou a qualquer não A. Simplesmente isso. Sua lógica codifica essas normas elementares, sem as quais qualquer discurso se torna impossível. Se uma coisa é igual a si mesma e diferente de si mesma, se ela é igual a si mesma e igual a outra coisa, trata-se de uma contradição, indicação insofismável de uma falsidade.

Essa lógica – chamada de formal ou da identidade – norteou a grande maioria das correntes do conhecimento ao longo dos séculos, da Antiguidade, passando pela Idade Média, chegando ao mundo moderno e avançando até o contemporâneo. Podemos dizer que ela continua a moldar o senso comum, consistindo na leitura mais difundida da realidade empírica, tal como ela costuma ser vivenciada por grande parte da humanidade. Nela, a contradição é sintoma de falsidade.

A revolução copernicana no pensamento humano veio com a reversão dessa identificação na obra de Georg Wilhelm Friedrich Hegel – para quem, em vez de falsidade, a contradição aponta para a apreensão das dinâmicas essenciais de cada fenômeno. Captar a contradição passa a ser sintoma da apreensão do movimento real dos fenômenos.

A inversão Hegeliana coloca em questão outro pressuposto do pensamento clássico: a dicotomia sujeito/objeto. Antes, tal dicotomia era condição da reflexão epistemológica, assim como forma de compreensão da inserção do homem no mundo. Do cogito cartesiano ao eu transcendental kantiano, a diferenciação sujeito/objeto habitou, com diferentes roupagens, todos os sistemas filosóficos pré-Hegelianos.

O pensamento de Hegel atinge justamente o que era assumido como um dado da realidade: a separação – contraposição ou reencontro – entre sujeito e objeto. Ele descarta a validade de interrogações tais como: se o objeto pode ser apreendido pelo sujeito ou em que medida este é deter- minado ou determina a existência daquele. Em sua perspectiva, a primeira e maior das questões para o conhecimento do mundo, mas também para a compreensão do estar do homem no mundo, passa a ser a busca das razões pelas quais sujeito e objeto aparecem diferenciados e contrapostos. Redefinem-se assim os termos subjetividade e objetividade, cada um deles, mas sobretudo a relação entre eles.

Hegel marca também uma diferenciação com o nascente pensamento sociológico, que busca trilhas pelo caminho aberto pelas ciências biológicas e absolutiza a identificação da verdade com o máximo distanciamento entre sujeito e objeto, expresso paradigmaticamente na obra de Auguste Comte e Émile Durkheim. Para estes, a garantia da veracidade do conhecimento está na medida do afastamento entre sujeito e objeto – consideração dos fenômenos sociais como “coisas” –, a ponto da identificação, incorporada à linguagem corrente, de objetividade com verdade, no sentido de conhecimento isento, universal. As dimensões subjetivas, por sua vez, passam a ser assimiladas a um falseamento do conhecimento verdadeiro dos objetos.

As novidades radicais da dialética Hegeliana vão em duas direções. A primeira, a do questionamento dessa concepção de objetividade. Para Hegel, o desafio maior é explicar o que costuma ser aceito como dado: por que o mundo nos aparece com uma grande cisão entre sujeito e objeto? Por que o mundo nos aparece como alheio?

Para responder a essas questões, Hegel introduz no pensamento filosófico a noção de trabalho, uma noção altamente corrosiva para as pretensões a-históricas e sistemáticas do pensamento tradicional. O conceito de trabalho – posteriormente redefinido por Marx em termos históricos e materiais – permite rearticular a relação entre sujeito e objeto, mediante a versão de que os homens produzem a realidade inconscientemente – “Eles fazem, mas não sabem”, na fórmula sintética de Marx no prefácio a O capital –, em que não se reconhecem. Introduz-se assim, junto com o conceito de trabalho, o de alienação.

Esse conceito diferencia radicalmente o pensamento dialético de outros enfoques, permitindo redefinir as relações entre sujeito e objeto, entre subjetividade e objetividade. O mundo é criado pelos homens, embora não de forma consciente, o que permite explicar tanto a relação intrínseca entre eles quanto o estranhamento do homem em relação ao mundo e a distância deste em relação ao homem.

Hegel reivindica o conceito de contradição, não como sintoma de falidade, mas como motor do movimento do real. O exemplo da dialética do senhor e do escravo é utilizado como a forma mais clara da relação de interdependência das determinações aparentemente opostas, mas que estão incluídas uma na outra. Apreender a contradição da sua relação é apreender a essência de cada polo e o sentido de sua relação mútua.
II

Após um período em que oscilou em torno da polarização herdada da filosofia política clássica e de Hegel, entre sociedade civil e Estado, ora valorizando um polo em detrimento do outro, ora refazendo o caminho oposto, Marx rompe com essa visão, para fazer o que denomina “anatomia da sociedade civil”. A abordagem da ideologia é um passo essencial nessa anatomia, porque remete o conhecimento desta às condições materiais de existência em que se assenta. A Alemanha tornou-se objeto privilegiado dessa reflexão, pelo peso que tiveram os vários sistemas de ideias no seu desenvolvimento.

O acerto de Marx e Engels com sua herança filosófica conclui em A ideologia alemã um longo caminho – iniciado com os primeiros textos de Marx – e se dá ao mesmo tempo do amadurecimento de uma teoria alternativa. Tal teoria ganha corpo especialmente a partir dos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx, quando se torna claro que o recurso à dialética Hegeliana significa uma negação, uma incorporação e uma superação dessa herança, na direção da teoria materialista da história.

O roteiro d’A ideologia alemã retoma a trajetória de Hegel, mas se vale de instrumentos distintos e desemboca em caminhos muito diferentes. Para Hegel, é necessário começar pela crítica das ilusões do conhecimento – o que Marx e Engels passarão a cunhar como ideologia. Hegel aponta duas dessas ilusões: tomar as coisas pela sua forma de aparição e relegar o real para um mundo completamente separado das suas aparências. Esses níveis de apreensão da realidade correspondem a níveis efetivamente existentes do real, porém segmentados, separados uns dos outros e sobretudo do significado que engloba a ambos. O mundo que nos aparece sob a dicotomia entre sujeito e objeto, entre subjetividade e objetividade, tem de ser desvendado nas suas raízes, para compreendermos o porquê dessa cisão, enquanto as ilusões mencionadas optam por um dos dois polos e os absolutizam. A apreensão da verdade do real consiste justamente na explicação da forma pela qual o real se desdobra em sujeito e objeto.

Para Hegel há dois movimentos. O primeiro, em que o mundo perde sua unidade, cinde-se, duplica-se, produzindo a dicotomia entre o mundo sensível e o mundo suprassensível. Surgem o estranhamento, a alienação, a consciência que não se reconhece no mundo e o mundo como realidade alheia à consciência. De um lado, a consciência pura; de outro, ao alienar-se, a consciência convertida em objeto de si mesma, contemplada, mas não reconhecida. É como se a consciência olhasse para o mundo tal qual estivesse olhando pela janela e não olhando para si mesma, no espelho do mundo.

O segundo movimento trata da passagem da consciência em si à consciência para si, com o real retomando sua unidade perdida, reabsorvendo os dois polos em uma unidade superior, eliminando a cisão do mundo. O caminho da razão é portanto o caminho do reconhecimento da cisão e de suas raízes; em seguida, de sua superação e do restabelecimento de sua unidade.

Afirma-se, assim, pela primeira vez na história da filosofia, que o mundo é produto do trabalho humano, como realidade histórica construída coletivamente pelos homens. Também pela primeira vez afirma-se, na filosofia, que o homem é um ser histórico, o que é dado por sua capacidade de trabalho.

O ajuste de contas de Marx e Engels começa pelo principal dos pensadores Hegelianos de esquerda, aquele que mais os havia influenciado, Ludwig Feuerbach. Esse autor também se propôs a fazer a crítica do idealismo de Hegel. Seu ponto de partida é o das ilusões, mas o das ilusões psicológicas, como chave para decifrar a expressão mais típica da alienação – a religiosa.

Para Feuerbach, a capacidade de abstração está na origem da alienação religiosa, em que o homem projetaria suas características, elevadas ao infinito, em um ser externo ao homem. Em vez de ser criado por Deus, como acredita a visão religiosa, é o homem quem cria Deus. De criação, se torna criador. “O homem é o Deus do homem”, conclui. Porém, Feuerbach não incorpora a categoria trabalho e assim a superação das ilusões se reduz a um processo de desmistificação, retomando a forma mais clássica de idealismo – o da primazia da consciência sobre a realidade. O sujeito volta a ocupar o lugar essencial como processo de desalienação. O processo de inversão da alienação religiosa orienta a concepção de Marx sobre a alienação ainda nos Manuscritos econômico-filosóficos, mas em A ideologia alemã o caráter materialista da crítica à alienação surge como ponto de não retorno do pensamento marxista.

Nos Manuscritos…, o foco é colocado na economia política e a alienação aponta para seu fundamento na categoria de trabalho. A produção de riqueza representa para o operário a transferência de valor para a mercadoria e seu empobrecimento como trabalhador. “A depreciação do mundo dos homens aumenta em razão direta da valorização do mundo das coisas.” O trabalho produz ao mesmo tempo mercadorias e o operário enquanto mercadoria. O resultado do trabalho se enfrenta com seu produtor como um objeto alheio, estranho – está dado o mecanismo essencial de explicação da alienação. Como produtor, o operário não se sente sujeito, mas objeto do seu objeto. A atividade de produção é a fonte da alienação e não mais um processo de ilusão – psicológica ou intelectual.

Somente em A ideologia alemã, portanto, esses elementos serão articulados para constituir uma teoria explicativa das condições históricas de produção e reprodução da vida dos homens.
III
As “ilusões do espírito puro” fazem que Marx e Engels dediquem este longo livro a negar a filosofia de Hegel, de que eles mesmos foram depositários. O resultado é uma crítica dos devaneios, das fantasias humanas e das falsas ideias que fazem sobre si mesmos e sobre o mundo.

O exercício de método que enunciam, ainda incipientemente, não se limita à desmistificação de ideias equivocadas sobre a realidade, mas se propõe a pesquisar as condições que permitem que essas ideias existam e tenham tanta preponderância – há um deslocamento do debate do plano das ideias puras para o da realidade concreta em que elas são geradas.

Marx e Engels, desde o início de suas carreiras teóricas e políticas, se debruçaram sobre o entendimento de um fenômeno que identificavam como o atraso alemão: aparecia-lhes como uma figura desconjuntada, com uma cabeça enorme – onde cabiam, entre tantos, Immanuel Kant, Hegel, Heinrich Heine, Johann Goethe, Ludwig van Beethoven –, porém com um corpo pequeno, mirrado, que não conseguia se libertar das travas das sociedades pré-capitalistas. Aprisionados por essas estruturas arcaicas, os alemães canalizavam para a cabeça, gerando maravilhosas obras do espírito, as energias com que não conseguiam promover a derrubada do velho regime e a Queda da Bastilha alemã.

Não se pode dizer que exista uma ruptura entre os escritos anteriores de Marx e Engels e A ideologia alemã. Há sim uma evolução, com transformações em um processo que ganha novo corpo teórico especialmente desde os Manuscritos econômico-filosóficos, que representam a incorporação de conceitos como os de trabalho e de alienação. As “Teses sobre Feuerbach” e o capítulo sobre esse filósofo alemão no corpo da obra reproduzem temas esboçados anteriormente, mas agora em um marco histórico que ganha contornos mais definidos. Em A ideologia alemã, o materialismo histórico ganha o formato que terá no restante da obra desses dois autores.

O livro é um exemplo da dialética Hegeliana: uma relação de negação e incorporação, de superação, no sentido dialético – de Aufhebung. Essa superação parte da definição do significado do materialismo marxista, dos pressupostos incontornáveis para todo ser humano:

Os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais, de que só se pode abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação.[1]

Ao construir sua teoria – na luta constante para marcar uma clara delimitação em relação à presença monstruosa de um sistema de pensamento tão tentador como o Hegeliano –, Marx e Engels concentraram o combate teórico inicial em uma diferenciação em relação aos pressupostos idealistas de Hegel. Na diferenciação com o “saber absoluto”, os dois filósofos revelam a natureza do seu materialismo, que remete para a produção e a reprodução das condições de existência dos homens. Dela decorrem as relações dos homens com a natureza e com suas formas de organização social, isto é, dos sujeitos com o que lhes aparece como a objetividade do mundo. Uma forma específica de apropriação da natureza determina as formas de organização social e a consciência.

A apreensão do significado que as formas de reprodução da vida têm para a existência humana representa a primeira grande formulação do materialismo dialético para a compreensão da história e da consciência humana. A cada estado de desenvolvimento das formas de produção material da sua existência correspondem formas específicas de estruturação social, além de valores e formas de apreensão da realidade.

Destacar esse papel de pressuposto incontornável da produção da vida material significa, ao mesmo tempo, colocar o trabalho no centro das condições de vida e consciência humana. O homem se diferencia dos outros animais por muitas características, mas a primeira, determinante, é a capacidade de trabalho. Enquanto os outros animais apenas recolhem o que encontram na natureza, o homem, ao produzir as condições da sua sobrevivência, a transforma.

A capacidade de trabalho faz com que o homem seja um ser histórico; isto porque cada geração recebe condições de vida e as transmite a gerações futuras, sempre modificadas – para pior ou para melhor. Embora tenha o potencial transformador da realidade, o que o homem mais recusa é trabalhar. Foge do que o tornaria humano porque não se reconhece no que faz, no que produz, no mundo que transforma. Porque trata-se de trabalho alienado.

Na introdução desta obra, Marx e Engels ridicularizam o essencialismo do idealismo alemão, reivindicado pelos chamados Hegelianos de esquerda, com base na contraposição entre a lei de gravidade e o “reino dos sonhos” em que eles descansam. Nas “Teses sobre Feuerbach”, essa crítica tem o impacto da forma de aforismos, mas a articulação entre as ilusões ideológicas e as condições materiais de sua produção aparece em A ideologia alemã como seu eixo central.

Os neo-Hegelianos não se perguntam em que o terreno social onde estão pisando condiciona o seu pensamento – colocando a questão central para a caracterização da ideologia. Não haviam incorporado a categoria trabalho, a qual, juntamente com a introdução inédita de categorias como “forças produtivas” – demonstrando como já se articulava o essencial do arcabouço de interpretação marxista da história –, permite a superação efetiva do marco do pensamento de Hegel. A compreensão do processo de trabalho permite, ao mesmo tempo, a compreensão da origem da separação da teoria e da prática e das formas que permitem sua reconexão.

Desde suas primeiras obras, Marx e Engels identificam um papel para a categoria trabalho, porém inicialmente era apenas uma forma geral de luta do homem contra a natureza, como base de todas as sociedades humanas. O labor esteve, desde o início, ligado à alienação, provocando a questão da forma como essa degeneração da atividade humana foi possível. Mas, desde o começo, o trabalho era analisado na perspectiva da sua abolição, do processo de desalienação, revelando como se tratava já de uma análise ao mesmo tempo negativa e positiva.

A ideologia alemã é a primeira obra em que a articulação das categorias essenciais da dialética marxista emerge, madura, à superfície. Aparição que surge, como vimos, sob a rica forma da negação e da superação, em que a crítica da realidade é, ao mesmo tempo, a crítica de sua ideologia – nesse caso, dos neo-Hegelianos de esquerda –, forjando simultaneamente as novas categorias, que irão transformar a teoria e a realidade concreta sobre a qual ela se constrói.
Notas.

1. MARX&ENGELS, 2010, p. 86-7.

*Esta narrativa foi originalmente publicada em: SADER, Emir. Apresentação. In: Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010

Fonte: Territórios de Filosofia

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